18 setembro 2014

Raízes do Preconceito




É a partir da infância, que sentimentos de aversão ao outro são introjetados na psique. Esses primeiros afetos vão definir a personalidade, o mundo de sensações e relações do indivíduo em seu desenvolvimento.

 Na minha época de aluno do curso primário, lembro-me bem de um dos alertas que as mães, pais e professoras davam regularmente: “tenham cuidado, não brinquem com os moleques de rua!” ― os marginalizados, como hoje são definidos. Tempo em que os mestres e tutores repeliam com rigidez tudo que pudesse colocar em risco a integridade psíquica dos educandos. A escola funcionava como um filtro de depuração da “impureza” e maldade presumivelmente existentes nos encarcerados, desempregados e deseducados (sempre os lá de fora). Era na hora do recreio da escola que nos soltávamos e dizíamos rindo aos borbotões: “se a professora soubesse do que estamos aqui a tratar e falar, nos expulsava”.

Fomos educados (treinados) e amansados por um sistema rigoroso, uma moenda que recalcava os desejos e afetos considerados tabus. Só restava um caminho para sobreviver sem muito atropelo: nos identificarmos com a postura de nossos mestres pais e tutores.

Não percebemos que padrões construídos na infância, e que hoje mal nos lembramos, deixaram suas ressonâncias na idade adulta. Sutilmente, essas sementes plantadas na tenra idade criaram raízes. Hoje, nem notamos, mas a seiva absorvida através das raízes continua correndo em nossas veias, agindo em nós, e em nossa vida de relação. Tal qual o nosso sistema imunológico, sentimos a febre, mas nem percebemos que este sintoma é produzido por anticorpos que na tenra idade se formam para reagir contra “corpos estranhos” que invadem ou ameaçam o nosso organismo.

Como crianças, assimilamos o padrão comportamental de nossos ancestrais, que com um pudor exagerado e recalques em relação à sexualidade, detinham um suposto “poder” e uma suposta “verdade”. E assim, fomos apreendendo comportamentos defensivos contra nossos próprios desejos. Desejos esses, que os nossos mestres, pais, pastores e padres consideravam indecentes, perversos ou coisa do diabo. Aprendemos que expor certos sentimentos era extremamente perigoso. Para sobreviver, fomos, aos poucos, aprendendo recalcar ou negar afetos ―, emoções puras e fisiológicas da idade.

Padrões de comportamentos foram forjados na infância a partir de sentimentos reprimidos. Desejos foram sepultados dentro de nós, pois, se viessem à tona perante nossos superiores, nos causariam extrema decepção.

Como raízes solidamente fincadas sob camadas de argila, assim era o nosso indevassável baú de segredos nos primeiros anos de escola. Quando uma ponta de anseios considerados “maus” emergia, nos sentíamos constrangidos ou demasiadamente envergonhados.

Para esconder ou recalcar os desejos, considerados ilícitos, criamos máscaras. O grande perigo residia em nos confundirmos demais com essas máscaras que, com o passar do tempo, podiam colar-se aos nossos rostos, dando a impressão de ser a continuidade da nossa própria pele.

Quem não se lembra dos termos, imbecil, idiota e burro, frequentemente brandidos por nossos educadores? Hoje, adultos, apesar de entendermos a razão dessas pulsões ou impulsos, percebemos ainda baterem à nossa porta, os efeitos dos afetos repudiados lá no início de nossa formação.

Como tudo se cria  a partir do que já se tem, fundamos uma nova versão de quem já fomos. Um dos efeitos colaterais decorrentes dessa operação é fatalmente o fenômeno da projeção: o mascarado é sempre o outro; o intolerante ou preconceituoso é sempre o outro.

O poeta e escritor americano, Robert Bly, diz algo emblemático sobre esse melindroso tema: 

...os aspectos sombrios é como um saco invisível que carregamos nas costas. À medida que crescemos, colocamos no saco todos os aspectos de nós mesmos que não são aceitáveis para nossos familiares e amigos.” Diz ele ainda: “acredito que passamos as primeiras décadas da vida enchendo esse saco, depois, passamos o restante tentando tirar tudo que escondemos”.

Mas será que, como adultos, retiramos tudo que escondíamos dentro do velho baú? Ou na tentativa de se ver livre desses resíduos, os jogamos inconscientemente no saco do outro?

Os arqueólogos, escavadores da psique dizem que o preconceito está a serviço do Eu narcísico: Tudo funciona como a imagem do outro (o diferente), estivesse sempre ameaçando o espaço de Narciso.

Uma genial estrofe de SAMPA, de Caetano Veloso, diz muito sobre a nossa eterna procura por um Eu ideal. O verso poético desse grande compositor da MPB parece trazer à superfície fragmentos que estavam enterrados firmemente no subsolo mental. É escavacando minuciosamente esses restos radiculares que iremos, com certeza, encontrar resquícios da seiva do preconceito de achar que é feio tudo aquilo que não reflete a nossa imagem no espelho:


“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes”.




