23 maio 2014

Excrementos e Lixos que Falam de Nós



Desde o primeiro ano de vida o ser humano que nasceu entre fezes e urina, é instado e ensinado a conter e ocultar aquilo que os pais consideram feio e repugnante. É por esse tempo que o arquétipo separador do que é “sujo” e do que é “limpo” inicia a tônica de como funcionará o aparelho psíquico da criança e do adulto, mediado pelo processo civilizatório cultural.
Diz a psicanálise que a primeira criação, a primeira “obra” de arte do bebê – é o seu cocô.

O Psicanalista e escritor, Sérgio Telles, narra o drama de uma mãe em um banheiro com o seu pequeno filho. A pequena exposição de fundo psicanalítico tem por título: “Cocô Volte Aqui!”, e começa dessa forma:

“Um menino de dois anos e meio faz cocô e sempre ao dar descarga fica inconsolável com o desaparecimento do mesmo. Chora muito, abraça o vaso sanitário, e diz: Cocô volte aqui!.

A mãe do menino, por achar a cena repetitiva muito engraçada resolveu filmá-la e colocar nas redes sociais.

O psicanalista Sergio Telles explica que essas cenas repetitivas com relação aos excrementos significam que a  criança está passando pela fase anal, de que Freud identificou como o período das primeiras criações infantis. “Fase em que as fezes são muito valorizadas pelos infantes”. Não à toa que os antigos davam o nome OBRAR (transformar em obra) ao ato que hoje denominamos – defecar.

Com o tempo se aprendeu que o sujo, o nauseabundo e o que fedorento deve-se esconder, como acontece com o nosso próprio lixo cotidiano, restos rotos daquilo que um dia nos causaram prazer
e, agora, se esvaem através da descarga ou se coloca em um saco hermeticamente fechado para ser deposto bem longe de nós e dos outros.
.
A criancinha agarrada ao vaso sanitário implorando que seu cocô levado pela correnteza da descarga, volte, serve de metáfora para que nós venhamos a entender que o outro que  observa o nosso lixo, sabe muito a nosso respeito. Lixo que jamais chegamos a imaginar que estivesse em nós tão enraizado.  

Como naquilo que se fala e se afirma, nem sempre o descartável se torna indescartável por toda a vida, trago à baila um maravilhoso diálogo do humorista e escritor Luis Fernando Veríssimo. Ele nos reserva uma grata surpresa, ao mostrar em forma de prosa, o quanto o “lixo” (metáfora da impureza, do nauseabundo, do que excluímos) detém o poder de destruir nossas máscaras e revelar aspectos de nossa intimidade que gostaríamos de mantê-los secretos.


“O LIXO”
(Escrito em 2008 pelo genial L. F. Veríssimo)


Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam


― Bom dia...
― Bom dia.
― A senhora é do 610
― E o senhor do 612
― É.
― Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente.
― Pois é...
― Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto seu lixo.
― O meu quê?
― O seu lixo.
― Ah!
― Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena.
― Na verdade sou só eu.
― Mmmm. Notei que o senhor usa muita comida em lata.
― É que eu tenho de fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
― Entendo.
― A senhora também
― Me chame de você.
― Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comidas em seu lixo. Champignons, coisas assim.
― É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra...
― A senhora... Você não tem família?
― Tenho mais não aqui.
― No Espírito Santo
― Como é que você sabe?
― Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
― É mamãe escreve todas as semanas.
― Ela é professora?
― Isso é incrível. Como é que você advinhou?
― Pela letra no envelope. Achei que era de professora.
― O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo
― Pois é...
― Más notícias?
― Meu Pai. Morreu.
― Sinto muito.
― Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Hã tempos não nos víamos.
― Foi por isso que você recomeçou a fumar?
― Como é que você sabe?
― De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
― É verdade, mas consegui parar outra vez.
― Eu graças a Deus nunca fumei.
― Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo.
― Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.
― Você brigou com o namorado. Certo?
― Isso você também descobriu no lixo?
― Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho. Depois muito lenço de papel.
― É, chorei bastante. Mas já passou.
― Mas hoje ainda tem uns lencinhos.
― É que eu estou com um pouco de coriza.
― Ah
― Vejo muita revista de palavra cruzada no seu lixo.
― É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é?
― Namorada?
― Não.
― Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
― Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
― Você não rasgou a fotografia. No fundo quer que ela volte.
― Você está analisando meu lixo?
― Não posso negar que seu lixo me interessou.
― Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
― Não você viu meus poemas?
― Vi e gostei muito.
― Mas são muito ruins!
― Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
― Se eu soubesse que você ia ler...
― Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
― Acho que não. Lixo é domínio público.
― Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra de nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
― Bom! Aí você esta indo fundo demais no lixo. Acho que...
― Ontem no seu lixo.
― O quê?
― Me enganei. Ou eram cascas de camarões?
― Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
― Eu adoro camarões.
― Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
― Jantar juntos?
― É
― Não quero dar trabalho
― Vai sujar sua cozinha?
― Nada. Num instante se limpa tudo e se põe os restos fora. No seu lixo ou no meu?



