29 dezembro 2014

Uma Fuga Para o Lazer?!




É em época de final de ano e começo do que está por vir que a grande maioria dos terráqueos da espécie “homo sapiens” deixa as suas atividades obrigatórias para o descanso e lazer. Não por acaso, o mito ocidental da criação fala de um Criador que escolhe o final da semana para descansar de sua árdua tarefa.

Theodore Zeldin — um dos mais importantes pensadores da modernidade —, em “Uma História Íntima da Humanidade” já dizia: “Todos os seres humanos são, por sua origem, escapistas”. 

Todos, sem exceção, exercem a fuga da realidade dolorosa do trabalho. Até aqueles que nas férias permanecem estáticos em seus lares, viajam em pensamento. Não deixam de viajar os que têm na arte seu exercício diário: é que eles se abstraem da realidade em seus mundos imaginários, mesmo sem sair do lugar. Sobre a fuga da realidade, o filósofo grego, Heráclito (552 — 487 a.C.) já afirmava em seu ceticismo: “estando o Universo em constante mudança, não há para onde fugir”. 

Às vezes, o refúgio das férias se transforma em dores da alma. A medicina, sempre ela, já descobriu a Síndrome do Lazer: trata-se de um quadro patológico em que crises de ansiedade severas, nas férias, assolam indivíduos obsedados pela rotina de trabalho: a abstinência abrupta do emprego por trinta dias é responsável por suas dores de cabeça, depressão e noites insones. Para os portadores dessa síndrome, que não conseguem se desligar do trabalho nas horas livres, a solução é levar para seu suposto ambiente de lazer, alguma ferramenta (celular, laptop, etc) que possa simular o ambiente laboral.

Como o mundo anda passando por um estado tão frenético e caótico, o indivíduo ao entrar de férias, pode estar simplesmente arranjando sarna para se coçar: na ânsia de fugir do intolerável pode acabar caindo em um outro lugar igualmente insuportável. 
  
Em tempos de globalização, a sociedade tecnológica pós-industrial com seu discurso racional vem subjugando os indivíduos (peças de sua engrenagem) aos seus ditames: para ela, tanto o trabalho quanto o lazer seguem uma lógica mecanicista ou mercadológica. Ao programar o seu “lazer correto”, a mídia não leva em conta a subjetividade de cada pessoa. Na era atual, o esforço dispensado na prevalência dos projetos consumistas é acachapante, e o que menos importa são o descanso e o ócio criativo.

Dizem que os que cultivam a arte já vivem em permanente fuga. Os artistas, penso, não são acometidos da síndrome do lazer, pois, vivem constantemente empenhados em fazer de sua ansiedade uma fonte inesgotável de belas criações. É que eles, em sua longa experiência na arte de fugir pela imaginação, quanto mais ansiosos ficam, mais produzem.

Alguns dizem que o nosso desejo de tirar férias provém de um arquétipo que foi implantado e adormecido em nossa psique desde tempos imemoriais: arraigada nas camadas profundas de nossa mente existe uma parte secreta que nos estimula a vagar pelo mundo. É que no curso da História fomos primeiramente nômades. Só depois é que nos tornamos sedentários.

Domenico de Masi, em seu best seller, “O Ócio Criativo”, chega a afirmar que “para reencontrar a prazerosa felicidade, os cidadãos se sentem, periodicamente, atiçados pelo demônio da viagem”.

São muitas as opções ou dicas de “férias inteligentes” oferecidas na internet. Há milhares de anúncios apelativos, tipo: O cronograma está muito apertado, portanto, projete suas férias com urgência, e fuja da superlotação nos transportes, da poluição sonora, do estresse, da violência, do engarrafamento no trânsito.

Mas o que há de se fazer, sabendo que os dias de dezembro e janeiro, os mais tumultuados do ano são, de praxe, reservados para o lazer dos funcionários municipais, estaduais e federais?  Muitos poderão pensar, com certo grau de congruência, que tudo não passa de despeito do pobre ensaísta que, por ora, teima em nadar contra a corrente de um caudaloso rio.

