03 agosto 2008

TEMPO INTEGRAL E DEDICAÇÃO EXCLUSIVA





Estava lá escrito no meu contrato profissional: “Médico do SESP sob regime de tempo integral e dedicação exclusiva, segundo normas da CLT”. No estágio probatório de cerca de um mês de duração me foi dito em palavras oficiais o significado do famigerado carimbo: 50% do salário corresponderiam às oito horas diárias, e os outros 50% destinados às horas extras trabalhadas durante o expediente noturno, incluindo aí sábados, domingos e feriados.

Como ovelha muda, jamais passou pela minha cabeça averiguar a legalidade do meu contrato no âmbito da justiça do trabalho. Fazer uma contestação dessa estirpe nas esferas do Direito seria um suicídio, pois corriam os anos de chumbo da ditadura militar (década de oitenta), época em que a discordância contra as ordens superiores era considerada um ato de rebeldia e de afronta à Lei de Segurança Nacional. Além do mais, a quantia que recebia mensalmente compensava a dureza do regime semi-escravo implantado pelo Ministério da Saúde. No dizer dos médicos veteranos da repartição, o salário era um bom pé de meia, para após dois ou três anos se tentar alçar vôos maiores, desta feita, em melhores condições financeiras. Uma coisa que eu não sabia era que o veneno da acomodação anestesiava a grande maioria dos médicos que se empregavam com esse nobre pensamento de, passado poucos anos de atividade em Saúde Pública, enfronharem-se em seus próprios consultórios, fugindo da servidão cansativa no cumprimento das metas de saúde impostas de cima para baixo.

Tinha feito residência médica em cirurgia geral, cirurgia obstétrica e ginecológica durante o ano de 1972, no Rio de Janeiro, razão pela qual fui admitido na Fundação como cirurgião e obstetra. Lembro-me de que a minha prova prática de admissão foi um sucesso: tinha me saído muito bem na cesárea realizada sozinho, sem a ajuda da instrumentadora e do auxiliar. Após o término do heróico ato cirúrgico, fui cumprimentado pelo supervisor médico, que todo paramentado, sentado em um tamborete num canto da sala de operações, assistia sereno o desenrolar da épica cirurgia. Lembro que ele me disse: “parabéns, você gastou apenas vinte minutos ‘pele a pele’.” O tempo decorrido no ato cirúrgico era um fator que poderia me reprovar. Saí dali consagrado. Hoje, tal procedimento realizado dessa forma, me levaria a perda do diploma de médico.

Após alguns meses de trabalho fui avisado pelo diretor da minha Unidade Hospitalar, que o Superintendente Regional queria falar comigo. Na ocasião recebi as instruções de que deveria me apresentar ao Chefe maior, com os sapatos bem engraxados, cabelos devidamente cortados e roupa bem passada.

Numa certa manhã, logo após o atendimento ambulatorial, o superintendente todo risonho me abordou de uma maneira acolhedora. Realizadas as saudações de praxe, assim ele falou:

─ Vim lhe trazer uma promoção ─ disse solícito, entregando-me um vistoso envelope com uma carta de apresentação e uma passagem aérea para Belo-Horizonte (MG). ─ Isto aqui é um estágio de dois meses em anestesiologia, que a presidência da Fundação resolveu lhe presentear. Você, dessa forma ficará mais completo, visto que poderá fazer a anestesia e a cirurgia, sem a necessidade de mais um outro médico na sala de operações.

A atitude alegre do superintendente contrastava com a minha surpresa e decepção. Pensei comigo: “Meu Deus! O que é que esse pessoal do Ministério tem na cabeça, para fazer uma proposta estapafúrdia como esta?.” Criei então coragem e argumentei:

─ Caro doutor, não posso aceitar esta proposta. Já que faço as cirurgias, o certo seria mandar outro colega fazer este estágio.

