18 maio 2014

“Guerra Santa” Vai ao Judiciário




Quinze vídeos veiculados recentemente no Youtube denegrindo as práticas afro-brasileiras foram considerados pelos babalorixás do Candomblé como demonstração de racismo, preconceito e intolerância religiosa.

Uma decisão tomada esta semana pelo juiz Eugênio Rosa de Araújo da 17ª vara Federal do Rio de Janeiro concluiu que o Candomblé não é uma religião, esquentando uma antiga polêmica histórica entre afro-brasileiros, católicos e protestantes.

O site “Brasil Escola” sobre o Candomblé, diz: “... é uma religião africana trazida para o Brasil no período em que os negros desembarcaram para serem escravos”.

O Dicionário de Caldas Aulete também define o Candomblé como religião afro-brasileira que cultua orixás por meio, de cantos danças e oferendas. O renomado autor baiano, Jorge Amado, em suas obras, faz inúmeras referências ao candomblé como a religião dos deuses de origem africana.

Segundo o professor de filosofia, Fábio Medeiros, os primeiros africanos que desembarcaram no Brasil tiveram seu culto religioso proibido pelos portugueses. Para continuarem com a prática ritual trazida da África, tiveram que adaptar suas entidades espirituais aos santos católicos, naquilo que ficou denominado de sincretismo religioso.

A sentença do juiz da 17ª vara Federal do Rio de Janeiro, decidindo que o Candomblé não tem elementos que caracterizem uma religião, foi entendida pelos estudiosos como um ato de discriminação.

Uma reportagem da jornalista Juliana Prado ao Jornal “O Globo” ― edição de ontem (dia 17) ― dá conta desse imbróglio, que fez com que a Associação de Mídia Afro (ANMA) entrasse com uma ação na Justiça contra os vídeos postados na internet por pastores neo-pentecostais  mostrando pais de santos manifestando um demônio na hora de reconciliação a uma igreja pentecostal. A decisão do magistrado foi totalmente desfavorável aos afro-brasileiros, ao sustentar que “ ‘tais crenças não constituem religião’, abrindo uma verdadeira guerra santa no judiciário”. (Vide Link)

O Ministério Público Federal, na pessoa do Procurador da República, tem opinião contrária, considerando o candomblé como uma religião sujeita aos mesmos estatutos constitucionais que regem as demais, razão pela qual, recorreu da decisão judicial.

Segundo a matéria da jornalista, o juiz alegou que “uma religião deve ser baseada num livro central, como o Corão ou a Bíblia, e que deve ter um deus único a ser venerado”.

Ao tomar conhecimento da decisão judiciária, a antropóloga e professora da UFRJ, Yvonne Maggie, especializada em religião africana, chamou a atenção para o fenômeno, dizendo que “...o Estado deveria, de alguma maneira, manter-se mais ou menos isento; classifica a argumentação da sentença como absurda e que mostra o desconhecimento da antropologia da religião”. Diz ela ainda: “muitas religiões não se apóiam em livros”.

A jornalista, autora da matéria, mostra também um levantamento realizado no ano passado pela PUC – Rio. “Segundo o estudo de 847 casos pesquisados desde 2008, 430 disseram que sofreram algum tipo de intolerância religiosa. Os alvos eram os prédios dos centros das manifestações religiosas ou os próprios seguidores”.

Há quem considere essa briga como coisa entre irmãos pelo fato de alguns dizerem ter presenciado no meio evangélico, procedimentos em tudo parecidos com os da umbanda e do candomblé, como reuniões repletas de rituais, danças, retetés e êxtases espasmódicos.

O certo é que dentro do protestantismo, ramos do neo-pentecostalismo  e da IURD estão numa guerra ferina, onde cada um, para defender a “pureza” do seu curral, acusa o outro de praticar rituais demoníacos.

