A homenagem prestada ao batalhão de choque da polícia do Rio de Janeiro que, no cumprimento estrito de sua função, recusou o
suborno oferecido pelo traficante Nem, serviu de base para o senador Cristovam Buarque trazer até nós, uma profunda
reflexão sobre a origem dos males de nossa sociedade.
Sr. Presidente, Srs.
Senadores, embora o discurso do Senador Jorge Viana fosse especialmente sobre a
situação do Acre, no que se refere ao fuso horário, que realmente é de uma
distância que não consigo explicar bem – com o horário de verão aqui, Senador
Eurípedes, em termos de tempo, o fuso horário de Brasília para o Acre vai ser o
mesmo fuso de Brasília para a Europa, pelo menos na parte ocidental dela –,
apesar de que o discurso dele tenha sido sobre tudo isso, ele tocou num ponto
que tem a ver com a minha fala hoje: é o fato de que nós descobrimos,
conseguimos, temos hoje novos heróis no Brasil. São os heróis PMs que recusaram
propina e os heróis que conseguiram prender um traficante. E, como disse, há
pouco, em aparte, Senador Jorge Viana, de fato foi um gesto de heroísmo. Agora,
de fato, é um gesto que traz tristeza, quando a gente percebe que o nosso
heroísmo está em não aceitar propina.
Nós temos de tratar esses jovens PMs como nossos heróis, mas
temos de tratar com tristeza o fato de que eles sejam heróis. Nós precisamos
fazer uma reflexão em função disso, porque, no Brasil, a corrupção
transformou-se numa coisa tão normal que quem não a aceita é herói. Em que
momento da nossa história nós erramos que nos transformamos num país em que o
heroísmo não está, como já foi em alguns momentos – e nesta semana tivemos uma
audiência na Comissão de Relações Exteriores com aqueles que cuidam do
cemitério de Pistoia, na Itália, onde foram enterrados os soldados brasileiros
que morreram em campos de batalha na Europa, lutando contra o nazismo... Já
tivemos esse heroísmo. Mas por que, em algum momento da história, nós nos
desviamos do normal, daquilo que deveria ser, caímos no anormal, e os normais
viraram heróis? Onde nós erramos?
Aí a história é longa, Senador Eurípedes. Começa que,
durante cerca de 350 anos, neste País, até seres humanos eram comprados, e
vendidos, e explorados, e algemados e trabalhavam debaixo de chicote. Aquilo
era uma corrupção. As pessoas não percebiam que era corrupção, na época da
escravidão, haver escravos. E, aqui e ali, surgiam fazendeiros heroicos: os que
soltavam dois ou três escravos.
Vejam como esta contradição entre o heroísmo que realmente é
heroico e o heroísmo por fazer o certo é antiga no Brasil. Os fazendeiros que
davam alforria para alguns escravos eram heróis da ética, quando era o normal
ou deveria ser o normal, mas não era, porque o normal era a escravidão. Como
hoje o normal é a corrupção.
É preciso fazer uma reflexão. Passamos da abolição. Mas não
demos escolas para os ex-escravos. Não demos terras para os ex-escravos. Isso
foi uma corrupção. Não fazer a reforma agrária imediatamente depois da abolição
da escravatura foi um gesto de corrupção deste País. O latifúndio foi e é uma
corrupção. Quando uma pessoa tem muita terra e outra não tem onde plantar o que
precisa para comer, isso é roubo, corrupção. Mas a gente não percebe. Então,
quando surge um fazendeiro que decide distribuir um pedaço da sua terra, ele é
herói. Ele não está fazendo o normal, o certo, o comum; ele é herói.
Temos escolas boas para os filhos das classes altas,
pagando, inclusive, com o dinheiro público. Isso é ou não é uma corrupção se
negamos a educação ao filho dos pobres? É uma corrupção.
Temos um sistema de saúde eficiente para uma minoria da
população e um sistema de saúde degradado para a maioria da população. Isso é
ou não é uma corrupção? Mas é uma corrupção natural, aceita, comum, até
invisível.
Somos um País de uma tolerância perfeita, total com a
corrupção a tal ponto de que quem não aceita propina é, de fato, não podemos
negar, um herói. E esse heroísmo merece esta reflexão: onde erramos que se
transformou em heroísmo o fato de se fazer o que é o certo, o que é o normal,
mas que no Brasil ficou anormal?
