A
Abordagem realizada por Jacques Lacan, redimensionando a obra de
Freud na pós modernidade, levou o filósofo Slavoj Zizek a uma
aplicação dos conceitos psicanalíticos lacanianos no âmbito do
cristianismo e do Comunismo. Como socialista, filósofo e
psicanalista, Zizek, insiste em ver algo comum nessas duas
instâncias. Ele atesta que há nos indivíduos um elemento subjetivo
por demais semelhante a uma ideologia —, que os impulsionam a dar
suas próprias vidas em prol de uma elevada causa. Esse pressuposto
subjetivo que no cristianismo é simbolizado pelo “Espírito
Santo”, Zizek dá o nome de “ente virtual”. Na
linguagem lacaniana, Cristo seria o “objeto parcial de Deus”
— “um órgão autônomo sem corpo, como se Deus arrancasse os
olhos da própria cabeça, e os virasse para si mesmo de fora.”
No
início da revolução russa, a efervescência comunista tinha o
mesmo efeito catártico da religião cristã. Conta Zizek que
enquanto Lenin discursava para as plateias de camponeses e
congressistas, havia sempre entre eles, cartazes portando um slogan
roubado inconscientemente da seara do cristianismo, com os seguintes
dizeres: “O Reino dos operários e camponeses
durará para sempre”. Não precisa ser psicanalista para
perceber que essa significativa frase dos revolucionários comunistas
revela, mais que tudo, um padrão-ideal latente, análogo ao da
religião cristã. Esse fenômeno típico do cristianismo, queira ou
não queira, continuará persistindo na subjetividade daquele que se
considera comunista. De forma subjetiva (inconscientemente), esse
arquétipo permeia o coração dos camponeses socialistas, como se
fosse o eco da citação do salmista Davi: “Porquanto o Reino de
Deus é eterno, e seu domínio perdura por gerações e gerações”
(Salmo 145: 13).
Segundo
Zizek, “Trotski estava certo quando disse que o homem não vive
apenas de política, fazendo uma clara alusão à história da
Tentação de Jesus no Evangelho de Mateus, visto que o homem não
vive apenas de pão, mas de cada palavra pronunciada pela boca de
Deus”. Lenin, não valorizava os elementos de fundo religioso
que permeavam a consciência dos trabalhadores porque, com certeza,
ignorava que os arquétipos cristãos fizessem parte de uma estrutura
indestrutível na psique dos revolucionários soviéticos; não sabia
que os camponeses estavam a elaborar apenas um movimento
racional/reacionário a um componente subjetivo enraizado nas
profundezas de suas próprias mentes.
Segundo
Engels, os princípios fundamentais extraídos do livro “O Capital”
de Marx, por mais paradoxais que sejam, tinham uma relação
intrínseca com os pressupostos do Cristianismo. Talvez resida aí o
motivo pelo qual o livro por excelência dos países socialistas do
continente europeu, tenha sido denominado — “A Bíblia da Classe
Operária”. Não foi a toa que o papa Francisco, o mais nobre
representante do Catolicismo, fez a recente declaração: “são
os comunistas os que mais pensam como os cristãos. Cristo falou de
uma sociedade onde os pobres, os frágeis e os excluídos sejam os
que decidam. Não os demagogos, mas o povo, os que têm fé em Deus
ou não.”
Para
realçar o fenômeno de natureza subjetiva presente tanto naquele que
professa o cristianismo quanto naquele que o nega, Zizek, faz alusão
ao filme “Câmara-Olho” (1924), clássico do cinema mudo, de
Dziga Vertov, o qual faz referência a autonomia dada ao olho de uma
câmera para vaguear e observar o regime da União Soviética de 1920
no que diz respeito a sua situação política e econômica. No
filme, em consonância com a expressão “lançar os olhos sobre
algo”, Martinho, mítico personagem dos contos de fadas
franceses, para encontrar uma esposa resolve atender o pedido
encarecido de sua mãe: foi “passar os olhos nas moças”
que rezavam na igreja. Para isso, Martinho vai primeiro no açougueiro
e compra um olho de porco e joga sobre as moças. À sua mãe,
Martinho dirá depois que elas não ficaram impressionadas com sua
atitude.
