28 janeiro 2012

FUGITIVO DE SI MESMO





A civilização tem procurado lapidar o homem através de um sistema de representações, numa tentativa de poder abraçar a sua interioridade subjetiva.

O homem, esse ser dinâmico, não se conforma em viver numa gaiola, onde seu dono lhe dá tudo, sem que necessite de voar para obter comida em lugares inóspitos que metem medo. O sistema o livra da realidade do “lá fora”, para que ele se quede mais seguro de si. Então o seu dono lhe diz: “Tudo já foi feito para que você não se arvore a pensar fora do script”. O sistema organizacional oferece lugares acolhedores cuja função é estabelecer coerência naquilo que se pratica em seu meio.

Nesse palco, mágicos com seus lenços fantasiosos camuflam a realidade do ser em si com maravilhas ilusórias cotidianas, para com isso, evitar que se caia na tentação de fugir para se alimentar lá fora ―, no que já se convencionou como “o mundano”.

Quem poderá resistir à tamanha oferenda de proteção contra os perigos que rondam lá fora? O preço é alto: sob o manto da proteção de abdicar do pensar, o homem não desenvolve, não evolui. Continuará, ele, no processo castrador de reprimir a sua alma que deseja transcender, sabendo que transcender é transgredir, é VOAR para além das fronteiras do trivial? Mas ele resiste o bastante, para que se faça ouvir uma voz, a dizer: “Aceite como real o que seu grupo deseja postular como verdade. Seja um convicto, pois a dúvida é diabólica”.

Mas a FUGA que eu quero tratar aqui, é uma FUGA interna ou interior —, essa engrenagem poderosíssima a que nos submetemos para evitar situações que nos podem gerar frustrações. Eis aí o mais sedutor e inteligente artifício que o sistema de dominação psicológica, cultural e espiritual já inventou. O seu lema é: “Não explore terrenos desconhecidos porque você pode se perder”. E aí vem uma infinidade de proibições que caminham no sentido contrário ao da dialética.

Assim, se processa o mecanismo denominado fuga: quando dizemos fuja rápido dessa heresia, senão você vai se contaminar, estamos,  na verdade, falando para nós mesmos e, inconscientemente, repelindo idéias ou pensamentos que poderiam solapar nossas convicções, nos deixando em situação embaraçosa.

O mecanismo de FUGA nos faz sempre projetar a metáfora inferno naquele que ameaça expor os nossos recalques, entendendo por recalque, tudo aquilo que lá no fundo desejamos e reprimimos por medo de perder a proteção trocada por uma submissão irrestrita.

 Há poucos dias, estava eu lendo um ensaio, “Teologias do Inferno”, em que o autor fazia a defesa dos seus princípios. Dizia ele, logo no começo do seu texto: “Pois a verdade é que há muitas instituições ditas evangélicas de ensino teológico, cujos desensinos têm me arrepiado todo. Por mais que seja uma construção em termos, parecem teologias do inferno”. Bem no final do seu ensaio, o autor faz um alerta a seus fiéis, alerta esse, que na verdade é mais uma reação contra o que há em si mesmo. Durante o desenvolver do seu raciocínio, o autor citou oito vezes a palavra “FUJA”. Em todas as FUGAS por ele apontadas estão implícitos os “ISMOS PERIGOSOS” —, modismos conceituais reacionários que, a seu ver, ameaçam a frágil estrutura eclesiástica de dominação.

A psicanálise faz ver que, o perigo que pensamos está do outro lado, é o nosso inferno particular. O bode expiatório é aquele estranho que leva sobre si as nossas mazelas, em suma, ele é o espelho que reflete o nosso avesso, que não queremos mostrar, e, por isso, deve ser quebrado. C.C. Jung, psicólogo suíço chegou, certa vez, a dizer: “A Sombra é a pessoa que preferiríamos não ser”.

