14 agosto 2017

Pressupostos Subjetivos Comuns ao Cristianismo e ao Comunismo — Um Olhar de Slavoj Zizek (*)




A Abordagem realizada por Jacques Lacan, redimensionando a obra de Freud na pós modernidade, levou o filósofo Slavoj Zizek a uma aplicação dos conceitos psicanalíticos lacanianos no âmbito do cristianismo e do Comunismo. Como socialista, filósofo e psicanalista, Zizek, insiste em ver algo comum nessas duas instâncias. Ele atesta que há nos indivíduos um elemento subjetivo por demais semelhante a uma ideologia —, que os impulsionam a dar suas próprias vidas em prol de uma elevada causa. Esse pressuposto subjetivo que no cristianismo é simbolizado pelo “Espírito Santo”, Zizek dá o nome de “ente virtual”. Na linguagem lacaniana, Cristo seria o “objeto parcial de Deus”“um órgão autônomo sem corpo, como se Deus arrancasse os olhos da própria cabeça, e os virasse para si mesmo de fora.”

No início da revolução russa, a efervescência comunista tinha o mesmo efeito catártico da religião cristã. Conta Zizek que enquanto Lenin discursava para as plateias de camponeses e congressistas, havia sempre entre eles, cartazes portando um slogan roubado inconscientemente da seara do cristianismo, com os seguintes dizeres: “O Reino dos operários e camponeses durará para sempre”. Não precisa ser psicanalista para perceber que essa significativa frase dos revolucionários comunistas revela, mais que tudo, um padrão-ideal latente, análogo ao da religião cristã. Esse fenômeno típico do cristianismo, queira ou não queira, continuará persistindo na subjetividade daquele que se considera comunista. De forma subjetiva (inconscientemente), esse arquétipo permeia o coração dos camponeses socialistas, como se fosse o eco da citação do salmista Davi: “Porquanto o Reino de Deus é eterno, e seu domínio perdura por gerações e gerações” (Salmo 145: 13).

Segundo Zizek, “Trotski estava certo quando disse que o homem não vive apenas de política, fazendo uma clara alusão à história da Tentação de Jesus no Evangelho de Mateus, visto que o homem não vive apenas de pão, mas de cada palavra pronunciada pela boca de Deus”. Lenin, não valorizava os elementos de fundo religioso que permeavam a consciência dos trabalhadores porque, com certeza, ignorava que os arquétipos cristãos fizessem parte de uma estrutura indestrutível na psique dos revolucionários soviéticos; não sabia que os camponeses estavam a elaborar apenas um movimento racional/reacionário a um componente subjetivo enraizado nas profundezas de suas próprias mentes.

Segundo Engels, os princípios fundamentais extraídos do livro “O Capital” de Marx, por mais paradoxais que sejam, tinham uma relação intrínseca com os pressupostos do Cristianismo. Talvez resida aí o motivo pelo qual o livro por excelência dos países socialistas do continente europeu, tenha sido denominado — “A Bíblia da Classe Operária”. Não foi a toa que o papa Francisco, o mais nobre representante do Catolicismo, fez a recente declaração: “são os comunistas os que mais pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade onde os pobres, os frágeis e os excluídos sejam os que decidam. Não os demagogos, mas o povo, os que têm fé em Deus ou não.”

Para realçar o fenômeno de natureza subjetiva presente tanto naquele que professa o cristianismo quanto naquele que o nega, Zizek, faz alusão ao filme “Câmara-Olho” (1924), clássico do cinema mudo, de Dziga Vertov, o qual faz referência a autonomia dada ao olho de uma câmera para vaguear e observar o regime da União Soviética de 1920 no que diz respeito a sua situação política e econômica. No filme, em consonância com a expressão “lançar os olhos sobre algo”, Martinho, mítico personagem dos contos de fadas franceses, para encontrar uma esposa resolve atender o pedido encarecido de sua mãe: foi “passar os olhos nas moças” que rezavam na igreja. Para isso, Martinho vai primeiro no açougueiro e compra um olho de porco e joga sobre as moças. À sua mãe, Martinho dirá depois que elas não ficaram impressionadas com sua atitude.