Para exemplificar, veja leitor(a) o que diz o administrador da “Vitória em Cristo” sobre o bispo Edir Macedo, a quem acusa de praticar “macumbaria”:

“Qual a diferença da arruda de sua igreja e a do centro de macumba? Qual a diferença do sal grosso de sua igreja e a do centro de macumba? Qual a diferença da rosa ungida  da do centro de macumba?. (Vide Link)

O bispo da IURD, por sua vez, se defende, nos mesmos moldes:

“não vejo diferença entre rituais de religiões afros e alguns cultos pentecostais”. (Vide Link)

Não é necessária uma análise profunda para constatar que alguns segmentos neo-pentecostais, com prevalência da IURD, em suas sessões espirituais, usam termos similares aos da umbanda, como descarrego, encosto, além do fato de vestirem roupas brancas nos rituais de exorcismo.

O placar na Justiça, em primeira instância, não reconheceu o Candomblé como religião. Por enquanto, o placar está 1X0 para os “evangélicos”. Com certeza, esse longo e polêmico jogo espiritual promete uma grande audiência quando chegar ao palco do STF. (rsrs)



Por Levi B. Santos
Guarabira, 18 de maio de 2014

Site da Imagem: stockfresh.com/image

13 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Caro Levi,

De fato este aspecto da decisão do magistrado da 17ª Vara Federal do Rio, sobre as manifestações religiosas afrobrasileiras não constituírem em religiões, parece-me, data venia, um entendimento bem equivocado. Pois para o nobre julgador seria necessário que um movimento religioso para ser reconhecido como religião deva ser monoteísta e tenha um livro sagrado, bem como hierarquia. Ou seja, em seu conceito não existiriam as religiões primevas e nem mesmo as politeístas como as do hinduísmo. Ou ainda o budismo e o taoísmo que nem um deus têm...

Entretanto, em que pese a má fundamentação utilizada pelo juiz de primeira instância, considero-a totalmente desnecessária para analisar a questão. O pedido formulado pelo Parquet federal foi para que fosse determinada a retirada da internet de dezessete vídeos considerados ofensivos ao candomblé e à umbanda. Ou seja, sem entrar na questão dos fatos, a pretensão ministerial busca de alguma maneira cercear a opinião de grupos neopentecostais os quais consideram "demoníacos" os cultos das religiões afrobrasileiras.

Sinceramente, penso que, se esses pastores não estão incitando crimes, tipo invadir os terreiros dos grupos religiosos, ou praticando ofensas raciais, pode haver um conflito com o direito de expressão. Pois, do contrário, estaríamos nos submetendo a um tipo de censura em que daqui a pouco não se poderá mais debater religião porque qualquer posição poderá ser tida como "ofensiva".

Assim, diante de tais casos, é preciso haver a devida cautela para que não ocorra também um abuso por parte do Estado. Logo, se os vídeos não têm conteúdo racista e nem incitam a prática de delitos, a decisão de S. Exa. a quo deve ser mantida, mas por outros fundamentos.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Em tempo!

Estabelecer que há uma indissociável ligação do "mal", do "demônio" ou de uma indigitada "legião de demônios" com as manifestações religiosas de matrizes africanas seria, a meu ver, mera questão de opinião. Mas se um desses vídeos realmente passa a mensagem de que as pessoas possam "fechar os terreiros de macumba", no sentido de invadir o local e quebrar os objetos de culto, aí já seria bem diferente.

Mas para que possamos aprofundar o debate, eis que o número do processo é o 0004747-33.2014.4.02.5101, o qual pode ser acompanhado pelo site da Justiça Federal do Rio em www.jfrj.jus.br

Também acessei o recurso de agravo de instrumento já interposto pelo MPF através de uma notícia do próprio site da Procuradoria da República no Rio:

http://www.prrj.mpf.mp.br/frontpage/noticias/mpf-recorre-ao-trf-2-para-retirar-videos-de-intolerancia-religiosa-do-youtube

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Em tempo 2!

Segue aí a decisão proferida pelo Juízo da 37ª Vara Federal:


DECISÃO

Em primeiro lugar, revogo, em parte, a decisão de fls. 145/146 que determinou a formação de existência de litisconsórcio passivo necessário.

Deverá, portanto, tramitar somente em face do GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA.

Em relação à retirada dos vídeos , bem como o fornecimento do ¿IP¿ dos divulgadores, indefiro a antecipação da tutela, com base nos seguintes argumentos.

Com efeito, a retirada dos vídeos referentes a opiniões da igreja Universal sobre a crença afro-brasileira envolve a concorrência não a colidência entre alguns direitos fundamentais, dentre os quais destaco:
Liberdade de opinião;
Liberdade de reunião;
Liberdade de religião.