“...O mundo dos que procuram a pureza é simplesmente pequeno demais para acomodá-las “  [Zygmunt Baumann – O Mal Estar na Pós Modernidade]



Por Levi B. Santos

6 comentários:

Eduardo Medeiros disse...

Muito interessante a abordagem, Levi. E eu conhecia esse texto do Veríssimo mas nunca tinha feito tal interpretação. Perfeito.

Para o Eduardinho eu ensinei dar "tchau" para o cocô depois da descarga. Ele achou divertido ver o cocô indo embora...rssss

Levi B. Santos disse...

E o cocô antes de ir embora rodopiou, rodopiou no turbilhão de água, deu dois compassos de valsa e se foi. Deixando só um pouco de saudade no coração do Eduardinho.

Como na vida tudo é repetição, a saudade perdura só até a próxima produção e exposição de sua “obra”, que é infinita enquanto dura. (rsrs)

Levi B. Santos disse...

E por falar em excrementos, porque não dizer que tudo que escrevemos e deixamos registrado sob o rótulo de “Obras” não são o produto final daquilo que digerimos literariamente pela vida afora?

Nesse caso resquícios da "fase anal" de que fala Freud, permanecem em nosso inconsciente. De vez em quando ao sentirmos necessidade, sem querer que ninguém saiba , deixamos lá no papel ou na telinha (privada) alguma coisa nossa, como o LIXO do ensaio de L. F. Veríssimo, que diz muito a respeito do dono do lixo. (rsrs)

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Nem todos os nossos excrementos seriam ruins! No lixão muitas das vezes encontramos verdadeiras relíquias. Com as latinhas de alumínio descartadas, pessoas fazem renda extra e ainda estão colaborando para a conservação do meio ambiente evitando novas extrações da natureza. Assim, quanto aos pensamentos e palavras que expomos, tanto podem ser bons ou maus. E acredito que recicláveis também de modo que todas expressões têm como ser redirecionadas e de um modo construtivo.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Por coincidência, hoje li o poema Lixos da alma do livro Anseios & Chamas de Sanio Aguiar Morgado, o qual o autor me presenteou pessoalmente no começo deste ano:


Este poema agarrado,
sai do lixo da alma
como os sacos e latas
retorcidas e sujas.

Puxo-os e separo-os
na esperança do quase
inexistente, como inesperado
brilho de uma pedra.

Cato o abandono etéreo,
as sensações abstratas, cheiros
de infância, amores esquecidos
e saudades mortas.

Um lixo da alma com suas
terras e raízes herdadas,
papéis e folhas húmidas,
húmus do meu ser.

O resto devolvo ao temo,
que ainda há de levar,
para quem também
procura sentimentos.

Levi B. Santos disse...

Muito obrigado, Rodrigão, pela postagem dessa bela e significante poesia, que veio dar mais realce ao ensaio postado.

"Lixo da Alma - Húmus do meu ser"