 À multidão de resignados e corajosos que saem de férias nessa época, só me resta desejar que voltem aos seus lares menos cansados e mais revigorados para enfrentar mais um ano que se prenuncia carregadíssimo, em todos os aspectos. Tudo faz crer que os dias de 2015 serão mais interessantes, eletrizantes e decisivos em todos os setores de nossas vidas, que os de 2014 (ano em que as falácias foram usadas com um despudor nunca visto).




Por Levi B. Santos
Guarabira, 29 de dezembro de 2014

Site da Imagem:  jornaldaorla.com.br

15 dezembro 2014

Um Natal sem Comilança




Há poucos dias, encerrando a última consulta do ano a meu endocrinologista ataquei com essa pergunta: “Como seria a minha ceia de Natal, doutor?”

 — Sua ceia de Natal será primorosa, por que não? — confidenciou-me.

Cá comigo, por alguns segundos, fiquei a me perguntar: “Como poderia ser primorosa uma ceia de Natal sem torta, sem vinho, sem coca-cola, sem docinhos, sem pratos maravilhosamente caprichados, carregados na manteiga e nas massas?”

O endocrinologista com os seus possíveis 70 anos (formou-se em medicina um ano antes de mim), como que adivinhando minhas conjecturas silenciosas, exclamou:

— Puxa rapaz, sua ceia poderá ser saudável e maravilhosa! Você vai comer do arroz, do peru ou do chester, com abundantes verduras, depois, rebate no final com muitas frutas.

— Como comer muitas frutas, doutor, se o senhor aconselhou-me devorar apenas duas frutas por dia?

— Ué! Uma salada de muitas frutas! — disse enfático, olhando-me por cima dos óculos de grossas lentes.

Sua afirmação consoladora estimulou-me o riso. Como médico, sei que o uso de certos clichês é importantíssimo para elevar a auto-estima do doente. Deu vontade, mas me contive, não perguntando quantas vezes em seu consultório o velho especialista em diabetes teria repetido para cada cliente a “tirada” da salada.

— Se as minhas taxas de glicose, uréia e creatinina estiverem normais, posso dar uma saidinha da dieta, doutor? — perguntei, quase sabendo sua resposta.

— Aí é que reside o perigo, meu colega. Você se esbalda e depois vem aqui começar todo o processo, como nunca estivesse se tratando. Quer isso? — indagou o endocrinologista de forma intimidadora. 

Conformei-me com o veredicto médico e saí do recinto da clínica matutando com meus botões: “Vou tirar de letra!”. É que já estava, há um mês, adaptado à dieta magra e insossa complementada com biscoitinhos “diet” que me fizeram perder, até agora, cerca de 1,5 quilos. Olhando para a barriga constato que, por enquanto, as calças vão dando para usar, necessitando apenas afivelar o cinturão um buraquinho adiante.

Os poetas dizem que não percebemos que morremos aos poucos à medida que paulatinamente um prazer hedônico nos é tirado. Mas a vida pode ser suportável e bem vivida sem os prazeres da gula natalina. Por que não?

Na minha imaginação já estou em plena ceia de Natal, cercado de convidados a me indagar: “Você ficou sem comer por quê?”. “Não posso, fazer o quê?” — respondo. “Mas só um pedacinho, não vai fazer mal. Prove?”. Os ritos da preparação da ceia causam-me azia. Entre castanhas, figos, passas, nozes e amêndoas confeitadas, farofas gordas e douradinhas recheadas de miúdos de peru, encontro meu vidro de antiácido, abro-o e tomo uma dose.

E não é que a salada de frutas adoçada com “Zero Cal” que degustei lentamente estava com sabor de mel!