Ao invés de negar nossa sombra, o que precisamos é reconhecê-la. De nada adianta fugir dela. Para onde formos lá estará ela conosco. O que nos resta é abraçar essa escuridão que existe dentro de nós, para entendê-la e, consequentemente, transcendê-la. É impossível dela fugir, quando muito a projetamos no outro (diferente), naquilo que se tornou a frase célebre de Sartre: “O Inferno São os Outros”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 28 de janeiro de 2012

Site da imagem:  vilamulher.terra.com.br

23 janeiro 2012

Acolhendo o 'Caim e o Abel' Interior






Caim é aquele arquétipo que temos em nosso interior ou psique que nos faz não se sentir aceito. 
Por que Caim não suportava Abel? 
Porque Abel fazia aquilo que Caim não conseguia executar. Um era a tese e outro a antítese, símbolos de nossa contradição interna ou de nossa ambivalência.

O mito de Caim e Abel revela, acima de tudo, que esses dois irmãos representam os pólos afetivos e antagônicos da alma humana. A imagem iluminada de Abel fazia sombra em Caim. Caim só tinha um caminho: acolher a sombra de Abel refletida no espelho de sua alma. Mas no seu entender precisava culpar alguém para se livrar da incômoda sombra. Ao invés de aceitá-la e fazer dela uma síntese, planejou destruí-la sem saber que dessa forma estava cavando seu próprio fim, o suicídio. Já dizia o ensaísta francês, Maurice Blanchot: “quem encontra o OUTRO (o diferente) apenas pode-se dirigir a ele pela violência mortal, ou pelo dom da palavra em seu acolhimento”.

Para se compreender a origem do nosso conflito com o outro, o diferente, temos que recorrer à 'imago paterna', ou o nosso superego. A Paz ou a reconciliação e convivência entre nossos afetos antagônicos só podem ser intermediadas por um pai bondoso e acolhedor que aproveita o material de que é composto cada lado para realizar sua síntese. Sobre esse aspecto, já dizia o poeta Fernando Pessoa: “A Terra é feita de Céu”

O pai autoritário e guerreiro que não aceita a diferença entre os filhos, vai naturalmente incentivar a intolerância e o ódio (aqui, figurados nos dois irmãos da parábola), ativando o instinto de destruição de um sobre o outro, com seu corolário posterior de culpa e remorso.

Por falar em culpa e remorso, não poderia deixar de ressaltar um conto emblemático do escritor e poeta Jorge Luiz Borges, no qual, ele faz realçar a reconciliação dos nossos pólos paradoxais. A figura do perdão — resultado da reintegração entre os dois irmãos que se sentam à mesa, aceitando, cada um, os seus caracteres subjetivos particulares ―, é bem explorada nesta expressiva lenda:

Abel e Caim se encontram depois da morte. Caminhavam pelo deserto, e se reconheceram de longe porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram na terra, fizeram um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira de pessoa cansada quando finda o dia. No céu surgia alguma estrela que não tinha recebido o seu nome. À luz das chamas, Caim advertiu na frente de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que ia levar à boca, e pediu que fosse perdoado o seu crime.
Abel responde:
― Você me matou ou eu matei você? Já não me lembro, estamos juntos como antes.
― Agora sei que na verdade perdoou ― disse Caim, porque esquecer é perdoar. Eu tratarei de esquecer.
Abel disse devagar:
― Assim é. Enquanto dura o remorso, dura a culpa.

Freud dizia:quer ser menos cobrado? Assimile em sua psique um pai amoroso e mais compassivo, um superego mais conciliador”. O rei bíblico, Davi (Salmo 23)sentiu a presença de um Pai conciliando as forças que se debatiam em seu interior, representadas pela figura de uma mesa com o melhor dos manjares e o melhor dos vinhos. O poeta bíblico, enfim, apaziguou as forças do seu conflito interior,   O campo para destruição do lado oponente deu lugar a uma mesa farta para ele cear com seus “inimigos”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 22 de janeiro de 2012
Site da imagem: martydonnellan.wordpress.com

18 janeiro 2012

DIA FELIZ OU TRISTE?