Começo por delimitar o campo semântico de liberdade , o qual se insere no espaço de atuação livre de intervenção estatal e de terceiros.

No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado.

Não se vai entrar , neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença ¿ são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.

Quanto ao aspecto do direito fundamental de reunião, os vídeos e bem como os cultos afro-brasileiros, não compõem uma vedação à continuidade da existência de reuniões de macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda.

Não há nos autos prova de que tais ¿cultos afro-brasileiros ¿ - expressão que será desenvolvida no mérito ¿ estejam sendo efetivamente turbados pelos vídeos inseridos no Google.

Enfim, inexiste perigo na demora, posto que não há perigo de perecimento de direito, tampouco fumaça do bom direito na vertente da concorrência ¿ não colidência ¿ de regular exercício de liberdades públicas.

Não há , do mesmo modo, perigo de irreversibilidade, posto que as práticas das manifestações afro-brasileiras são centenárias, e não há prova inequívoca que os vídeos possam colocar em risco a prática cultural profundamente enraizada na cultura coletiva brasileira.

Isto posto, revogo a decisão de emenda da inicial, indefiro a tutela pelas razões expostas e determino a citação da empresa ré para apresentar a defesa que tiver no prazo legal.

Após a contestação, ao MPF.

Rio de Janeiro, 28 de abril de 2014.

Levi B. Santos disse...

Caro Rodrigão

Você, como bacharel em direito, fez uma oportuna e bem abalizada intervenção.

Vamos ver se podemos acompanhar, via internet, o desenrolar desse emblemático imbróglio.

Você diz que achou equivocada a decisão judicial por não comportar os cultos africanos como religião. Eu, que não sou do ramo, e estou comentando o caso apenas como ele foi repercutido na imprensa, também achei estranho a sentença.

Para mim, a IURD e certas igrejas neo-pentecostais não deviam ser tão intolerantes, pois seguem um padrão de rituais muito parecido com os dos centros afro-brasileiros. Por isso é que, humoradamente, falei no texto que isso não passa de briga entre irmãos. (rsrs)

Eduardo Medeiros disse...

Também concordo (como leigo em direito) que o juiz não foi feliz ao dizer em seu despacho que candomblé e umbanda não são religiões por não terem um livro sagrado.

Agora, vou colocar fogueira nessa questão.

Concordo que os vídeos onde se mostram pessoas "possuídas" e onde se faz um link direto entre "demônio e cultos afros" uma afronta ao respeito e à liberdade religiosa.

Mas, e se for um vídeo de um ex pai-de-santo (comprovadamente) que resolve agora dizer que estava no "caminho errado", deveria também ser censurado? Afinal de contas, as pessoas não têm liberdade de mudar de religião?

Deixo aí a questão para os doutores analisar, rs

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Oi, Levi.

Na verdade achei os argumentos da decisão equivocados. Como juiz não mandaria o Google retirar os vídeos, exceto na hipótese de crime ou incitação a crimes, tipo um pastor desses instigar a invasão e terreiros de Umbanda e Candomblé. Logo, penso que o MPF igualmente se equivocou na sua pretensão valendo ressaltar que os vídeos cujos links compartilhei lá no nosso grupo de debate, refletem uma opinião e determinados grupos religiosos. Concordo quando diz que "a IURD e certas igrejas neo-pentecostais não deviam ser tão intolerantes", mas defendo o direito que eles têm de se expressarem essa maneira também equivocada.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Edu,

Até essa demonização dos cultos africanos pelos pastores neo-pentecostais entendo que deve ser tolerada. Podemos não concordar com a abordagem que tais igrejas fazem, mas é a expressão deles. Eu mesmo me recusaria a participar de um culto que considero idólatra sendo que qualquer oferenda aos orixás eu vejo como sendo destinada a demônios. O apóstolo Paulo mesmo escreveu sobre as comidas sacrificadas aos ídolos em sua primeira epístola aos coríntios. E eu considero um pecado as devoções aos orixás bem como a Maria, aos santos católicos ou a anjos. Mesmo Messias na minha maneira de entender não deve ser confundido com o Deus Criador e tão pouco receber adoração. De qualquer modo, opiniões religiosas à parte, cada qual tem o direito de cultuar o que bem quiser. Se acho errado o sujeito bater tambor pra Iemanjá, ainda assim o Estado deve dar a ele o direito de praticar a sua religião. Enfim, há alguns aspectos no decisium que concordo:

"Quanto ao aspecto do direito fundamental de reunião, os vídeos e bem como os cultos afro-brasileiros, não compõem uma vedação à continuidade da existência de reuniões de macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda."

