16 abril 2011

Na Teia de Aranha


"Nada é tão difícil como tentar exercer a curiosidade, quando nos encontramos obstruídos por idéias preconcebidas. Levantar o véu que está agarrado a conceitos sedimentados é uma tarefa extremamente embaraçosa. Os seres humanos, por natureza, se agarram com tanta obstinação as velhas idéias, talvez, para não sofrer o malogro de não serem reconhecidos em suas novas descobertas".

Theodore Zeldin — Historiador inglês, considerado pela revista francesa “Magazine Littéraire”, um dos dez mais importantes pensadores vivos da atualidade. Em seu best seller, “Uma História Íntima da Humanidade”, discorreu como a curiosidade é perigosa para a tradição; para isso se valeu da aranha - uma das poucas criaturas que sobrevive há 250 milhões de anos, sem alterações. Da história dos dois anatomistas Galeno e Vesálius, ele fez uma interessante analogia, recorrendo a teia de aranha, como metáfora do conservadorismo que não tolera o espírito liberal. Assim, escreveu o historiador:

“Foi no ano 130 ou 200 d.C. que tanto cristãos como muçulmanos preferiram continuar enredados na teia de aranha tecida pelo médico Galeno. Educado em Alexandria, e posteriormente médico de uma escola de gladiadores na Ásia Menor, ele afirmou que o coração não era uma bomba, mas uma espécie de lareira que produzia o calor do corpo. Seus livros didáticos foram decorados por todos os médicos do Ocidente e do Oriente Médio. Durante cerca de um milênio nada viram nos pacientes que lhes despertassem a curiosidade para uma explicação diferente, uma vez que as ideias de Galeno formavam um todo coerente. [...]. [...] Na verdade ele se elevou a médico-modelo. O amor próprio dos religiosos foi emoldurado pelos ensinamentos de Galeno".

Os erros de Galeno sobreviveram, embora ele houvesse advertido que não se devia acreditar piamente em livros antigos. Se seus discípulos o tivessem ouvido mais cuidadosamente, não ficariam paralisados por suas idéias, conforme o próprio revelou: “Não sei como aconteceu, se por milagre ou inspiração divina, ou um frenesi, ou o que mais quiserem, mas desde a minha mais remota juventude eu desprezei a opinião da multidão, e ansiei pela verdade e pelo conhecimento, acreditando que não houvesse para o homem patrimônio mais nobre ou divino”.

“Quem procura pensar por conta própria sabe que as teias que a aranha tece são frágeis e incompletas; mas os que se contentam em ser seus discípulos, e ficam emaranhados nas teias de aranha dos outros, esquecem sua fragilidade e imaginam que pisam em terreno firme e estável. Ideias tomadas de empréstimo, originalmente destinadas a serem fios de teia de aranha, endurecem e se fossilizam; ideologias se tornam dogmas, e a curiosidade, que deveria soprar livre como o vento, de repente fica imobilizada”.

Andreas Vesalius de Bruxelas (1514 — 64) para escapar das teias de aranha do politicamente correto em Ciência, teve a curiosidade de ver como o coração realmente funcionava, e partiu para dissecar corpos humanos, diferentemente das deduções a que Galeno chegara a partir de corpos de macacos e cães. Passava longas horas no Cemitério dos Inocentes roubando cadáveres para pendurar em roldanas a fim de serem dissecados minuciosamente. A curiosidade era tamanha que o fedor que exalava dos corpos não o incomodava. Vesalius mostrou que as descrições da anatomia humana feitas por Galeno estavam muitas vezes erradas, e escreveu uma obra belíssima, “A Estrutura do Corpo Humano”. Mas eis que os cristãos e muçulmanos se recusaram a dar-lhe crédito, dizendo: “se Galeno parecia ter-se enganado, isso, se devia a erros na tradução de seus livros”.

Desta forma, Vesalius não pode escapar à teia de aranha de Galeno, e compreendeu o “porquê” da fixidez dos dogmas contra as novidades trazidas à luz despertadas pela curiosidade, que fazem os autores novos perderem para os autores antigos. Vesalius entendeu o quanto é difícil quebrar um sistema de pensamento que domina uma época e como levam séculos para que as “teias de aranha” venham a desaparecer.

Olhando bem, as teias de aranhas são frágeis e bem tecidas, mas o que atrapalha e dificulta os nossos vôos nos imobilizando ou nos prendendo em seu emaranhado, é a aparente invisibilidade de suas malhas.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 17 de abril de 2011

6 comentários:

Eduardo Medeiros disse...

levi, bem "curioso" os dados que você traz nesse teu texto. rss

já que você puxou o papo para cá, deixa antes eu comentar o que você disse lá.

"O dogma é um recurso estático estabelecido por um colegiado para ser respeitado como uma doutrina imutável, ou imexível (rsrs). Dogmatizar passa por uma imposição e uma aceitação sem questionamentos."

ok, ok, concordo com isso, claro. mas fico cá pensando com meus botões: existem momentos em que os dogmas são necessários pois eles sustentam o edifício conceitual de certa época e circunstância; o problema é o dogma achar-se eterno.

para chegarmos ao heliocentrismo foi necessário antes se estabelecer que a terra era o centro do universo (e não somente do sistema solar); era um dogma, e caiu de maduro...

os exemplos são fartos.

o dogma do nosso tempo é que todo dogma deve ser desprezado.

por isso eu não implico tanto com os dogmas cristãos; eles servem de base para bilhões de pessoas e quando eles não servirem mais, cada um buscará novos dogmas.

não estou aqui entrando na discussão sobre as aberrações que infestam o meio cristão hoje em dia, estou me limitando ao corpo doutrinário da fé.

o dogma religioso hoje que deve ser combatido é a não aceitação do dogma do outro, pois isso alimenta a guerra da fé: a minha é a certa e a sua é errada.

e então, mestre, o que tens a dizer?

dogmaticamente falando, o fluzão vai vencer o flamengo e vai para as finais do carioca....rssssss

Levi Bronzeado disse...