"Um país onde ser honesto é heroísmo" (Cristovam Buarque)


O Brasil acaba de ser alçado à sexta economia do mundo. Comemora-se com muita emoção e champanhe francês, o extraordinário feito nas altas rodas políticas de Brasília. Afinal, o nosso gigante adormecido é manchete em todos os jornais do mundo.

Porém, eu, como cidadão brasileiro, aposentado do serviço público, não estou alegre. Estou triste.

Cabisbaixo, trago o avesso do Brasil, que encanta o mundo com sua economia funcionando a todo vapor, em um discurso antológico do educador, Cristóvam Buarque, realizado no plenário do Senado em 11 de Novembro passado, que versa sobre “a prática de transformar honestidade em heroísmo em nosso país”.

A homenagem prestada ao batalhão de choque da polícia do Rio de Janeiro que, no cumprimento estrito de sua função, recusou o suborno oferecido pelo traficante Nem, serviu de base para o senador Cristovam Buarque trazer até nós, uma profunda reflexão sobre a origem dos males de nossa sociedade.


 Sr. Presidente, Srs. Senadores, embora o discurso do Senador Jorge Viana fosse especialmente sobre a situação do Acre, no que se refere ao fuso horário, que realmente é de uma distância que não consigo explicar bem – com o horário de verão aqui, Senador Eurípedes, em termos de tempo, o fuso horário de Brasília para o Acre vai ser o mesmo fuso de Brasília para a Europa, pelo menos na parte ocidental dela –, apesar de que o discurso dele tenha sido sobre tudo isso, ele tocou num ponto que tem a ver com a minha fala hoje: é o fato de que nós descobrimos, conseguimos, temos hoje novos heróis no Brasil. São os heróis PMs que recusaram propina e os heróis que conseguiram prender um traficante. E, como disse, há pouco, em aparte, Senador Jorge Viana, de fato foi um gesto de heroísmo. Agora, de fato, é um gesto que traz tristeza, quando a gente percebe que o nosso heroísmo está em não aceitar propina. 

Nós temos de tratar esses jovens PMs como nossos heróis, mas temos de tratar com tristeza o fato de que eles sejam heróis. Nós precisamos fazer uma reflexão em função disso, porque, no Brasil, a corrupção transformou-se numa coisa tão normal que quem não a aceita é herói. Em que momento da nossa história nós erramos que nos transformamos num país em que o heroísmo não está, como já foi em alguns momentos – e nesta semana tivemos uma audiência na Comissão de Relações Exteriores com aqueles que cuidam do cemitério de Pistoia, na Itália, onde foram enterrados os soldados brasileiros que morreram em campos de batalha na Europa, lutando contra o nazismo... Já tivemos esse heroísmo. Mas por que, em algum momento da história, nós nos desviamos do normal, daquilo que deveria ser, caímos no anormal, e os normais viraram heróis? Onde nós erramos? 

Aí a história é longa, Senador Eurípedes. Começa que, durante cerca de 350 anos, neste País, até seres humanos eram comprados, e vendidos, e explorados, e algemados e trabalhavam debaixo de chicote. Aquilo era uma corrupção. As pessoas não percebiam que era corrupção, na época da escravidão, haver escravos. E, aqui e ali, surgiam fazendeiros heroicos: os que soltavam dois ou três escravos. 

Vejam como esta contradição entre o heroísmo que realmente é heroico e o heroísmo por fazer o certo é antiga no Brasil. Os fazendeiros que davam alforria para alguns escravos eram heróis da ética, quando era o normal ou deveria ser o normal, mas não era, porque o normal era a escravidão. Como hoje o normal é a corrupção. 

É preciso fazer uma reflexão. Passamos da abolição. Mas não demos escolas para os ex-escravos. Não demos terras para os ex-escravos. Isso foi uma corrupção. Não fazer a reforma agrária imediatamente depois da abolição da escravatura foi um gesto de corrupção deste País. O latifúndio foi e é uma corrupção. Quando uma pessoa tem muita terra e outra não tem onde plantar o que precisa para comer, isso é roubo, corrupção. Mas a gente não percebe. Então, quando surge um fazendeiro que decide distribuir um pedaço da sua terra, ele é herói. Ele não está fazendo o normal, o certo, o comum; ele é herói. 

