Uma necessidade extrema, sob a forma de desejos incontidos, nos impulsiona a passar para o papel o que percebemos em nossa vida interior. Realidades internas, tal qual sonhos eletrizantes, belos ou carregados de absurdos, são descritas para os outros, com avidez e riqueza de detalhes incomuns, como se a história onírica vinda do nosso inconsciente no silêncio mais profundo da noite, tivesse o condão de alertar, influir ou interagir frente ao nosso semelhante.
O que nos induz a escrever sobre nossas experiências, sobre nossos sonhos, sobre nossas dores, sobre os nossos ideais às vezes “loucos”?. A razão talvez esteja no fascínio que o poder da palavra escrita exerce, ao resistir às intempéries do tempo, ao permanecer intacta, perdurando além da nossa efêmera existência.
Quando a linguagem falada não encontra um escoadouro ou um porto seguro, nos valemos da escrita como instrumento de comunicação. A “fala”, linguagem do tête-à-tête é expressão difícil para os tímidos, os quais só encontram consolo na solidão de um quarto, tendo como companheiros uma mesa, um papel e um lápis. Das palavras faladas, muitas se perdem por serem ditas e não gravadas, e tal folhas secas sobre o solo, são varridas para bem longe, açoitadas pelo vento. Porém, a escrita permanece. A Bíblia, o livro dos livros, foi resultado de uma longa e sofrida elaboração, registrada em pergaminho por incansáveis escribas. Moisés registrou a aliança de Deus com o seu povo escrevendo em tábuas de pedra. O evangelista São João, exilado na ilha de Patmos, ouviu dentro de si uma voz que dizia: “o que vês escreve-o num livro [...]” (Apocalipse 1 : 11)
Viver é sofrer. É afligir-se no espinhoso caminho da vida. É sentir-se cansado do arrastar lento e rotineiro dos dias. É resistir, agarrando-se as pedras íngremes da estrada do tempo. Quando vencemos na vida, vencemos apenas etapas ou degraus da imensa escada existencial. Já nascemos chorando; o riso é apenas um pequeno intervalo de felicidade entre os choros. Karen Blixten, escritora Dinamarquesa, assim se expressou sobre esse tema: “Todos os sofrimentos podem ser suportados se conseguirmos convertê-los numa história, ou se contarmos uma história sobre eles”.
Quando escrevemos, nos tornamos espelhos onde os outros captam a nossa compreensão do mundo, e os significados que atribuímos aos fatos do cotidiano. As nossas emoções mobilizadas, nossos símbolos, nossas marcas estão lá registradas sob a forma de palavras. O papel é o nosso “pombo-correio” dos recados que inconscientemente desejamos transmitir ao nosso próximo. Se não há destinatário, perde-se a razão da escrita. Ao escrever sobre aquilo que poderíamos ter vivido, e não vivemos, descrevemos algo de nós, que como uma sombra reprimida, foi projetada para o exterior, à guisa de reciprocidade do nosso interlocutor. Nas entrelinhas do que escrevemos, muitas vezes censuramos o outro. É mais fácil censurar no outro aquilo que não admitimos em nós.
Em conversa com o outro, as palavras saem rápidas, em profusão, não permitindo que entre elas haja o silêncio que configura as pausas musicais indispensáveis na execução da melodia que engendra a alma humana. A escrita, como uma pescaria, é lenta, requer paciência para esperar o peixe ser fisgado. No ato da escrita, as palavras primeiramente são prensadas nas tábuas do coração, para depois de refletidas ser repassadas para o papel. Quantas vezes essa escrita não nasce nas noites de insônia em que o desassossego ronda o silêncio vazio do nosso quarto. É como se o exercício do escrever apurasse os nossos ouvidos para ouvir mais de perto os gemidos da alma, a fim de entender a sua intricada linguagem. Rubens Alves ( psicanalista, filósofo e educador}, assim escreveu em um dos seus ensaios: “É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir a verdade do outro, se eu parar de tagarelar”. O silêncio representa uma linguagem muda, que nos leva ao deserto, para que mais tarde, se possa ver brotar em nós a palavra escrita.
Os livros são grandes companheiros nossos, na medida em que valorizamos as experiências de vida neles contidas. Victor Hugo, certa vez, castigou com dureza uma pessoa que confessou ter incendiado uma biblioteca. Exclamou cheio de cólera: “Crime cometido por você, contra você mesmo, infame!./ Você acaba de matar o raio de luz de sua alma!/ É a sua própria sombra que você acaba de soprar!/ Uma Biblioteca é um ato de fé [...]/ Então você esquece que o seu libertador é o Livro?/.
Segundo o professor de Ciências Humanas, Harold Bloom (descendente de Judeu), “conhece-se melhor a nossa realidade e a nossa vulnerabilidade face ao destino, através da Leitura”. O famoso poeta Chileno Pablo Neruda, no seu memorável livro (CONFESSO QUE VIVI), escreveu: “Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros[...]/. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas.”
Lembro-me bem, tinha meus treze ou quinze anos de idade, quando encolhido sob as tábuas de um banco de roupas e tecidos vendidos a granel por minha mãe, na Grande feira de Sábado
Talvez, quem sabe, seja aquele mesmo impulsivo desejo de adolescente que, agora, vendo-me entrar nos umbrais da velhice, me anima a ESCREVER, LER, ESCREVER, LER, sem parar, com avidez ainda maior que a dos tempos de outrora.
No entanto, por trás das palavras e das metáforas que escrevo, como ser humano que sou, sinto-me radiante, e, enquanto passam as páginas cinzentas dos dias e as páginas negras da noite, vou engolfando a minha alma nesta arrebatadora cascata de letras, dádiva de Deus, concebida pela escrita e a leitura. E assim vivo. VIVO, POR ISSO ESCREVO.
Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de Março de 2008
Um comentário:
Levi, neste ensaio, você confirma
para todos nós à sua índole literária e o grande escritor e estudioso que você é. Congrtulações!
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