Levi B. Santos disse...

"O juiz da 17ª Vara Federal do Rio, Eugênio Rosa de Araujo, voltou atrás e afirmou nesta terça-feira (20) que reconhece os cultos afro-brasileiros como religiões".

VIDE LINK:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1457419-apos-criticas-juiz-federal-volta-atras-e-reconhece-religioes-afro-brasileiras.shtml

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Admiravelmente, o sábio magistrado soube mudar os fundamentos de sua decisão embora indeferindo a liminar pretendida pelo MPF. Leiamos na íntegra:


Chamo o feito à conclusão para os fins do art. 529 do CPC.

Cumpre esclarecer que a liminar indeferida para a retirada dos vídeos no Google teve como fundamento a liberdade de expressão de uma parte (Igreja Universal) e de reunião e expressão de outra (religiões representadas pelo MPF), tendo sido afirmado que tais vídeos são de mau gosto, como ficou expressamente assentado na decisão recorrida, porém refletem exercício regular da referida liberdade.

Fica visto que tais liberdades fundamentais (expressão e reunião) estão sendo plenamente exercidas como manifestação coletiva dos fiéis dos cultos afro-brasileiros.

Destaco que o forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões, daí porque faço a devida adequação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto base são elementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea.

A decisão recorrida, ademais é provisória e, de fato, inexiste perigo de perecimento das crenças religiosas afro-brasileiras e a inexistência da fumaça do bom direito diz respeito à liberdade de expressão e não à liberdade de religião ou de culto.

Assim, com acréscimo destes esclarecimentos, mantenho a decisão recorrida em seus demais termos.


Rio de Janeiro, 20 de maio de 2014.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Na boa, Levi. Se eu fosse juiz, também indeferiria essa liminar. Com todo respeito ao direito de crença das pessoas seguidoras das religiões afro-brasileiras. Aliás, eu o parabenizo por sua coragem em mudar parte dos fundamentos do decisium e defender o constitucionalíssimo direito de expressão mesmo diante de uma opinião pública que o cercou junto com a imprensa.

Levi B. Santos disse...

Bela e sábia atitude do meritíssimo, reposicionando-se na admissão do Candomble como religião afro.

Extinguindo, dessa forma, toda a polêmica veiculada na imprensa, que se apegou mais ao fato concreto de que o culto afro-brasileiro, sem dívida nenhuma tem componentes que caracterizam uma religião.

Quanto aos vídeos "de gosto duvidoso" veiculados na internet, concordo com você: faz parte da liberdade de expressão. (rsrs)

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Sem esquecer, Levi, de que, se a decisão do juiz fosse outra (no sentido de mandar o Google retirar os vídeos), a IURD iria alegar perseguição estatal. Ou seja, seria mais um ponto a favor desses grupos neo-pentecostais na tal da "guerra santa". Pois, se o Estado proíbe algo, logo passa a surgir uma desnecessária desconfianças muita gente vai começar a dizer que realmente as autoridades são todas "macumbeiras", "satanistas" ou que já servem ao "anticristo", etc. Aliás, discursos apocalípticos não iriam faltar...

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Sem esquecer, Levi, de que, se a decisão do juiz fosse outra (no sentido de mandar o Google retirar os vídeos), a IURD iria alegar perseguição estatal. Ou seja, seria mais um ponto a favor desses grupos neo-pentecostais na tal da "guerra santa". Pois, se o Estado proíbe algo, logo passa a surgir uma desnecessária desconfianças muita gente vai começar a dizer que realmente as autoridades são todas "macumbeiras", "satanistas" ou que já servem ao "anticristo", etc. Aliás, discursos apocalípticos não iriam faltar...