Temos escolas boas para os filhos das classes altas, pagando, inclusive, com o dinheiro público. Isso é ou não é uma corrupção se negamos a educação ao filho dos pobres? É uma corrupção. 

Temos um sistema de saúde eficiente para uma minoria da população e um sistema de saúde degradado para a maioria da população. Isso é ou não é uma corrupção? Mas é uma corrupção natural, aceita, comum, até invisível. 

Somos um País de uma tolerância perfeita, total com a corrupção a tal ponto de que quem não aceita propina é, de fato, não podemos negar, um herói. E esse heroísmo merece esta reflexão: onde erramos que se transformou em heroísmo o fato de se fazer o que é o certo, o que é o normal, mas que no Brasil ficou anormal? 

O que acontece é que no nosso País, desde o início, privatizamos o que deveria ser coletivo, o que deveria ser social. A terra, era preciso que servisse a todos, nós a privatizamos. A educação devia ser para todos, nós a privatizamos. A saúde devia ser para todos, nós a privatizamos. Nós privatizamos de tal maneira que não percebemos que é uma forma de corrupção, por exemplo, o vandalismo contra as coisas do Estado. Se alguém quebra vidro de um banco, vai preso. Se quebra vidro de uma escola pública, continua solto. Não é visto como crime. 

O celular quase fez desaparecer os orelhões deste País. Mas quantos orelhões encontrávamos inteiros, sem serem depredados, vandalizados, nas esquinas do Brasil? Raros eram mantidos íntegros. Por quê? Porque pertenciam a todos. Logo, cada um se sentia no direito de derrubar, de destruir, de depredar. 

Isso faz com cheguemos ao ponto de que ser honesto virou um heroísmo no Brasil. 

Isso acontece porque, no Brasil, o tal chamado patrimonialismo, ou seja, nós nos apropriamos do patrimônio que deveria ser de todos, levou a ponto de ser como hoje na política usufruir-se não só de propinas mas até de privilégios que, sendo legais, continuam sendo uma forma também de corrupção, já que é negado aos outros. Nós nos acostumamos com isso. Nós privatizamos o que devia ser de todos. Nós nos apropriamos – daí a palavra patrimonialismo –, o patrimônio coletivo da Nação brasileira virou objeto da cobiça e da apropriação por grupos. Este é o País do corporativismo, este é o País da propina, este é o País de uma coisa nova chamada estadualismo, cada Estado querer para si, sem uma visão global de conjunto, como se fosse possível ser feliz em um país rodeado de miséria. 

Senador Mozarildo, creio que uma sexta-feira permite que se traga aqui o reconhecimento do heroísmo desses PMs, mas se traga também a reflexão de que esse é um heroísmo que deveria ser algo absolutamente normal e não um gesto tão grave de heroísmo. 

Tratamos como natural, por exemplo, os corruptores. Tratamos como natural, por exemplo, alguns que não cumprem com suas obrigações no setor público, porque privatizamos o que deveria ser coletivo. E a consequência disso, Senador Anibal, é que hoje estamos, aos poucos, dividindo a população brasileira entre dois tipos: os cínicos e os céticos.

Os céticos são os que passam a não acreditar mais que é possível um país no qual ser honesto não seja um ato de heroísmo. Muitos estão céticos, e outros estão cínicos, são aqueles que antes diziam “rouba, mas faz; logo, é bom” e que hoje dizem “rouba, mas é um dos nossos; logo, não tem problema” ou aqueles que dizem “rouba, mas todos roubam, por que é que não vou roubar também?”. Isso é cinismo. 

Nós estamos caindo no cinismo, e o mais grave é que uma parcela expressiva da juventude está caindo no ceticismo ou no cinismo. A juventude militante está caindo no cinismo, e a juventude não militante está caindo no ceticismo. Sinceramente, do ponto de vista ético, não tenho dúvida de que o cínico é pior do que o cético, mas, do ponto de vista das consequências para o futuro do Brasil, o cínico e o cético produzirão as mesmas consequências negativas. 

