20 julho 2007

“FARDOS PESADOS” ─ UMA REFLEXÃO



Esta palavra“fardo” transporta-me aos meus nove ou dez anos de idade, quando ao entardecer dos Sábados eu assistia a chegada dos burros do velho Augusto à minha casa em Alagoa Grande. Augusto era um velho magro de tez negra retinta, barbas e cabelos brancos sempre em desalinho, de expressão sisuda que lembrava mais as figuras rudes dos escravos dos meus livros de História. Nas madrugadas dos sábados, seus animais transportavam pesados fardos de roupas, que as costureiras de minha mãe confeccionavam para serem vendidas em dois bancos de feiras no meio da rua. À tardinha os burros voltavam com as volumosas cargas para minha casa, em um percurso de mais ou menos um quilômetro e meio intercalado por duas íngremes ladeiras.


A imagem dos burros do velho Augusto com pesados fardos sobre os lombos não me sai da memória. Eu no final do dia ficava sentado na parte mais alta da calçada da minha casa, como um habitual expectador das cenas violentas protagonizadas pelo velho ranzinza, que com seu longo chicote açoitava duramente os indefesos animais, a fim de que pudessem andar mais depressa e no rumo certo.

Os pobres e cansados animais, às vezes, não resistiam e caíam com os membros dianteiros ajoelhados sobre o chão de barro batido. Eles movidos pelo medo do chicote, logo retiravam de si as últimas forças a fim de chegar ao seu destino. Eu tenho a impressão de que em algumas dessas ocasiões cheguei a ver lágrimas brotarem dos olhos aboticados das infelizes criaturas, e chegava a perguntar para mim mesmo: como era que aquele violento velho não via que aqueles fardos eram pesados demais para os lombos dos trôpegos animais?

Hoje, já na terceira idade, eu entendo perfeitamente o “porquê” daquela minha solidariedade infantil em me juntar ao sofrimento dos burros de Augusto: é que, depois de praticar perigosas travessuras de menino, quase sempre levava sonoras “surras” de minha mãe, com “chibata” de bater em cavalos; talvez, tenha sido por esta a razão que eu me associava à dor dos resignados animais nas sombrias tardes de sábados. De certo modo, também tinha uma tênue experiência daquele tipo de castigo em minha própria carne.

Aquelas cenas repetidas todo o entardecer dos sábados incutiram em minha consciência infantil, a noção do que era carregar “fardos pesados”. E, tudo isto, hoje me suscita a entender e refletir melhor sobre as palavras de Cristo: “O meu fardo é leve [...]”. Remeto-me aqui e agora a um outro “fardo pesado” que é o da “CULPA e do medo da punição”.
Os fardos pesados da culpa e do medo de ser punido levaram os nossos primeiros pais a se sacrificar todos os dias, com rituais e dolorosas penitências que mais pareciam uma flagelação. E eles sentiam cada vez mais a necessidade premente de pagar, de expiar algo, impondo a si mesmo práticas ascéticas e duras jornadas. Como quase toda criança do meu tempo fui forjado neste caldo fervente do medo do “chicote”.

Esta história de “fardo pesado” traz agora a minha lembrança uma emblemática e oportuna afirmação do eminente psiquiatra e teólogo Suíço Paul Tournier, em seu livro “Culpa e Graça”. Diz ele: “Por trás dos nobres propósitos de saudáveis pessoas, o doente Jó percebe um terrível julgamento, uma insinuação constante de que os males que o assolam são punições divinas! Mesmo nas exortações à fé, Jó sente uma acusação; quando Bildade lhe diz: ‘Mas se tu buscares a Deus, e ao Todo-Poderoso pedires misericórdia, se fores puro e reto, Ele, sem demora, despertará em teu favor, e restaurará a justiça da tua morada’ (Jó 8: 5-6). Bildade, evidentemente deixa entender que, se Jó não sara, é porque não implora ao Todo Poderoso, ou que ele não é obediente o bastante. Assim Jó replica (21: 27): ‘Vede que conheço os vossos pensamentos e os injustos desígnios com que me tratais.’

