Geralmente, a cada quinze dias, eu e minha esposa fazemos este trajeto: saímos de Guarabira e viajamos até à praia de Camboínha, em Cabedelo, onde residem o nosso filho George, a nora Mauriceia e a nossa neta Gabrielle. Nesses reencontros matamos a saudade dos tempos em que convivíamos juntos no mesmo ninho. Na verdade, o que mais nos deixa impressionados e felizes da vida nessas ocasiões, são as peripécias da sapeca neta de três anos de idade.
Propositadamente, ao adentrar a garagem do prédio toco a buzina do carro, e a Gabrielle ao reconhecer o apito do automóvel, desce do terceiro andar em disparada, percorrendo rapidamente os degraus do corredor, aos gritos: “chegô dotô Levi”. E ao me encontrar ainda na garagem do prédio retirando a bagagem, joga-se efusivamente nos meus braços. Após os abraços no avô, dirige-se em direção a avó, que também a abraça e beija carinhosamente, chamando-a de “minha princesa”.
Numa das visitas mais recentes que fiz ao apartamento em que reside o meu filho, a minha esposa não me acompanhou. A Gabrielle percebendo a ausência da sua querida avó,recebeu-me friamente, perguntando-me de imediato:
─ Vovô! Cadê a vovó Luza?
Ali mesmo, um pouco desconcertado racionalizei uma desculpa daquelas que comumente se diz de última hora, engabelando as crianças mais inocentes, e, no intuito de consolar a neta, que àquela altura já demonstrava certo ar de desapontamento, eu disse com desfaçatez:
─ Ela não pôde vir minha filha. Ouviu?
Foi nesse exato momento que observei no seu rosto um rasgo de desalento. Os seus olhos vazios, infundindo tristeza, desviaram-se para o “hall” silencioso e sombrio do apartamento. Fitando-me demoradamente, na sua sincera espontaneidade, disse-me uma frase emblemática, que os adultos tão bem sabem encobrir:
─ “Tava com saudade de vovó Luza” ─ respondeu ela reclinando levemente a sua cabeça sobre o meu peito.
Momentos depois, acomodado em uma cadeira de balanço, na sacada do apartamento, comecei a refletir sobre a última e significativa frase dita pela minha netinha. A saudade tão cantada e decantada em música, em ensaios, versos e romances, como um misto de tristeza, decepção e abandono, já estava ali presente numa pequena criatura de três anos de idade. Que bela e fascinante fase da vida é esta da criança, na qual, os sentimentos verdadeiros são expressos com a maior naturalidade, sem o ranço das etiquetas sociais que controlam e sufocam o interior do próprio ser, tolhendo a sua liberdade de externar o que sente. Quantas e quantas vezes, não disse para os meus filhos ainda pequenos: “Comporte-se dessa maneira! Não faça feio! Seja forte, não chore!”.
Ao observar a netinha falar com todo o seu sentimento a palavra “saudade”, não pude conter a emoção, me senti criança de novo, e voltei ao “ Jardim do Éden” dos meus queridos pais, os quais, mesmos sem entender nada de psicologia, deram sentido e forma aos meus sucessos e fracassos. Foram eles que, com seus risos e gritos de gigantes disciplinadores, domaram meus medos imaginários.
A tão significativa palavra “saudade” pronunciada de forma cândida pela pequena Gabrielle naquela tarde, fez instantaneamente voltar à lembrança, as minhas muitas leituras de Psicanálise.
Inconscientemente, aquele ser tão precoce fornecera a senha, para que ali, eu pudesse recordar o que os postulados do psicanalista Francês Jacques Lacan diziam sobre o desenvolvimento psicológico da criança no âmbito da família. Esse estudioso da afetividade humana, foi o primeiro a receber da lingüística uma valiosa contribuição, encontrando nela o esteio que iria desvendar o que realmente se escondia por trás dos sentimentos experimentados pelo bebê, ao ser privado do seio materno ─ no então chamado “desmame”. Jacques Lacan, ao fazer uma releitura das obras de Freud, trouxe à atualidade conceitos irrefutáveis, provando que o sentimento de perda, o sentimento de privação de um prazer na criança, se inicia muito cedo ─, no final do primeiro ano de vida, quando o bebê deixa de amamentar. Ao ver-se privada do ato prazeroso da sucção, a criança funda em seu ser, de uma maneira inconsciente, a tão propalada SAUDADE. Quando a mãe oferece a “chupeta” ao seu nenem, está estabelecendo a primeira ficção, fabricando a primeira ilusão, que de certa forma funcionará como um “consolo” (termo usado antigamente para o que hoje denominamos “chupeta”).
Quem nunca observou uma criança sugando com ruidosa avidez a sua chupeta enquanto dorme profundamente? Porventura, não estaria ela sonhando com o real? Ou estaria ela no seu débil imaginário, iludindo-se com uma réplica, a fim de saciar o seu primitivo prazer oral?
No ato de amamentar, a criança recebe o leite, e ao mesmo tempo realiza o mais primitivo de todos os desejos: “o gozo de sugar”. O sentimento agudo da saudade, da solidão, da privação, nasceu, portanto, de um desejo vedado lá no início da nossa existência. Após a interdição dessa função, a criança inconscientemente passa a procurar a restauração da unidade perdida de si mesmo. É nessa ocasião que entra em ação o imaginário infantil, com suas fantasias, alegorias e fantasmagorias. A saudade, este saudoso afeto, irá acompanhar o ser humano pela vida afora, e como um desejo profundo, irá dar vigor as artes, a ciência e a religião ─, verdadeiras dádivas do amor oferecido às civilizações.
O homem que foi capaz de construir a cultura, não pode ignorar que vive sob o peso de seus próprios recalques. A velha saudade que nasceu com a primeira perda, foi engendrada em nossas mentes, a semelhança de um rio caudaloso de inverno, que vai levando tudo de roldão, rompendo os seus próprios limites, e que, só é aplacado pelo choro, pela esfera do Divino, da música, da poesia, dos ensaios, e dos "reencontros".
A emblemática frase, dita de forma tão melancólica pela pequena Gabrielle naquele memorável dia, além de ter sido a razão maior dessa minha breve incursão pelo terreno científico da gênese da saudade, teve o condão de transportar-me para a longínqua infância de estudante do curso primário em Alagoa Grande – Pb. Fez-me evocar uma poesia de Casimiro de Abreu, que eu adorava recitar, mas infelizmente, a minha mente já cansada pelo peso dos anos, só guardou dela, este pequenino fragmento:
...............“Oh que saudades que eu tinha
................Da aurora de minha vida,
................Da minha infância querida
................Que os tempos não trazem mais”.
Ensaio por: Levi B. Santos
Guarabira, 17 de Abril de 2008