Na
mitologia grega, Atena, deusa da Guerra e da Sabedoria, em seu caminhar, nunca se
desgrudava de uma coruja pousada em seus ombros.
Essa
ave tem a capacidade de ver na escuridão o que os outros seres não vêem. O dom
inato de profunda conhecedora daquilo que estava oculto, fez com que esse
pássaro se tornasse, na cultura ocidental, o símbolo do conhecimento. O
instinto nato de, com olhos arregalados, permanecer a noite inteira vigilante e
atenta, fez dela o símbolo maior para os gregos que consideravam o período
noturno propício ao filosofar e ao exercício do intelecto.
O
século das luzes, tendo a razão como sua maior lâmpada, veio com uma tarefa
árdua e quase impossível: a de iluminar as densas trevas da irracionalidade, ou
do oculto que existia em cada indivíduo. O ideal iluminista, na época, foi bem
representado no quadro de Goya, onde se vê, em destaque,
monstros povoando o sonho da razão (vide foto do topo). A pintura do artista
reflete um ser frágil, mergulhado em um mundo tenebrosamente onírico, cercado
por monstros da irracionalidade a espantar a razão para bem longe.
A
certeza, a coerência e a estabilidade do idealismo iluminista deram lugar na
pós-modernidade, ao seu paradoxo ― ansiedade da incerteza, a insegurança e o
mal estar de um mundo em desordem. Na pós-modernidade a supremacia da razão parece sucumbir ante à
re-sacralização do mundo.
Sérgio Paulo Rouanet, considerado
por muitos, defensor da razão iluminista, aponta uma terceira via para amenizar
o mal estar da pós-modernidade entre as diversas culturas; uma via que passa
pela manutenção e observância de um núcleo mínimo de princípios universais: “Se você tem um mundo dominado por
particularismos selvagens sem regras universais que permitam a coexistência
não-antagônica desses particularismos, você vai ter um mundo de todos contra
todos, uma guerra de culturas.” (Mal−Estar
na Modernidade – Editora Companhia das Letras)
O fundador da psicanálise, foi um iluminista. No projeto de Freud, a psicanálise
através da deusa razão imunizaria o sujeito contra todos os messianismos.
Todavia, em contraste, ele sabia que a natureza paradoxal/pulsional do homem
era ineducável. Lá no fundo ele pressentia que os ideais universalistas podiam
ser vencidos por paixões nacionais, raciais e religiosas.
“A Coruja e o Sambódromo”
― de S. P. Rouanet (filósofo e ensaísta membro da Academia de Letras) é uma
humorada e significativa fábula que tem no centro de sua trama uma coruja (a deusa razão) em um voo incerto.
Trago,
com os devidos créditos ao autor, o vôo solitário dessa ave totêmica pelo mundo afora. O
ponto final de sua angustiada viagem é o sambódromo, onde se queda profundamente
deprimida com o que viu e ouviu:
“A Coruja e o Sambódromo”(texto condensado)
(Mal-Estar
na Modernidade – S. P. Rouanet)
A
heroína desse ensaio é uma Coruja. Ela já foi uma voz arrogante, pois
representava a razão universal, tanto a teórica, capaz de compreender o mundo,
como a razão prática, capaz de legislar para os homens. Mas hoje, anda triste e
cabisbaixa, tiritando de frio e com medo
da sombra. Ela lembra com orgulho do seu período de aproximação quando foi
canonizada na Notre
Dame, transformando-se na deusa da
razão [...].
Mas
tudo isso é passado. A coruja resolve investigar o presente: quem sabe se no mundo contemporâneo há
ainda lugar para ela?
A coruja resolve viajar [...]. [...] Ela está
sendo acusada de ser um pássaro etnocêntrico, que quer transferir para o mundo
inteiro hábitos que só valem nos bosques europeus, é um pássaro totalitário,
que quer impor seus pios crepusculares a todo o resto da floresta que vêm de
centenas de passarinhos diversos, com suas cordas vocais próprias, com sua
plumagem inconfundível, e com seus ritos amorosos característicos.
Ela está interessada em visitar algumas
regiões conflagradas do planeta. Agora
que o fim da União Soviética eliminou o risco de uma Terceira Guerra Mundial,
ela percebeu perplexa, que a Primeira Guerra Mundial está acontecendo de novo
na Iugoslávia. Que a guerra de 1914-18 está incendiando de novo os Bálcãs
[...]. Escutando tantas alusões à Eslovênia, à Croácia e a Dalmácia, ela não
pode acreditar na dissolução do império austro-húngaro [...]. Mas nada disso a
impediu de perceber o essencial: a matança indiscriminada de homens, mulheres e
crianças em nome de ignóbeis particularismos nacionais, étnicos e religiosos.
Em
Berlim a coruja observa, com nojo, cenas de violência semelhantes as que
ocorreram na véspera da Segunda Guerra.
As vítimas, agora, são turcos, negros e
vietnamitas.[...].
Contendo
a custo uma golfada de vômito, a coruja vai visitar o outro campo ― o dos discriminados. Ali decerto ela ouvirá opiniões mais racionais. Através do
sótão, observa uma festa de estudantes estrangeiros. Há muito vinho e o
ambiente é caloroso e fraterno.. Estão presentes um paquistanês, um nigeriano e
um brasileiro. É um grupo heterogêneo, mas unificado por uma emoção forte ― o
ódio ao europeu ― por uma idéia central ― a especificidade do Terceiro Mundo ―,
e por uma ambição comum ―manter a identidade das respectivas culturas. [...]
