Em seu incisivo livro ― “A Questão Judaica” ―, Jean Paul Sartre, de forma corajosa, foge da vala comum de traduzir o anti-semitismo unicamente pelo viés sócio-político-econômico-religioso. Foi através desta obra que ficou mundialmente conhecida a sua frase: “É o anti-semita quem faz o Judeu”.
Sartre, para explicar o anti-semitismo, explorou, de forma convincente, a PROJEÇÃO — um dos mecanismos de defesa do ego, muito bem elucidado por Freud em seus trabalhos. Em psicanálise, PROJEÇÃO, é uma operação pela qual o indivíduo expulsa de si, coisas, qualidades, sentimentos que ele desconhece ou recusa, para localizá-los em outra pessoa ou grupo.
“Se o Judeu não existisse o anti-semita o inventaria” — disse, certa vez, o filósofo francês existencialista.
Douglas Garcia Alves, em seu livro ― “Depois de Auschwitz” ― ressalta bem os componentes psicológicos dos postulados de Adorno e Horkheimer: “O anti-semitismo baseia-se numa falsa projeção. A falsa projeção torna o mundo ambiente semelhante a ela. Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial” (página 48)
“O anti-semita escolheu ser criminoso, e criminoso de “mãos limpas”; mais uma vez, foge às responsabilidades; reprimiu seus instintos homicidas, mas encontrou um meio de saciá-los sem admiti-los. [...] O anti-semita é um homem que tem medo, certamente, não dos judeus, mas de si mesmo, de sua consciência, de sua liberdade, de seus instintos, de suas responsabilidades, da solidão, da sociedade e do mundo ― de tudo exceto dos judeus. Aderindo a essa postura, ele não adota apenas uma opinião, mas escolhe também a pessoa que quer ser” (“A Questão Judaica” ― Editora Ática, páginas 34 e 35)
Em “Origens do Totalitarismo” ― volumoso livro, tido pelos estudiosos como valioso instrumento de pesquisa sobre totalitarismo, liberalismo e socialismo, Hannah Arendt, diz: “a complexa psicologia do Judeu médio baseava-se numa situação ambígua: Os judeus médios sentiam simultaneamente o arrependimento do pária que não se tornou arrivista, e a consciência pesada do arrivista que traiu o seu povo, ao trocar a participação na igualdade dos direitos de todos por privilégios pessoais. Assim, a maioria dos judeus assimilados vivia um “lusco-fusco” de ventura e desventura, sabendo que tanto o sucesso como o fracasso, estão ligados ao fato de que eram judeus”. (página 89).
Sobre Sigmund Freud, que teve de fugir para a Inglaterra, perseguido por anti-semitas, assim se referiu o psicanalista Davi L. Bogomoletz, em um artigo publicado na Revista do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos do Rio de Janeiro: "O homem que lutou quase sozinho contra os monstros do lado escuro da mente, lutou também quase sozinho contra a besta anti-semita. Via-se hostilizado por um fogo cruzado — de um lado o alvejavam por seu judaísmo, e de outro por sua psicanálise, e ele sabia que havia algo em comum a essas duas "rejeições". Não fosse ele judeu, os europeus o rejeitariam por causa da psicanálise. Não fosse a psicanálise, ele seria recusado enquanto judeu".
Vale ressaltar aqui a expressão "bode expiatório", usada por Hannah Arendt, para designar uma pessoa ou grupo culpabilizado por algo que o faz alvo de múltiplas emoções, como raiva e medo, além do ressentimento.
Sobre o ressentimento, que é um dos afetos mais evidentes no psíquismo do anti-semita, Maria Rita Kehl, psicanalista da PUC de São Paulo, diz o seguinte, em seu livro ― “Ressentimento” ― Editora Casa do Psicólogo (página 19): “O ressentimento seria o avesso do arrependimento; seria uma cobrança indireta de um bem cedido ao outro por submissão ou covardia”. Na questão judaica, isso, de certa forma, corrobora que em sua queixa, o anti-semita não se arrepende, antes acusa. É algo como uma vingança imaginária.
O fato é que todos nós experimentamos o poder de projeção, milhares de vezes em nossa vida.
“A projeção é um mecanismo de defesa involuntária do ego; em vez de reconhecer as qualidades que desgostamos em nós, as projetamos em outra pessoa. Projetamos nos pais, nos amigos, ou, até melhor, nas pessoas famosas que nem conhecemos. Aquilo que julgamos ou condenamos no outro é uma parte rejeitada de nós mesmos. Quando estamos em meio à projeção, parece que estamos vendo a outra pessoa, mas na realidade, estamos vendo aspectos ocultos de nós mesmos.” — relato sobre o lado obscuro da psique humana, por Debbie Ford, psicóloga da Universidade JFK – EUA, com obras traduzidas em mais de trinta línguas.
Por Levi B. Santos
Guarabira, 04 de novembro de 2011
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FONTES:
1. “A Questão Judaica” – Jean Paul Sartre – Editora Ática
2. “Origens do Totalitarismo” ― Hannah Arendt – Editora Companhia das Letras
3. “Depois de Auschwitz” ― Douglas Garcia Alves – Editora Annablume
4. “Ressentimento” ― Maria Rita Kehl ― Editora Casa do Psicólogo
5. “Fazendo as Pazes Com os Outros” ― Debbie Ford ― Editora do Grupo Leya
Site da imagem: culturahebraica.blogspot.com
9 comentários:
Caro Levi.