Nós estamos caindo entre o cinismo e o ceticismo, e uma das provas disso é a falta de bandeiras que vemos hoje nas discussões dos problemas brasileiros. Hoje, a colunista da Folha de S. Paulo, Eliane Cantanhêde, escreveu sobre isso. Ela coloca que agora surgiram bandeirinhas – estou usando a expressão que ela não usou –, é a ficha limpa, são os royalties do petróleo, é a meia-entrada na Copa do Mundo, mas está faltando a grande bandeira geral nacional. E, sem uma bandeira geral nacional, não há como sair dessa polarização entre o cinismo e o ceticismo. Quando é que a gente vai retomar a grande bandeira? Será que a grande bandeira da gente é ter a Copa do Mundo, é ter as Olimpíadas? 

Estamos sabendo, é óbvio, que esse esforço pela paz no Rio de Janeiro tem a ver com as Olimpíadas. E eu me pergunto se, passadas as Olimpíadas, será mantida a ordem nos lugares onde há desordem. Ou será que, como já não vêm mais estrangeiros, como o Rio de Janeiro já não vai mais aparecer na televisão do mundo inteiro, os PMs voltarão para os quartéis, as Forças Armadas serão desmobilizadas e entregaremos o que foi conquistado para os bandidos? 

Nessa polarização entre ceticismo e cinismo, eu confesso que tenho dúvidas se o que se faz hoje no Rio de Janeiro com sucesso é para sempre ou é como na velha história brasileira, apenas para que os ingleses vejam. Mas, agora, os ingleses quais são? A Fifa. A gente está fazendo isso por que é o certo ou por que a Fifa quer ou por que o Comitê Olímpico quer? 

É bom sempre lembrar a origem de certas expressões como essa “para inglês ver”. Essa expressão vem de quando se proibiu o tráfico de escravos no Brasil. Na hora de assinar, muitos dirigentes brasileiros eram contrários à proibição do tráfico de escravos. E aí, Senador Mozarildo, uma das justificativas foi esta: “Não se preocupem, é só para inglês ver”. Os ingleses não queriam o tráfico de escravos, nem tanto por ética, mas porque, havendo escravos aqui, ficava difícil eles concorrerem com seus produtos e haver compradores para seus produtos. 

Antes, foi para inglês ver, mas, agora, é para a Fifa ver, é para o Comitê Olímpico ver, ou é para mudar o Brasil? Estamos divididos entre os céticos e os cínicos. É isso que faz com que o heroísmo – há heroísmo, sim, não diminuamos o tamanho do gesto – ocorra apenas para fazer o que todos deveriam fazer. 

Hoje é dia de reflexão e de reconhecimento. Temos de reconhecer o gesto inédito no Brasil de recusar propina de um traficante. Mas é um gesto de reflexão, para sabermos por que isso é heroísmo. Hoje é dia de homenagem a quem fez esse gesto, mas é dia de tristeza, de muita tristeza, por sermos de um País em que ser honesto está virando heroísmo, onde o honesto é herói. Algo está errado! 

Imagine uma guerra em que só um soldado fosse para a guerra! Ele seria herói? Seria herói, mas o país estaria perdido, porque um país não ganha uma guerra com um soldado sozinho. Ou todos nos empenhamos nessas batalhas desse momento, ou vamos fracassar, mesmo dando medalhas a um ou outro herói brasileiro, sem dar a maior medalha ao Brasil. 

Os PMs do Rio que prenderam esse bandido, cada um deles merece essa medalha, mas o Brasil não merece medalha por esse fato. Nosso País, o Brasil, ao contrário, merece o constrangimento pelo fato de que um PM, ao não receber propina, está fazendo um gesto de heroísmo. E insisto que é um gesto de heroísmo mesmo. Não o estou diminuindo, não! E, por isso, é mais grave ainda, por ser um gesto heróico. 