O superintendente em um segundo ficou com o rosto vermelho, e os olhos arregalados. Com respiração apressada foi me repreendendo:

─ O queeeeeee! Como ousa recusar uma ordem da Presidência! Isto jamais aconteceu nesta Fundação. O que você está fazendo é muito grave, gravíssimo. Corre o risco de ser demitido sumariamente, além de me deixar em maus lençóis. Não faça isto, a passagem já está aqui no seu nome.

─ Doutor! Eu poderia me explicar melhor. Posso telegrafar para o Presidente mostrando as minhas razões? ─ disse no intuito de contornar a situação.

─ O queeee? Você não sabe que as normas não permitem um médico-assistente dirigir-se a uma autoridade da presidência? Ou está se fazendo de bôbo?

Não pude saber naquela época, quais foram os trâmites tomados para solucionar o impasse com a Presidência da Fundação. O certo é que um colega meu da Unidade, enfim, foi mandado em meu lugar, para o estágio em anestesia geral. Só depois de muitos anos, quando estava perto de me aposentar, soube que a minha ficha funcional em Brasília estava com observações em cor vermelha, provavelmente tinha sido incluído no rol dos funcionários indisciplinados e rebeldes.

Quanto ao famigerado contrato de “dedicação exclusiva e tempo integral” registrado em minha carteira profissional, só depois de muitos anos de trabalho varando dias, noites e madrugadas ininterruptas, sem contar os fins de semana e feriados, é que fiquei sabendo que era tudo uma farsa. A minha casa era por assim dizer o próprio hospital, pois trabalhava em média cento e dez horas por semana. Por infelicidade minha, o tempo de serviço sob essas condições prescreveu, impedindo-me de entrar na Justiça com um pedido de indenização pelo trabalho prestado em regime semi-escravo.

Durante o longo ciclo político de exceção que vigorou no país, no qual servi como funcionário público, quase todo questionamento era tido como insubordinação pelo discurso disciplinador, que só poupava àqueles que para progredir na carreira, se anulavam, negando o que se tem de mais elevado: a consciência e a vontade própria. Cumprir metas estabelecidas longe de nossa realidade era a minha obrigação. Vivia mergulhado num verdadeiro frenesi de índices numéricos a serem alcançados. Na maioria das vezes sentia-me como um fantoche operacionalizado por mãos estranhas, submetido a uma manipulação metódica que me impedia de apresentar as experiências colhidas no âmbito da saúde na minha própria região.

Hoje, revendo a minha primeira e encardida carteira de trabalho, vem à lembrança os tenebrosos anos de repressão, tempo em que as idéias partidas do pessoal de campo, no sentido de aperfeiçoar as ações de saúde, eram recebidas pelos superiores com menosprezo ou indiferença, como se nada de fundamental importância pudesse brotar dos soldados da linha de frente. Os escribas das “normas” não valorizavam os vanguardeiros, que no corpo-a-corpo eram os primeiros a enfrentar a adversidade.




Crônica por: Levi B. Santos

Guarabira, 02 de Agosto de 2008


3 comentários:

fransciscosolangefonseca.blogspot.com disse...

Caro Levi a Fundação de Serviço Especial de Saude Pública , na época era uma ditadura dentro da própria ditadura, onde os mais graduados se mantinha no cargo através de suspenções dadas a colegas. Quando vim para Paraiba do Maranhão, qual não foi minha supresa ao encontrar em minha ficha uma advertencia por escrito, sem que eu tomasse conhecimento.gostei da crõnica e me fez lembrar dos velhos ditadores.abçs

Unknown disse...

Não sabia dessa realidade...Graças a Deus os tempos mudaram...Você é um herói, tio.

Maria José Torquato disse...

Dr. Levi, é verdade e dou fé. Sou testemunha da correria para trabalhar de forma eficiente e eficaz e não haver solução de continuidade no alcance das metas.
Vale lembrar que perdemos os 84% com MEDO de requerer judicialmente,
em tempo oportuno.Por essas e outras, é que passo o dia cantando: Livre estou... livre estou... pela graça de Jesus, livre estou