Por Levi B. Santos

Guarabira, 18 de setembro de 2014

08 setembro 2014

BANALIDADE DO MAL em Tempos Sombrios ― Uma Reflexão



  Diante de um mar de putrefação e sórdidos procedimentos que enlameiam a nossa república, reduzindo àqueles que deveriam zelar pelo bem público à meras peças de uma máquina  articuladora da improbidade e do enriquecimento ilícito, resolvi trazer à tona um ensaio da filósofa Márcia Tiburi, publicado na revista CULT  N° 183.

Os numerosos casos de desmoralização que atualmente têm se intensificado no governo, no Congresso e em nossas principais instituições, instigou-me a colocar em destaque, logo no início, o epílogo do texto da filósofa. Faço isso com o intuito de debruçarmos mais sobre o “porquê” da corrupção ter se tornado uma coisa normal ou banal em nosso país, representada pelo freqüente  “toma lá dá cá” entre a esfera pública e a privada.

“Em um país como o Brasil, em que a banalidade do mal realiza-se na corrupção autorizada, na homofobia, no consumismo e no assassinato de todos aqueles que não têm poder, seja Amarildo de Souza, seja Celso Rodrigues Guarani–Kaiowá, uma parada para pensar pode significar o bom começo de um crime a menos na sociedade e no Estado transformados em máquina mortífera”. [Epílogo do Ensaio da filósofa Márcia Tiburi à revista CULT]

  Hannah Arendt






“Hannah Arendt, filósofa que dá nome ao filme de Margarethe von Trotta, é autora de uma das obras filósoficas mais importantes do século 20. A diretora opta por retratar a filósofa como uma pessoa comum, a professora envolvida com seu trabalho acadêmico, suas aulas e pesquisas. Fixa o enredo do filme no período em que Hannah Arendt escreveu seu polêmico Eichmann em Jerusalém. Tenta mostrar o que se passava com a filósofa, o cenário que a motivou a escrever o livro cujo conteúdo foi tomado por muitos como um escândalo. O motivo era a análise desmistificatória de Adolf Eichmann, o carrasco nazista capturado na Argentina e julgado em Jerusalém em 1962. Esperava–se desse homem que fosse um monstro, um ser maligno, um louco, cruel e perverso. A percepção de Arendt acerca do caráter desse personagem histórico, de sua postura comum que o fazia igual à tanta gente, causou mal estar.

Foi justamente a postura de Eichmann que permitiu a Arendt cunhar a ideia tão curiosa quanto crítica relativa à “banalidade do mal”. Por banalidade do mal, ela se referia ao mal praticado no cotidiano como um ato qualquer. Muitas pessoas interpretaram a visão de Arendt como uma afronta à desgraça judaica, enquanto ela – filósofa descomprometida com qualquer tipo de facção, religião, partido ou ideologia – tentava entender o que realmente se passava com a subjetividade de um homem como Eichmann.

Arendt não tomava sua condição de judia como superior à sua posição como pensadora comprometida com a compreensão de seu tempo. A condição judaica era, para ela, condição humana. Não menos, não mais. O problema da subjetividade, das escolhas éticas que implicam liberdade e responsabilidade, era a questão central no momento em que se tratava de pensar e realizar a política.

A performatividade da tese

No filme, fica claro que aqueles que se manifestaram furiosos ou ofendidos contra a tese de Arendt de fato não a compreenderam. Isso porque a tese da banalidade do mal é uma tese difícil, não por sua lógica, mas por seu caráter performativo. Aquele que é confrontado com ela precisa fazer um exame de sua consciência particular em relação ao geral e, portanto, de seus atos enquanto participante da condição humana. A banalidade do mal significa que o mal não é praticado como atitude deliberadamente maligna.  O praticante do mal banal é o ser humano comum,  aquele que ao receber ordens não se responsabiliza pelo que faz, não reflete, não pensa. Eichmann foi caracterizado por Arendt como uma pessoa tomada pelo “vazio do pensamento”, como um imbecil que não pensava, que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência. Heidegger, o filósofo nazista que diz ter se arrependido de aderir ao regime, era, no entanto, um gênio da filosofia e, contudo, não era diferente de Eichmann.

Aterrador, no entanto, é que entre Eichmann, o imbecil, e Heidegger, o gênio, esteja o ser humano comum. Eichmann não era diferente de qualquer pessoa, era um simples burocrata que recebia ordens e que punha em funcionamento a “máquina” do sistema, do mesmo modo que cada um de nós pode fazê-lo a cada momento em que, liberado da reflexão que une, em nossa capacidade de discernimento e julgamento, a teoria e a prática, seguimos as “tendências dominantes” como escravos livres, contudo, de si mesmos.  Sair da banalidade do mal é fazer a opção ética e responsável na contramão da tendência à destruição que convida constantemente cada um a aderir.

A banalidade do mal é, portanto, uma característica de uma cultura carente de pensamento crítico, em que qualquer um – seja judeu, cristão, alemão, brasileiro, mulher, homem, não importa – pode exercer a negação do outro e de si mesmo”.