“O ressentimento seria o avesso do arrependimento; seria uma cobrança indireta de um bem cedido ao outro por submissão ou covardia”. Na questão judaica, isso, de certa forma, corrobora que em sua queixa, o anti-semita não se arrepende, antes acusa. É algo como uma vingança imaginária. Maria Rita Kehl)
Levi, sabemos que o anti-semitismo parte quase que exclusivamente da cristandade. É milenar esta ideologia. Seria demais atribuir este sentimento aos fatos relatados na carta aos hebreus, quando os judeus no afã de coibir o crescimento dos cristãos, ao encontrarem uma oportunidade, exigiam deles a blasfêmia contra Cristo? Durante toda a história, atribuíram várias infâmias aos judeus. Como por exemplo: assassinato de crianças cristãs, envenenamento das fontes de águas que abasteciam cidades, e também a profanação da ceia, a qual boa parte dos cristãos a tem como sacramento. Sem falar na declarada opção anti-semita do alemão Lutero.
Ressentimento, além dessa definição da psicanalista, é sentir novamente as dores do passado. Seria a somatória de tudo o que ocorreu na história, que levou Hitler a assumir (sob outros pretextos) à sua magoa contra os judeus provocando assim aquela onda de violência contra eles? Ou é impossível encontrar uma razão RACIONAL para esta inimizade?
Abraços.
Levi meu mestre Bronzeado, muito bom seu texto, e vejo impossibilitado de acrescentar algo mais, que não seja, desgastar mais ainda a frase já tão conhecida de meu "mentor": "O inferno é o outro".
Abraços mestre
Donizete
“Levi, sabemos que o anti-semitismo parte quase que exclusivamente da cristandade”.
Concordo com a afirmação, acima, retirada de seu comentário.
Todos nos sabemos, através de muitos relatos históricos, que o "cristão ocidental" rejeitou os judeus imigrantes que tentavam escapar da crescente ameaça nazista, eles até mesmo os impediram de ir para Eretz Israel, a terra de seus ancestrais. Isto resultou na morte de milhões de judeus.
Conta ainda a história que em 1936 o governo de Hitler ordenou a queima das obras do médico Sigmund Freud. O fundador da psicanálise, mesmo diante de tamanha violência, não deixou de ser espirituoso, ao comentar que o acontecimento o alegrava, pois o regime totalitário do Fuhrer tinha dado um grande salto ao preferir queimar os livros em vez de queimar o seu autor. (rsrs)
Abraços,
Caro confrade Edson
Apesar de Sartre não concordar com a esfera do inconsciente, como Freud a definia, ele admitia bem os mecanismos de defesa do ego, como Freud explicava.
No livro “A Questão Judaica”, Sartre expõe, talvez melhor do que Freud, o funcionamento do mecanismo de PROJEÇÃO que ocorre na psique do anti-semita. Alíás, Sartre se auto-denominava um “Psicanalista existencial”. O autor da expressão ” o ser em si” se aproximava de Freud, ao formular que “ser em si” compreendia objetos que transcendiam a própria consciência.
Abçs,
"Levi! perdoe-me por usar Voltaire para comentar seu artigo, mas faço minhas as palavras do célebre ateu: O preconceito é uma opinião sem julgamento. Assim em toda terra inspiram-se às crianças todas as opiniões que se desejam antes que elas as possam julgar, isto é, o homem ainda está muito longe da evolução intelectual para poder abandonar de vez todo o preconceito que séculos ainda não puderam fazer"
O Provocador
levi,
sempre li o anti-semitismo de hitler pelo lado político e econômico. bem, há também a tese de um amigo meu de que hitler sendo gay, amava um judeu que não lhe deu bola, daí...
“Se o Judeu não existisse o anti-semita o inventaria”
mas vejo que de fato, a projeção pode entrar no bolo do anti-semitismo. e também não seria um ódio ou inveja doentia sobre um povinho errante, sem terra(até 1948), mas que nos legou os melhores cérebros em diversas épocas?
prezado provocador,
sobre sua frase
"Assim em toda terra inspiram-se às crianças todas as opiniões que se desejam antes que elas as possam julgar"
o que você sugere para se educar uma criança? deixá-la crescer sem nenhum rumo moral, sem nenhuma orientação sobre comportamento adequados e não adequados?
"Eduardo, primeiro temos de nos despirmos de todos os preconceitos (impossível), depois devemos analizsar o contexto socio-culktural em que a criança está inserida. Se depois de tudo isso você conseguir ditar regras de certo errado, então saberá como deve-se educar uma criança, ou seja, a primeira criança que precisa ser orientada somos nós, os adultos"
O Provocador
Caro provocador
Sobre: “O preconceito é uma opinião sem julgamento”
Segundo Horkheimer e Adorno (que eu citei no ensaio postado) “não existe apenas um alvo ou objeto real a ser atingido pelo preconceituoso. O preconceito, para esses autores é, sobretudo, mediado por necessidades psíquicas e sociais”.
Segundo Adorno, “a luta pela diferença é legítima, mas infelizmente, a sociedade existente não é propícia a ela”.
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