Desgostosa
a coruja voa para o Oriente, recordando-se de que foram os muçulmanos que
divulgaram no mundo civilizado a ciência grega, contribuindo para uma visão
secular do mundo. Ela pára no Irã. Mas não consegue falar com os poetas Fardusi
e Hafiz de Chiraz, como desejava. Os interlocutores estão todos muito ocupados,
dilapidando uma adúltera. [...]. [...] A caminho, passa por uma multidão
vociferante diante da embaixada da índia. O que tinha se passado? Um dos
manifestantes explica: era um protesto contra os fanáticos hinduístas que em
nome de Brahma tnham destruído uma mesquita perto de Calcutá. A coruja chega ao
seu destino mas não encontra o embaixador. Ele tinha ido a um serviço
religioso. Certamente a um mistério de Elêusis, sugere a coruja, esperançosa.
Nada disso, responde o mordomo, foi
ouvir o pregador evangélico Billy Graham. Abre-se a porta da embaixada do
Brasil, ao lado, e sai uma robusta senhora, com uma faca afiada. Felizmente, a
coruja percebe a tempo que a mulher estava mal-intencionada: na ausência de uma
galinha preta, uma gorda coruja poderia ser agradável aos exus.
Ainda
com o coração aos pinotes, a coruja, atravessa o Atlântico. Ela pousa numa
universidade americana. Está se realizando uma assembléia universitária, o que interessa imediatamente a coruja, animal
político por excelência. Discute-se a questão dos direitos humanos no campus.
[...]. [...] Um militante gay diz que as liberdades de 1789 se dirigiam apenas
aos heterossexuais, enquanto um ativista negro afirma que a Declaração dos
Direitos Humanos só pensara na emancipação dos europeus. O mal foi que a
revolução visara o homem em geral, e portanto, como correlato, o indivíduo
abstrato, em vez de visar
particularidades concretas, como os negros, as mulheres, os índios.[...]. [...]
A coruja tenta defender-se, dizendo, por exemplo, que sua Atenas estava muito longe de
discriminar os homossexuais, mas é severamente reprimida por usar essa palavra,
em vez de “pessoas de orientação diferente dos heterossexuais"[...]. [...] Ela
ainda quer argumentar, mas desanima
quando a “chairperson” a
acusa de ter uma posição individualista, falando em seu próprio nome, em vez de
falar como porta-voz credenciada da comunidade zoológica à qual pertence,
defendendo os direitos humanos em vez de defender a identidade cultural das
corujas, e perdendo, em conseqüência, uma excelente oportunidade de propor um
termo politicamente correto para designar a coruja ― por exemplo, “animal com
horários notívagos diferentes dos demais dos horários matinais dos demais
pássaros”.
A
coruja faz nova tentativa e pousa no México, onde um professor como nome de
herói de Tolstoi tenta há vários anos desescolarizar a sociedade. Há dois seminários em salas contíguas. Num
deles, o tema é “A Ilusão da Ciência”. Um indiano de Goa diz que a ciência é
uma invenção eurocêntrica destinada a subjugar os povos do Terceiro Mundo. Um
discípulo de Foucault diz que a ciência é uma prática de poder, destinada a
produzir a docilidade social.[...]. [...] Um teólogo de Tubingen declara que a
ciência tinha privado o homem de Deus, opinião partilhada por um antropólogo
que de tanto estudar uma comunidade religiosa eclética se vestia com um
camisolão branco e se julgava a reencarnação de São João Batista.
Aturdida
a coruja passa para a sala ao lado. Outro grupo estuda a questão da
moralidade.[...]. Um missionário presbiteriano
que dedicara os últimos vinte anos a evangelizar os pigmeus informou que
essa interessante cultura praticava o Decálogo às avessas, com grande
austeridade: por exemplo, era eticamente
obrigatório desejar a mulher do próximo e insultar pai e mãe, o que provocava
enormes sofrimentos, pois esse povo era naturalmente casto e dotado de grande
piedade filial.
Mas
o ambiente vai ficando irrespirável. Um médico homeopata que tinha se
convertido ao Xamanismo enfumaça a sala com fumigações pestilenciais. [...].
[...] As agressões se generalizam, e o seminário termina ingloriamente, com a
fuga desabalada dos mais tímidos pelas alamedas do parque. A própria coruja
deixa algumas penas na refrega. [...]
Ela
chega ao Rio. Ei-la no sambódromo. Há um grande desfile, um carro alegórico
cheio de bananas e abacaxis, mães de santo girando com suas saias rodadas.
Macunaíma fazendo gestos obscenos para as arquibancadas e um samba-enredo
composto pelo modesto autor deste ensaio. O tema é a emergência entre nós de um novo tipo de
humanidade, sensual, espontâneo e intuitivo em tudo diferente da humanidade
gringa; o florescimento, em nosso meio,
de um saber próprio, de uma ciência ajustada às particularidades
nacionais; e o surgimento de uma nova moral, que convenha ao nosso clima, à
nossa formação multirracial e às nossas raízes históricas.
É
demais para a coruja. Ela diz coisas sentenciosas que ninguém quer ouvir e voa,
deprimida, em direção a um pouso incerto.
P.S.: “Devido não só às discrepâncias
existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à
diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são
tão simples assim.” (Freud, em “Mal-Estar na Civilização”
― Editora Imago)
Guarabira, 12 de setembro de 2013