EDU

Para muita gente, parece que a interpretação psicológica do dogma tira o mistério que o envolve. (rsrs)

Com relação ao dogma de Cristo, assim se refere Erich Fromm ( que foi quem mais se aprofundou na análise psíquica da religião). Diz ele:

“Para compreender a evolução do dogma cristão (salvação através de Cristo) é necessário compreender primeiro característica peculiar da cristologia primitiva. A crença de que um homem foi elevado à condição de Deus é uma expressão de um impulso inconsciente de hostilidade para com o Pai. Por isso os pagãos se referiam ao Cristianismo como um ateísmo, e, num sentido psicológico mais profundo eles tinham razão, pois essa fé num homem sofredor elevado a Deus era uma utopia de uma classe sofredora e oprimida que desejava derrubar as forças dominantes — Deus, imperador ou Pai. O dogma de Cristo (de salvação através de Cristo) foi fruto do desejo inconsciente dos sofredores que projetoram nesse Homem seus desejos Edípicos.
Os crentes entusiastas estavam imbuídos de um desejo de eliminação do Pai autoritário (Javé), e identificaram-se com o crucificado. O dogma Houmoousiano, assim se expressa: O Deus paternal cujo perdão só pode ser obtido pelo sofrimento, se transforma na mãe cheia de graça, que alimenta o Filho, abriga-o em seu ventre, e com isso proporciona o perdão.


O dogma evoluiu: a idéia de um homem que se torna deus transformou-se na ideia do deus que se faz homem.

A velha “Teia de Aranha” do conservadorismo é que impede a tradução do dogma cristão. Diga-se de passagem que tradução do dogma não significa em si, destruição do mesmo, mas sim uma ressignificação para o bem de todos e felicidade geral do povo.

Passa a bola para ti, Edu, sabendo de antemão, que jogas no meu time (O Flu)
Olha aí o duplo sentido (kkkkk)

Eduardo Medeiros disse...

levi, comecei a ler o livro do fromm, psicanálise e religião que encontrei num sebo e estou gostando muito.

"O dogma de Cristo (de salvação através de Cristo) foi fruto do desejo inconsciente dos sofredores que projetoram nesse Homem seus desejos Edípicos."

esse anseio está bem estabelecido pela pesquisa histórica bíblica que aponta como as esperanças messiânicas eram voltadas para o restabelecimento do reino de israel e a vitória contra a opressão dos grandes impérios que israel sofreu durante séculos.

mas agora, de ex-crente piedoso para ex-crente piedoso, eu te pergunto:

você vê de fato mal na fé dos cristãos que tem a salvação de jesus na cruz como algo concreto, realizado não só nas vias psiquicas mas também na história?

Levi Bronzeado disse...

você vê de fato mal na fé dos cristãos que tem a salvação de jesus na cruz como algo concreto, realizado não só nas vias psiquicas mas também na história?

Edu, o livro maravilhoso de E. Fromm, que você está lendo, tem a resposta para essa questão:

O lado negativo dessa fé, se baseia no fato de que a ética do cristão, vai refletir as vicissitudes do seu “sentimento religioso”, particularizado na figura de Cristo. E isso vai fazer, indubitavelmente, com que ele racionalize que os valores éticos dos deuses de outra religião são inferiores ao seu — motor de toda intolerância religiosa.

P.S: Procure no sebo um livro imperdível desse autor (Erich Fromm) — que fez a primeira releitura das obras de Freud. Trata-se do “O Dogma de Cristo”

UMA PAUSA: A vitória do FLU contra o Argentino Juniors foi épica. Estou com 65 anos, e eufórico, porque passei no teste cardíaco — que foi a eletrizante partida.

Estamos nas oitaaaaaaaaaaaaavas!!!

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Boa a reflexão e bendito seja o Deus que nos dotou de curiosidade para que não fiquemos presos nas teias da aranha de nenhum conservadorismo! Aliás, de certo modo concordo quando se diz que pensar é transgredir. Transgredir, digo eu, não a Deus, mas aos cocneitos conservadores impostos pelos grupos dominantes. A Verdade é que Deus é Deus. Ele é o Eterno! Ele é transcendente! Ele não está preso a doutrina alguma. Não importa quantos conceitos criamos, Ele simplesmente é.

Vocês estão a falar sobre um tema bem antigo que é a divindade do Messias e aí venho mencionar um ótimo livro onde Roger Haight refere-se a Jesus condiderando-o não mais como um sacramento, mas "símbolo de Deus", sendo considerado bem esclarecedor para o pluralismo religioso existente nos dias atuais.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Em tempo!

Achei bem interessante a vitória do Flu ontem. Sou Fla e acho que se o Flu tivesse saído das Libertadores, meu time correria mais mais riscos neste domingo. Com o resultado, o Fla vai senir mais o peso da responsabilidade de reagir e o Flu não deverá focar tanto no estadual, pois continua com suas expectativas voltadas para as Libertadores.