Senador Mozarildo, fico preocupado quando, diante de coisas com que todos estão se alegrando, trago uma dose de tristeza; preocupa-me isso. E sei até que, em política, essa é uma tragédia, porque o que as pessoas querem ouvir é o lado bonito, o lado glorioso, o lado maravilhoso, porque o que querem é jogar para debaixo do tapete o lado negativo. Foi assim durante 350 anos em que alguém ficaria horrorizado se, diante da alforria de alguns escravos, em vez de elogiar aquele fazendeiro, um abolicionista viesse aqui criticar a escravidão. O povo, o Brasil não queria falar de escravidão, queria falar daquele alforrista. Nem queria falar dos abolicionistas, mas daquele alforrista que liberava um, dois, três escravos e que merecia todo o nosso respeito, mas sem esconder a tragédia nacional. 

Lamento trazer essa dose de tristeza no meio do reconhecimento de um ato de heroísmo, mas creio que o papel de cada um de nós não é ficar apenas aqui se deslumbrando com o que aparece; nosso papel aqui é tentar mostrar o que não aparece, o que está nos subterrâneos da sociedade brasileira, não aquilo que está aflorando, de forma bonita, até no gesto de um ou outro cidadão brasileiro. E, nos subterrâneos, o que temos são razões para tristeza, a tristeza de uma corrupção generalizada, de uma sociedade dividida entre cínicos e céticos, numa aliança impossível, que, se fosse possível, não conseguiria construir o país de que precisamos, porque, no lugar de cínicos e de céticos, precisamos de crédulos e de militantes. É preciso crédulos em uma bandeira e militantes por ela. Isso está faltando. 

Insisto na minha pequeninha bandeira: fazer uma revolução que permita que, no Brasil, a escola seja de qualidade igual para todos. Uns podem ter roupas bonitas; outros, não. Uns podem ter casas grandes; outros, casas pequenas. Uns podem ter carro; outros podem andar de ônibus. Mas a escola tem de ser igual, absolutamente igual, para todos. Alguns vão estudar mais que outros, alguns terão mais sucesso que outros, porque têm mais talento, porque têm mais gosto, porque têm mais vocação, porque têm mais ousadia, mas não porque têm mais chance. A chance deve ser igual para todos. 

E acho que devemos fazer uma revolução também na saúde brasileira. Alguns podem ter roupas boas; outros, roupas simples. Alguns podem ter casas grandes; outros, casas pequenas. Alguns vão andar de carro; outros, de ônibus. Mas o hospital deve ser igual para todos, o ambulatório deve ser igual para todos, o remédio deve ser igualmente acessível. 

Há duas coisas que não podem ser desiguais: o acesso à educação e o acesso ao sistema de saúde. Se tudo mais for desigual, é uma desigualdade. Essas duas coisas desiguais são uma imoralidade. 

Essa seria uma bandeira, mas falta credulidade. Ninguém acredita que isso seja possível, como, durante 350 anos, ninguém acreditava que abolir a escravidão era possível, ninguém acreditava nisso. Hoje, ninguém acredita que seja possível pobre ter escola igualmente boa, igualmente bonita, com professores igualmente remunerados, como os ricos. Falta essa credulidade em algumas coisas. 

E aí a gente vê a situação de desigualdade entre as nações. No dia em que nosso herói é um PM que se nega a receber propina, na China, os heróis são os engenheiros e cientistas que conseguiram fazer duas naves se acoplarem no espaço. Veja que diferença! Como lembrou Jorge Viana, enquanto aqui a gente está querendo ocupar alguns bairros de uma cidade, lá eles estão ocupando o espaço sideral. E o pior, Senador Diniz, é que, há 40 anos, os chineses estavam muito atrás da gente em pesquisas espaciais. Os chineses estavam envolvidos com o fim de uma revolução, com o fim de uma revolução cultural, numa briga com a Índia e com a União Soviética, e, aqui, estávamos começando a construir um país. Paramos. E não estamos querendo retomar a dimensão da profundidade de olhar o que está nos subterrâneos da sociedade, querendo apenas comemorar o que está na superfície, na superfície da Copa, na superfície das Olimpíadas, na superfície de heróis que não aceitam propina, ao invés de olhar, nos subterrâneos, uma população em que 40% dos alfabetizados não sabem ler. Não falo dos não alfabetizados. 