O que acontece é que no nosso País, desde o início,
privatizamos o que deveria ser coletivo, o que deveria ser social. A terra, era
preciso que servisse a todos, nós a privatizamos. A educação devia ser para
todos, nós a privatizamos. A saúde devia ser para todos, nós a privatizamos.
Nós privatizamos de tal maneira que não percebemos que é uma forma de
corrupção, por exemplo, o vandalismo contra as coisas do Estado. Se alguém
quebra vidro de um banco, vai preso. Se quebra vidro de uma escola pública,
continua solto. Não é visto como crime.
O celular quase fez desaparecer os orelhões deste País. Mas
quantos orelhões encontrávamos inteiros, sem serem depredados, vandalizados,
nas esquinas do Brasil? Raros eram mantidos íntegros. Por quê? Porque
pertenciam a todos. Logo, cada um se sentia no direito de derrubar, de
destruir, de depredar.
Isso faz com cheguemos ao ponto de que ser honesto virou um
heroísmo no Brasil.
Isso acontece porque, no Brasil, o tal chamado patrimonialismo,
ou seja, nós nos apropriamos do patrimônio que deveria ser de todos, levou a
ponto de ser como hoje na política usufruir-se não só de propinas mas até de
privilégios que, sendo legais, continuam sendo uma forma também de corrupção,
já que é negado aos outros. Nós nos acostumamos com isso. Nós privatizamos o
que devia ser de todos. Nós nos apropriamos – daí a palavra patrimonialismo –,
o patrimônio coletivo da Nação brasileira virou objeto da cobiça e da
apropriação por grupos. Este é o País do corporativismo, este é o País da
propina, este é o País de uma coisa nova chamada estadualismo, cada Estado
querer para si, sem uma visão global de conjunto, como se fosse possível ser
feliz em um país rodeado de miséria.
Senador Mozarildo, creio que uma sexta-feira permite que se
traga aqui o reconhecimento do heroísmo desses PMs, mas se traga também a
reflexão de que esse é um heroísmo que deveria ser algo absolutamente normal e
não um gesto tão grave de heroísmo.
Tratamos como natural, por exemplo, os corruptores. Tratamos
como natural, por exemplo, alguns que não cumprem com suas obrigações no setor
público, porque privatizamos o que deveria ser coletivo. E a consequência
disso, Senador Anibal, é que hoje estamos, aos poucos, dividindo a população
brasileira entre dois tipos: os cínicos e os céticos.
Os céticos são os que passam a não acreditar mais que é
possível um país no qual ser honesto não seja um ato de heroísmo. Muitos estão
céticos, e outros estão cínicos, são aqueles que antes diziam “rouba, mas faz;
logo, é bom” e que hoje dizem “rouba, mas é um dos nossos; logo, não tem
problema” ou aqueles que dizem “rouba, mas todos roubam, por que é que não vou
roubar também?”. Isso é cinismo.
Nós estamos caindo no cinismo, e o mais grave é que uma
parcela expressiva da juventude está caindo no ceticismo ou no cinismo. A
juventude militante está caindo no cinismo, e a juventude não militante está
caindo no ceticismo. Sinceramente, do ponto de vista ético, não tenho dúvida de
que o cínico é pior do que o cético, mas, do ponto de vista das consequências
para o futuro do Brasil, o cínico e o cético produzirão as mesmas consequências
negativas.
Nós estamos caindo entre o cinismo e o ceticismo, e uma das
provas disso é a falta de bandeiras que vemos hoje nas discussões dos problemas
brasileiros. Hoje, a colunista da Folha de S. Paulo, Eliane Cantanhêde,
escreveu sobre isso. Ela coloca que agora surgiram bandeirinhas – estou usando
a expressão que ela não usou –, é a ficha limpa, são os royalties do petróleo, é a meia-entrada
na Copa do Mundo, mas está faltando a grande bandeira geral nacional. E, sem
uma bandeira geral nacional, não há como sair dessa polarização entre o cinismo
e o ceticismo. Quando é que a gente vai retomar a grande bandeira? Será que a
grande bandeira da gente é ter a Copa do Mundo, é ter as Olimpíadas?