Zizek toma o filme como pano de fundo para suas incursões filosóficas sobre o Olhar animal do Outro”. Sobre a experiência do “olhar”, ele conta que, certa vez, para examinar um caroço em um lado de sua cabeça, teve que fazer uso de um espelho duplo. Foi surpreendido, ao ver de soslaio, em um dos espelhos, seu perfil olhando para ele mesmo na superfície do outro espelho. Uma situação inusitada em que o sujeito ver a imagem especular dele mesmo como se tivesse sido arrancado para observar de fora, a si mesmo. Diz, Zizek: “era como meu olhar não fosse mais meu, como tivesse sido roubado de mim”. Recorrendo à psicanálise, acentua que Lacan denominou “objeto pequeno a” a essa parte de nossa imagem em perfil, refletida em uma das faces do espelho duplo —, percepção imagética que escapa à relação simétrica que experimentamos diante de um espelho-uno.

Algo homólogo ao dogma da encarnação cristã, Zizek viu na película cinematográfica —, assemelhando-se a experiência de ser surpreendido por um olho desvinculado de seu próprio corpo, a observá-lo à distância. No cristianismo, são os olhos do Senhor que se exteriorizam para observar o homem de fora para dentro de si: “Os olhos do Senhor estão em toda a parte. Ele observa atentamente os bons e os maus” (Provérbios 15: 03). No comunismo os “olhos do Senhor”, representado por pressupostos coletivos (os utópicos desejos de bem-estar geral da Nação ou do Regime) é o seu Deus.

Nietzsche, em seus últimos momentos de vida reflexiva, percebia em si um Deus morto: rabiscava em seus papéis: “Deus está morto”, mas, paradoxalmente, assinava embaixo a palavra “Cristo”. Freud, era um “ateu estranho”: muito embora não se submetesse ao ritual sagrado do judaísmo protegia em sua subjetividade a função paterna. Considerava que essa origem simbólica patriarcal remontava à morte do Pai da horda primitiva, pelos filhos. No entanto, não foi Freud e sim Lacan, que imortalizou a célebre frase: “a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente”.

Digna de registro é essa categórica declaração de Zizek: apesar do comunista/ateu na vida pública professar seu ceticismo, continua acossado pelas crenças e proibições severas. O ateu moderno pensa que sabe que Deus está morto; o que ele não sabe é que, inconscientemente, ele continua acreditando em Deus. O que caracteriza a modernidade não é mais a figura-padrão do crente que nutre em segredo dúvidas íntimas sobre sua crença e se envolve em fantasias transgressoras. [...]O Espírito Santo na Teologia Cristã é um “ente virtual” no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo: Ele só existe na medida em que os sujeitos agem como se Ele existisse. Seu status é semelhante ao de uma causa ideológica como o Comunismo. […] Depois da crucificação, da morte do Deus encarnado, o Deus Universal retorna como Espírito da comunidade de fiéis, isto é, Ele é quem passa da existência como realidade substancial transcendente para um ente virtual ou ideal que só existe como “pressuposto” dos indivíduos que agem.

Zizek se vale dos símbolos do cristianismo para demonstrar que o comunista não é, em sua essência, tão diferente do cristão. Ambas as instâncias, por um viés utópico, idealizam seus anseios e desejos mais profundos. Infelizmente o Marxismo parece não ter assimilado essa kenosis: o de estar tão próximo da substância divina e imaginá-la, ao mesmo tempo, tão distante.

(*) O ensaio acima postado foi baseado nos dois capítulos: “O Cristianismo Contra o Sagrado” e “Apenas um Deus que Sofre Pode nos Salvar” — do Livro “O Sofrimento de Deus” — de Slavog Zizek (Edição 2015 - Editora Autêntica).


Por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de agosto de 2015


07 agosto 2017

A Alma Dúbia dos Poetas




Na medida em que evidencia um elemento comum às artes e à religião, uma recente afirmação do filósofo suíço, Alain de Botton, se presta bem ao entendimento da fonte onde brotam os afetos paradoxais que habitam a alma humana. Disse ele: “Tanto na religião como nas artes há um elemento catártico”.

O personagem Sócrates já definia o poeta como sagrado. Sagrado, por ser incapaz de produzir se o entusiasmo não o arrastar e o fizer sair de si mesmo. Paradoxalmente, é o mesmo Platão que distingue no poeta um outro polo (o antagônico e demasiadamente humano), ao declamar que o seu delírio é um sinal de posse demoníaca.