Hoje, na televisão, foi divulgado que 46% de jovens médicos não passaram no exame para saber se estavam preparados minimamente. E quem aplicou o exame disse: “O que pedimos foi o mínimo”. E 46% não passaram. E pior, Senador Mozarildo, e V. Exª é médico, só se submeteram a esse exame os que quiseram. E se supõe que os que quiseram são os melhores, porque os piores não iriam se submeter a esse exame.
 
Esses são os subterrâneos. E esse subterrâneo a gente ignora. Aliás, o único subterrâneo de que hoje se fala no Brasil é o subterrâneo do pré-sal, é o subterrâneo físico. Do subterrâneo sociológico, do subterrâneo da sociedade, a gente não quer falar. A gente não se aprofunda e se deslumbra com a superfície e com alguns gestos belos que ocorrem de tempos em tempos, e, de fato, são belos, como esse dos PMS do Rio. E os fatos profundos, lá de baixo, lá de dentro? 

Por favor, não deixemos que o deslumbramento de um gesto obscureça nossa capacidade de ver a tristeza que há nos subterrâneos da sociedade brasileira. 

Era isso, Sr. Senador Mozarildo, que eu tinha a dizer. 
 



08 janeiro 2012

SOMOS TÃO INDEPENDENTES ASSIM?





“Os Vikings eram corajosos por causa do medo de serem desprezados” ― disse certa vez, o humanista e historiador Inglês, Theodore Zeldin. O autor do clássico, “Uma História da Humanidade”, diz que os vikings ao invadir a Normandia, foram inquiridos sobre quem era o chefe deles. Eles então responderam: “Viemos da Dinamarca e queremos conquistar a França. Não temos chefe. A autoridade é igual entre nós. Jamais nos submeteremos a alguém, seja quem for. Jamais aceitaremos qualquer tipo de servidão”.

Diante dos ferozes invasores, havia duas saídas para os da Normandia: lutar correndo o risco de morrer em batalha, ou render-se aos ditames dos vikings. Os Normandos escolheram a ultima opção: baixar as armas por amor à vida. Mas nesse “amor a vida”, na verdade, estava expresso o medo de morrer, quando assim disseram: “Vocês nos protegem do desamparo, e em troca serviremos a vocês em tudo que for preciso”.

E agora? O povo vencido sente-se inferiorizado diante daqueles que não temeram perder a vida, e arriscá-la no campo de batalha. Os Normandos capitularam em troca da segurança. O pagamento pela covardia de não lutar, é submeter-se ao desejo do outro.

Muitas perguntas lá dentro, me perturbam:

Será que hoje, na pós-modernidade, sou realmente “senhor de mim”?

Será que a submissão ainda não persiste, agora, com outra roupagem mais sutil?

Será que ao atar laços sociais, não estou eu buscando algum amparo frente ao enorme sentimento de desproteção?

Não vejo o homem pós-moderno tão independente assim. Vejo-o cada vez mais inseguro de si mesmo, mais indeciso sobre a decisão frente aos problemas de um mundo em transformação. Vejo-o mais dependente das descobertas tecnológicas que o atraem numa teia de necessidades  imperiosas e irresistíveis.

Segundo Theodore Zeldin, “A imagem cristã de Deus mudou por completo, de um tirano atemorizador e colérico exigindo obediência total, para um pai misericordioso e de infinita bondade. A ameaça de punição eterna foi abandonada. A maioria dos cristãos atirou inferno e purgatório na lata de lixo. Todavia, a geração atual gasta mais dinheiro em segurança do que no tempo dos nossos ancestrais”.

O certo é que a nova dimensão religiosa não apagou a dependência que diz que não somos uma ilha de segurança, pois dependemos do desejo do outro.
Hitler, com o seu ímpeto de superioridade foi um que explorou ao extremo o desejo de submissão das massas, para depois se ver dominado pelo medo de estar só.