Pretendendo acalmar o meu olfato e meu paladar na esperança de que o odor expelido dos pratos de guloseimas natalinas não invada o meu sono após a meia noite, sorvo rápido um copo de suco de maracujá. Diz a medicina popular que a polpa dessa fruta é um tranquilizante natural excelente para diabéticos.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 15 de dezembro de 2014

Link da Imagem: combichocarpinteiro.pt

07 dezembro 2014

O Compulsivo e o Obsessivo em Nós




“Se sinto as raízes indago: por que não as vejo?/Esse legado de herança que invade os meus sonhos/São sonhos que se nutrem do meu passado opaco”. [Levi  B. Santos]



Diz-se que a Psicanálise é irmã gêmea da Arqueologia. Essas duas instâncias realmente têm muito em comum: elas se ocupam em investigar o que se encontra escondido nas profundezas, não se interessando tanto pelo que existe na superfície. Para esses arqueólogos, como acontece com o iceberg, a superfície deixa à mostra apenas a ponta de algo extremamente maior que se encontra submerso.

Na verdade, o trabalho do arqueólogo, de forma metafórica, se compara muito ao trabalho do psicanalista. Tanto o arqueólogo quanto o analista são escavadores que, incessantemente, anseiam descobrir um rico tesouro enterrado no subsolo. Seus objetivos são idênticos: trazer à luz do dia àquilo, o desconhecido, que reside nas profundezas das trevas geológicas e psíquicas.

Para Freud, os alicerces falhos e incompletos da infância do indivíduo devem ser resgatados de sua latência. Muitas marcas do irracional que hoje influenciam o agir e o pensar do homem moderno têm no subsolo da psique a sua origem. O pensamento de Freud abalou a certeza cartesiana, ao fazer ver que nada evolui da superfície do solo, senão daquilo que está nele enterrado.  

É do lugar mais profundo de nossa estrutura psíquica que surgem as pulsões ou desejos inconscientes de retorno a um estado primitivo. De certa forma temos todos um certo grau de compulsão ou uma tendência a repetir as primeiras experiências, sem saber que na miragem de nosso ideal estão encarnados os desejos fantasiosos da criança que se foi — um baú de histórias vivenciadas de amor e ódio.

O velho ditado muito conhecido que diz — “De médico e louco todos nós temos um pouco” —, pode perfeitamente ser aplicado ao nosso âmbito psicológico. Parafraseando esse significativo adágio, poderíamos dizer: “De compulsivo e obsessivo, todos nós temos um pouco”. O que varia nesse caso é a graduação desses sintomas: o excesso deles é que provocaria o quadro patológico denominado T.O.C. (Transtorno obsessivo-compulsivo)

No nosso dia a dia quem nunca experimentou as chamadas pequenas obsessões, sob a forma de pensamentos repetitivos, dúvidas persistentes, uma música que se cantarola quase involuntariamente por alguns dias, uma viagem que sempre pensamos em fazer e nunca a efetuamos?

Quer queiramos ou não, somos colecionadores de lembranças e recalques. Impulsionados por um discreto grau de obsessão classificamos, separamos, etiquetamos e guardamos reminiscências ou coisas sem notar que por trás desse trabalho todo, em sua mediação, se insere algo parecido com um ritual compulsivo.

A confirmação da ocorrência de desejos obsessivos e compulsivos em nosso recinto psíquico está implícita na afirmação corriqueira que sai da boca de nossos ancestrais: “Ele foi sempre assim, desde criancinha!”.

Esse homem de chumbo, frio e já desvanecido fisicamente, nunca vai deixar de ser reflexo do menino que um dia foi. Quando ele rir triunfante, ou quando fica triste e melancólico o que se vê é a criança de tempos atrás. A sua sentença é viver entre espasmos de retração e abertura. Tal qual um molusco ele, involuntariamente, deixa aparecer e desaparecer a sua parte frágil sepultada sob a carapaça endurecida e esmaecida pelo tempo.

Abram-se os arquivos arqueológicos presentes em nosso ego primitivo e lá encontrarão, com certeza, doses de desejos obsessivos e ritos compulsivos.
 Sobre esses arquivos subterrâneos produtores de diversos sentimentos recorrentes, entre eles o nostálgico, o escritor e psicanalista Rubem Alves, em seu livro — “Retorno e Terno”— assim, se expressou:

 “Enquanto depender de mim, os campos ficarão lá. Enquanto depender de mim os cerrados ficarão lá. Porque tenho medo de que, se eles forem destruídos, a minha alma também o será”.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 06 de dezembro de 2014


Site da Imagem: leituraescrita.com.br