Estamos sabendo, é óbvio, que esse esforço pela paz no Rio
de Janeiro tem a ver com as Olimpíadas. E eu me pergunto se, passadas as
Olimpíadas, será mantida a ordem nos lugares onde há desordem. Ou será que,
como já não vêm mais estrangeiros, como o Rio de Janeiro já não vai mais
aparecer na televisão do mundo inteiro, os PMs voltarão para os quartéis, as
Forças Armadas serão desmobilizadas e entregaremos o que foi conquistado para
os bandidos?
Nessa polarização entre ceticismo e cinismo, eu confesso que
tenho dúvidas se o que se faz hoje no Rio de Janeiro com sucesso é para sempre
ou é como na velha história brasileira, apenas para que os ingleses vejam. Mas,
agora, os ingleses quais são? A Fifa. A gente está fazendo isso por que é o
certo ou por que a Fifa quer ou por que o Comitê Olímpico quer?
É bom sempre lembrar a origem de certas expressões como essa
“para inglês ver”. Essa expressão vem de quando se proibiu o tráfico de escravos
no Brasil. Na hora de assinar, muitos dirigentes brasileiros eram contrários à
proibição do tráfico de escravos. E aí, Senador Mozarildo, uma das
justificativas foi esta: “Não se preocupem, é só para inglês ver”. Os ingleses
não queriam o tráfico de escravos, nem tanto por ética, mas porque, havendo
escravos aqui, ficava difícil eles concorrerem com seus produtos e haver
compradores para seus produtos.
Antes, foi para inglês ver, mas, agora, é para a Fifa ver, é
para o Comitê Olímpico ver, ou é para mudar o Brasil? Estamos divididos entre
os céticos e os cínicos. É isso que faz com que o heroísmo – há heroísmo, sim,
não diminuamos o tamanho do gesto – ocorra apenas para fazer o que todos
deveriam fazer.
Hoje é dia de reflexão e de reconhecimento. Temos de
reconhecer o gesto inédito no Brasil de recusar propina de um traficante. Mas é
um gesto de reflexão, para sabermos por que isso é heroísmo. Hoje é dia de
homenagem a quem fez esse gesto, mas é dia de tristeza, de muita tristeza, por
sermos de um País em que ser honesto está virando heroísmo, onde o honesto é
herói. Algo está errado!
Imagine uma guerra em que só um soldado fosse para a guerra!
Ele seria herói? Seria herói, mas o país estaria perdido, porque um país não
ganha uma guerra com um soldado sozinho. Ou todos nos empenhamos nessas
batalhas desse momento, ou vamos fracassar, mesmo dando medalhas a um ou outro
herói brasileiro, sem dar a maior medalha ao Brasil.
Os PMs do Rio que prenderam esse bandido, cada um deles
merece essa medalha, mas o Brasil não merece medalha por esse fato. Nosso País,
o Brasil, ao contrário, merece o constrangimento pelo fato de que um PM, ao não
receber propina, está fazendo um gesto de heroísmo. E insisto que é um gesto de
heroísmo mesmo. Não o estou diminuindo, não! E, por isso, é mais grave ainda,
por ser um gesto heróico.
Senador Mozarildo, fico preocupado quando, diante de coisas
com que todos estão se alegrando, trago uma dose de tristeza; preocupa-me isso.
E sei até que, em política, essa é uma tragédia, porque o que as pessoas querem
ouvir é o lado bonito, o lado glorioso, o lado maravilhoso, porque o que querem
é jogar para debaixo do tapete o lado negativo. Foi assim durante 350 anos em
que alguém ficaria horrorizado se, diante da alforria de alguns escravos, em
vez de elogiar aquele fazendeiro, um abolicionista viesse aqui criticar a
escravidão. O povo, o Brasil não queria falar de escravidão, queria falar
daquele alforrista. Nem queria falar dos abolicionistas, mas daquele alforrista
que liberava um, dois, três escravos e que merecia todo o nosso respeito, mas
sem esconder a tragédia nacional.
Lamento trazer essa dose de tristeza no meio do
reconhecimento de um ato de heroísmo, mas creio que o papel de cada um de nós
não é ficar apenas aqui se deslumbrando com o que aparece; nosso papel aqui é
tentar mostrar o que não aparece, o que está nos subterrâneos da sociedade
brasileira, não aquilo que está aflorando, de forma bonita, até no gesto de um
ou outro cidadão brasileiro. E, nos subterrâneos, o que temos são razões para
tristeza, a tristeza de uma corrupção generalizada, de uma sociedade dividida
entre cínicos e céticos, numa aliança impossível, que, se fosse possível, não
conseguiria construir o país de que precisamos, porque, no lugar de cínicos e
de céticos, precisamos de crédulos e de militantes. É preciso crédulos em uma
bandeira e militantes por ela. Isso está faltando.