Há quinhentos anos, o "velho Augusto" apareceu em nossa terra, representado pela elite religiosa portuguesa. Sobre o lombo dos nossos ancestrais indígenas foi posto o "fardo pesado", na forma de um arremedo de cristianismo, que sob o chicote da catequese a ferro e fogo, conseguiu escravizar aquilo que o ser humano tem de mais precioso: " a alma".

Ainda hoje repercute em nossa cultura, o "fardo pesado" dessa dominação sutil e engenhosa, que à maneira de uma epidemia vai disseminando nas consciências um fugaz refúgio contra a punição divina: "a subserviência". Esta subserviência nada mais é, que a aceitação sem questionamentos de uma " insensata mensagem" brandida em "nome de Deus", cujo o escopo se constitui na negação do próprio Cristo.

“Deus vai requerer!” “É sua obrigação!” “Cuidado para não pagar o preço!”. Hoje, toda vez que ouço bordões como estes acima, vejo na minha imaginação o velho Augusto com o seu pungente chicote em punho ante seus indefesos e apavorados animais, espargindo a grande arma que subjuga o “espírito”: O MEDO.

E assim, pela vida afora, vamos levando sobre os nossos lombos o “pesado fardo” do "sacrifício" sob a égide do medo, que Cristo com tanto esforço quis aliviar. Tal qual os pobres e indefesos burros, entregamos nossas vidas aos desígnios de um outro "poderoso" que nos faz passar por autômatos. Coagidos à jurisdição alheia, que cerceia o direito do "livre pensar", entregamo-nos a pior espécie de ultraje e usurpação, que é: " a privação da faculdade de raciocinar livremente".


O mesmo Cristo que falou em Mateus 11.30: “...o meu fardo é leve”, foi o mesmo que mais na frente (Mateus 23, 4) citou indignado: “Atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem nos ombros dos homens; eles porém nem, com o dedo querem movê-los”.


Bem que os fardos dos animais do velho Augusto poderiam ser mais leves. Mas, nem eles (os jumentos), nem eu, na minha meninice, tínhamos coragem de ao menos encará-lo, esboçando um ar de reprovação. Calado e amedrontados ficávamos diante do temível e terrível senhor e seu indefectível “chicote”.

Era assim que todo o entardecer dos sábados, o pedaço de rua em frente à minha casa se transformava em um palco ao ar livre de uma peça teatral, que tão apropriadamente poderia ter este título: " Burros com 'fardos pesados' ante o seu violento domador".



Ensaio por: Levi B. Santos - Guarabira, 20 de Julho de 2007

2 comentários:

Antônio Ayres disse...

Meu prezado irmão Levi:

Não saberia, com exatidão, por onde começar a minha crítica, diante de um texto tão rico e profundo.

O fato é que, uma das coisas que mais chamaram a minha atenção, logo de início, é a riqueza com que você utiliza uma ilustração e consegue extrair dela, com palavras certeiras, tudo o que seria possível de se extrair.

Parece-me que você leu e absorveu todos os escritos de Charles Haddon Spurgeon, o "Príncipe dos Pregadores" do avivamento europeu, e os transpôs, literalmente, em seus textos.

Quanto à essência do que escreveu (o legalismo, a exploração, a subserviência, a necessidade de expiação,etc), sua mensagem me remeteu ao livro "Eros e Tânatos", de Karl Menninger, no qual ele explica do primeiro ao último capítulo, como a culpa exige expiação.

Se os cristãos deixassem de carregar fardos religiosos e cressem que, na cruz, TODA A NOSSA DÍVIDA FOI SALDADA, não haveria, com certeza, tanta tibieza de fé, tanto coração dobre e tanta ignorância.

Minha recomendação ao nobre amigo é a de que (se, porventura ainda não o fez), faça correndo uma compilação de seus ensaios mais significativos e os envie rapidamente, para a análise de várias editoras.

Como disse Jesus, "a luz não pode ficar debaixo do alqueire, mas no velador".

Ilumine, com a sua mente privilegiada, tanta gente que anda nas trevas da ignorância.

"Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade" (2. Cor. 3.17)

Forte abraço!

Anônimo disse...

Obrigado por intiresnuyu iformatsiyu