O nosso poeta Olavo Bilac, por sua vez, fez uma síntese representativa dos polos ambivalentes da alma. Num rasgo bem humano, descreveu brilhantemente seu dualista coração:

E no perpétuo ideal que te devora/ residem juntamente no teu peito/ Um demônio que ruge e um Deus que chora.”

O poeta Ferreira Gullar que se definia como ateu, em seus versos, dizia que em si existia uma parte desconhecida. Não importa o nome que se dê a esse desconhecido. Mesmo que se venha nomear esse lado desconhecido, ele será sempre um enigma. Não importa que, através de uma racionalização defensiva, o poeta chegue a se declarar: “eu sou isso; ...sou aquilo”. Para além das respostas racionais/reacionais, o que importa é que na ânsia de traduzir-se, o poeta exprima em metáforas a dualidade de seus sentimentos, como a que está presente nessa poética estrofe:

Uma parte de mim é permanente/ Outra parte se sabe de repente”

Em outras palavras, Gullar talvez quisesse dizer: Uma parte de mim é previsível. Outra parte de mim é desconhecida de mim mesmo, por isso me surpreende. Freud diria: uma parte de nós é consciente/ Outra parte de nós é inconsciente. Jung diria: Uma parte de nós é transparente/ Outra parte de nós é transcendente.

O advento da psicanálise veio demonstrar que a certeza de que o homem é senhor de si mesmo caiu por terra. Abriu-se então o véu para se ter acesso aos recônditos mais profundos da mente, e com isso, se chegar a conclusão de que as ideias e pensamentos recalcados no início de nossa formação biopsíquica continuam a participar de nossa vida mental de adulto. Hoje, sabe-se perfeitamente que o homem das artes (principalmente o poeta) em seus devaneios, usa incessantemente o material recalcado nas profundezas abissais de sua psique. As ideias que passam pela cabeça do poeta no presente e levadas para o porvir estão, na verdade, atreladas a um passado indeletável. Em vão, o artista consegue tomar partido de um dos lados ou pólos ambivalentes de sua alma. Ele será duplo até o fim, pois grande parte do que fala e escreve e o motiva provêm de um mundo ambíguo, recalcado na infância.

Não poderia deixar de aqui ressaltar que é do poeta rotulado ateu, Fernando Pessoa, a mais humana e mais bela narrativa que um cristão jamais ousou fazer sobre o menino Jesus, digna de ser canonizada. (Vide link: “A Mais Bela História de Um Poeta Ateu”)

Conta-se que o Poeta Mário Quintana não acreditava em Deus, mas não dizia isso para não ofender a Nossa Senhora e ao Menino Jesus. Na verdade, os versos de Quintana, com naturalidade e graça, mostram, mais que tudo, elementos antagônicos de seu ser duplo: um mais vestido para apresentação e outro simbolizado como o mais nu dos animais. No poema “Crenças” ele explica o por que” do respeito aos sentimentos dos outros. Foi da lama de seus pensamentos primevos afetos adubados pelas histórias religiosas contadas por seus pais , que Quintana produziu preciosas metáforas sobre nossa natureza dúbia. Afinal, é na poesia que a sujeira do barro e a pureza da água que nos mata a sede, se juntam à elevada linguagem do “céu”.

O religioso fundamentalista pode até se escandalizar com esse verso de Quintana que reproduzo abaixo, mas duvido muito que cada um, lá dentro, não perceba escondido ou quase em oculto, o tal porteiro Glicínio ̶ personagem do mundo pueril e mítico do poeta. Basta voltar a ser criança de novo para, enfim, imbuído de coragem e humildade poder retirar do baú das reminiscências infantis o material dissonante de que fomos forjados. Depois, é só montar as peças, uma por uma, e estará pronto, na imaginação, o reino encantado, onde heróis e vilões coexistem, trocando de papéis ao sabor das circunstâncias.

CRENÇAS”

Seu Glicínio porteiro acredita que rato, depois de velho, vira morcego.

É uma crença que ele traz da sua infância

Não o desiludas com teu vão saber,

Respeita-lhe os queridos enganos:

Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança

Tenha ela oito ou oitenta anos!
[Mário Quintana]
Levi B. Santos
Guarabira, 07 de agosto de 2017