Zizek
toma o filme como pano de fundo para suas incursões filosóficas
sobre o “Olhar animal do Outro”.
Sobre a experiência do “olhar”, ele conta que, certa vez, para
examinar um caroço em um lado de sua cabeça, teve que fazer uso de
um espelho duplo. Foi surpreendido, ao ver de soslaio, em um dos
espelhos, seu perfil olhando para ele mesmo na superfície do outro
espelho. Uma situação inusitada em que o sujeito ver a imagem
especular dele mesmo como se tivesse sido arrancado para observar de
fora, a si mesmo. Diz, Zizek: “era como meu olhar não
fosse mais meu, como tivesse sido roubado de mim”. Recorrendo à
psicanálise, acentua que Lacan denominou “objeto pequeno a”
a essa parte de nossa imagem em perfil, refletida em uma das faces do
espelho duplo —, percepção imagética que escapa à relação
simétrica que experimentamos diante de um espelho-uno.
Algo
homólogo ao dogma da encarnação cristã, Zizek viu na película
cinematográfica —, assemelhando-se a experiência de ser
surpreendido por um olho desvinculado de seu próprio corpo, a
observá-lo à distância. No cristianismo, são os olhos do
Senhor que se exteriorizam para observar o homem de fora para
dentro de si: “Os olhos do Senhor estão em toda a parte. Ele
observa atentamente os bons e os maus” (Provérbios 15: 03). No
comunismo os “olhos do Senhor”, representado
por pressupostos coletivos (os utópicos desejos de bem-estar geral
da Nação ou do Regime) é o seu Deus.
Nietzsche,
em seus últimos momentos de vida reflexiva, percebia em si um Deus
morto: rabiscava em seus papéis: “Deus está morto”, mas,
paradoxalmente, assinava embaixo a palavra “Cristo”.
Freud, era um “ateu estranho”: muito embora não se submetesse ao
ritual sagrado do judaísmo protegia em sua subjetividade a função
paterna. Considerava que essa origem simbólica patriarcal remontava
à morte do Pai da horda primitiva, pelos filhos. No entanto, não
foi Freud e sim Lacan, que imortalizou a célebre frase: “a
verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente”.
Digna
de registro é essa categórica declaração de Zizek: apesar do
comunista/ateu na vida pública professar seu ceticismo, continua
acossado pelas crenças e proibições severas. O ateu moderno
pensa que sabe que Deus está morto; o que ele não sabe é que,
inconscientemente, ele continua acreditando em Deus. O que
caracteriza a modernidade não é mais a figura-padrão do crente que
nutre em segredo dúvidas íntimas sobre sua crença e
se envolve em fantasias transgressoras. [...]O Espírito
Santo na Teologia Cristã é um “ente virtual”
no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo: Ele
só existe na medida em que os sujeitos agem como se Ele existisse.
Seu status é semelhante ao de uma causa ideológica como o
Comunismo. […] Depois da crucificação, da morte do Deus
encarnado, o Deus Universal retorna como Espírito da comunidade de
fiéis, isto é, Ele é quem passa da existência como realidade
substancial transcendente para um ente virtual ou ideal que só
existe como “pressuposto” dos indivíduos que agem.
Zizek
se vale dos símbolos do cristianismo para demonstrar que o comunista
não é, em sua essência, tão diferente do cristão. Ambas as
instâncias, por um viés utópico, idealizam seus anseios e desejos
mais profundos. Infelizmente o Marxismo parece não ter assimilado
essa kenosis: o de estar tão próximo da substância divina e
imaginá-la, ao mesmo tempo, tão distante.
(*)
O
ensaio acima postado foi baseado nos dois capítulos: “O
Cristianismo Contra o Sagrado” e “Apenas um Deus que Sofre Pode
nos Salvar” — do Livro “O
Sofrimento de Deus” — de Slavog Zizek (Edição 2015 -
Editora Autêntica).
Por
Levi B. Santos