Afinal, nenhum homem tem o poder de ser senhor e de ser necessário para conduzir outros, sem provocar insatisfação.
Como dizia Martin Buber, em seu mais emblemático livro, “EU e TU” – Centauro Editora (página 15):

“O lugar dos outros é indispensável para a nossa realização. A finalidade de não depender do outro é o contínuo morrer no decurso da vida humana.”


Por Levi B. Santos
Guarabira, 08 de janeiro de 2012


Site da imagem: danielcotrimp.blogspot.com

03 janeiro 2012

Estava Lá No Começo (Ou Descomeço)





Segundo Martin Heidegger, “o que origina o pensamento é a palavra, e não o contrário”. Françoise Dolto, psicanalista de crianças, em seu livro “Tudo é Linguagem”, corrobora com o pensador alemão, ao reafirmar a primazia e a importância da palavra, que tem na hora do nascimento do ser humano o vagido, como a primeira expressão de comunicação com a mãe.

É durante os primeiros meses de vida que iniciamos a construção de nossa biblioteca mental. Com o decorrer do tempo vamos acumulando palavras nos meandros intricados do nosso cérebro. Algumas delas não nos lembramos mais. São palavras que, de tão bem guardadas ou escondidas, acabaram por nós “esquecidas”. Apesar de não conscientes, estas palavras ainda agem sobre nós, determinando o que somos hoje. O certo, é que temos no nosso cérebro, arquivos acessíveis e inacessíveis à consciência.

O ser humano é nomeado ou recebe um nome antes de nascer. Ele ganha um nome para ser falado ou usado pelo outro ―, seu semelhante. “O ser humano antes de o ser, é essencialmente um ser falado. Ele é falado antes mesmo do seu nascimento” ― já dizia, Jacques Lacan.

Em analogia ao prólogo do evangelho atribuído a João, podemos afirmar: “NO  COMEÇO ERA A PALAVRA...”

Toda essa divagação preambular, foi no sentido de deter-me na sublime arte da poesia, uma vez, que o ato poético é da ordem da palavra. Diz-se do poeta que “ele é o artesão das palavras, que forja o verbo com martelo e bigorna”. Por que não dizer que a poesia é uma centelha divina (dádiva dos deuses ao homem), composta de palavras ordenadas ou desordenadas onde o leitor arranca ou extrai a mensagem singular que irá suavizar a sua realidade amarga.

No filme “Janela da Alma” há uma declaração muito interessante do poeta matogrossense, de Cuiabá, Manoel de Barros. Ele diz: “Eu sou muito abrigado pelo primitivo... Eu acho que o primitivo é que manda na minha alma, mais que os olhos. Eu não acho que entram pelo olho as coisas minhas. Elas não entram, elas vêm, elas aparecem de dentro, de dentro de mim [...]. O olho vê. A lembrança revê as coisas, e é a imaginação que transvê, que transfigura o mundo para o poeta e para o artista de forma geral”.

O poeta, o sonhador, é aquele que consegue enxergar dentro do peito, a criança que foi. É bem nos momentos de solidão que esse filhote imaginário explode, falando, delirando, como se ali estivesse a provocar estremecimentos pueris num corpo já maduro e cansado. O poeta é aquele que faz das palavras o seu brinquedo predileto, é aquele que dentro de si tem uma criança delirando com palavras. Se o poeta é aquele que goza o seu delírio particular, por que não dizer que somos, todos nós, eternos delirantes?!

Aprecio muito os delírios do poeta Manoel de Barros. Foi ele quem, num verso profundamente maravilhoso, traduziu os vagidos infantis inconscientes, aproveitando-se da desconstrução do prólogo Joanino.

Deixe a imaginação fluir, e se detenha, caro leitor e amigo, no significativo trecho poético que fala do nosso começo (ou descomeço):


No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá, onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para a cor, mas para o som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
(Manoel de Barros)


Site da imagem: faloutchau.com.br

Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 03 de janeiro de 2012