Insisto na minha pequeninha bandeira: fazer uma revolução
que permita que, no Brasil, a escola seja de qualidade igual para todos. Uns
podem ter roupas bonitas; outros, não. Uns podem ter casas grandes; outros,
casas pequenas. Uns podem ter carro; outros podem andar de ônibus. Mas a escola
tem de ser igual, absolutamente igual, para todos. Alguns vão estudar mais que
outros, alguns terão mais sucesso que outros, porque têm mais talento, porque
têm mais gosto, porque têm mais vocação, porque têm mais ousadia, mas não
porque têm mais chance. A chance deve ser igual para todos.
E acho que devemos fazer uma revolução também na saúde brasileira.
Alguns podem ter roupas boas; outros, roupas simples. Alguns podem ter casas
grandes; outros, casas pequenas. Alguns vão andar de carro; outros, de ônibus.
Mas o hospital deve ser igual para todos, o ambulatório deve ser igual para
todos, o remédio deve ser igualmente acessível.
Há duas coisas que não podem ser desiguais: o acesso à
educação e o acesso ao sistema de saúde. Se tudo mais for desigual, é uma
desigualdade. Essas duas coisas desiguais são uma imoralidade.
Essa seria uma bandeira, mas falta credulidade. Ninguém
acredita que isso seja possível, como, durante 350 anos, ninguém acreditava que
abolir a escravidão era possível, ninguém acreditava nisso. Hoje, ninguém
acredita que seja possível pobre ter escola igualmente boa, igualmente bonita,
com professores igualmente remunerados, como os ricos. Falta essa credulidade
em algumas coisas.
E aí a gente vê a situação de desigualdade entre as nações.
No dia em que nosso herói é um PM que se nega a receber propina, na China, os
heróis são os engenheiros e cientistas que conseguiram fazer duas naves se
acoplarem no espaço. Veja que diferença! Como lembrou Jorge Viana, enquanto
aqui a gente está querendo ocupar alguns bairros de uma cidade, lá eles estão
ocupando o espaço sideral. E o pior, Senador Diniz, é que, há 40 anos, os
chineses estavam muito atrás da gente em pesquisas espaciais. Os chineses
estavam envolvidos com o fim de uma revolução, com o fim de uma revolução
cultural, numa briga com a Índia e com a União Soviética, e, aqui, estávamos começando
a construir um país. Paramos. E não estamos querendo retomar a dimensão da
profundidade de olhar o que está nos subterrâneos da sociedade, querendo apenas
comemorar o que está na superfície, na superfície da Copa, na superfície das
Olimpíadas, na superfície de heróis que não aceitam propina, ao invés de olhar,
nos subterrâneos, uma população em que 40% dos alfabetizados não sabem ler. Não
falo dos não alfabetizados.
Hoje, na televisão, foi divulgado que 46% de jovens médicos
não passaram no exame para saber se estavam preparados minimamente. E quem
aplicou o exame disse: “O que pedimos foi o mínimo”. E 46% não passaram. E
pior, Senador Mozarildo, e V. Exª é médico, só se submeteram a esse exame os
que quiseram. E se supõe que os que quiseram são os melhores, porque os piores
não iriam se submeter a esse exame.
Esses são os subterrâneos. E esse subterrâneo a gente
ignora. Aliás, o único subterrâneo de que hoje se fala no Brasil é o
subterrâneo do pré-sal, é o subterrâneo físico. Do subterrâneo sociológico, do
subterrâneo da sociedade, a gente não quer falar. A gente não se aprofunda e se
deslumbra com a superfície e com alguns gestos belos que ocorrem de tempos em
tempos, e, de fato, são belos, como esse dos PMS do Rio. E os fatos profundos,
lá de baixo, lá de dentro?
Por favor, não deixemos que o deslumbramento de um gesto
obscureça nossa capacidade de ver a tristeza que há nos subterrâneos da
sociedade brasileira.
Era isso, Sr. Senador Mozarildo, que eu tinha a dizer.