Pelo
que me consta, a palavra, ambivalência,
foi usada pela primeira vez por Eugen Bleuler, psiquiatra suíço
(1857 —1939), e tinha a ver com atitudes e comportamentos contraditórios ou
dúbios presentes na psique dos indivíduos. Esse termo, posteriormente, foi
redefinido por Freud, como afetos contraditórios, tipo amor/ódio, projetados pela pessoa em um mesmo objeto. Freud
observou em suas longas e profundas análises que, primitivamente, os impulsos amorosos
e hostis foram dirigidos ao pai natural no período da tenra infância do
sujeito.
O
menino Sigmund, filho de Jacob (grande conhecedor da Torah)
nutria pelo pai um respeito comovente e ao mesmo tempo uma espécie de
frustração, ao vê-lo incompetente e imprevidente em seus negócios. Poderíamos,
por esse ângulo, concluir que ele possuía afetos
ambivalentes de amor e ódio com
relação a seu pai. Esses sentimentos ambíguos presentes em Freud no tempo de sua meninice,
dentro de seu imaginário de fundo religioso passaram a ser projetados no Deus
todo poderoso dos Judeus. Na tradição judaica não havia como o homem pensar em Deus sem transferir a
ambivalência (percepção de afetos opostos) para uma entidade paterna adorada, temida
e impronunciável, como as Escrituras Sagradas fazem ver na epopéia do líder político-religioso
e suposto fundador do Estado Hebraico, Moisés. O homem que conta a história
de Javeh,
inconscientemente (ou em linguagem mítica), transfere sua ambivalência (características
dúbias) para seu Deus, ambivalência esta que, no mito, é representada pelo “poder de criar o bem e o mal, a partir de Si”.
O
Mito evidencia que para funcionar o plano divino de um Deus ambivalente, necessário
se fazia criar a figura do Diabo. Mas aí
é que surge o grande problema: na mente do crente, uma barreira intransponível se
interpõe, pois, segundo Jung, “...Javé, moralmente ambíguo,
tornou-se um Deus exclusivamente bom, e, contrapondo-se a ele, o demônio reunia
todo o mal em si. Jung, na verdade,
percebia que o homem religioso ocidental, recalcava
defensivamente para as profundezas de seu inconsciente o que em si o perturbava,
sem perceber que nessa idealização estava dividindo sua divindade moral em duas. Como meio de evitar o desprazer, reprimia
ou projetava no OUTRO seu próprio lado diabólico.
O insaciável
desejo humano de expulsar de si àquilo que mais repudia ou de romper com o pólo
obscuro da ambivalência está bem
simbolizado na história mítica do Gênesis bíblico, quando Javeh expulsa de Si ou do
seu séquito o rebelde Lúcifer (e seus numerosos anjos),
que Lhe fazia oposição dentro de sua morada celestial.
Mais
de duzentos anos antes do aparecimento do conceito psicanalítico “ambivalência dos afetos humanos” refletida
em um Deus, Baruch de Espinosa no seu denso “Tratado
Teológico-Político”, publicado em 1670 (página 27), já falava da ambiguidade
presente nos sentimentos dos hebreus projetados na figura de Javé: “...a Escritura costuma descrever Deus à semelhança do homem,
atribuindo-lhe mente, vontade, paixões, até mesmo um corpo e um hálito, assim
também utiliza muitas vezes espírito de Deus por mente. [...] a própria
revelação de Deus variava de profeta para profeta, conforme o seu temperamento,
a sua imaginação, e suas opiniões. Se o profeta estava alegre revelavam-se-lhe as
vitórias; se pelo contrário, ele era macambúzio, revelavam-se-lhe guerras,
suplícios e todos os males.”
O
pensamento de Espinosa a respeito do Deus dos Judeus, transportado para os
dias atuais, seria explicito, mais ou menos, dessa forma: a “imago-dei” percebida pelo fiel em sua
psique resulta do estado emocional em que se encontra, ou seja, o que ele percebe como um ser sobrenatural extra-corpóreo
(que premia e também castiga) pode tanto lhe fornecer uma sensação de
completude beatífica, como um sentimento de culpa, de derrota ou frustração.
Jung,
por sua vez, afirmava: “...esse duplo
aspecto da imagem do pai é característico do arquétipo em geral: é capaz de
efeitos diametralmente opostos e atua na consciência como Deus se comporta para
com Jó, isto é, de modo
ambivalente.” De certa forma, essa ambivalência,
em ricos elementos metafóricos, está bem demonstrada no Mito da Criação, quando um Deus coloca
no meio do seu jardim, a árvore do mal e do bem. Em seu livro, “Resposta
a Jó”, Jung faz ver que a divindade (monoteísta?) é ambivalente, pois em
si, contém tanto o lado diabólico (o lado escuro ou de sombra) quanto o
reluzente ou benéfico.
Sabemos
o quanto é difícil, senão impossível, o homem descrever a história de um Deus
(atuante em si) sem projetar Nele seus afetos ambivalentes ou contraditórios. Às
vezes, para não ser esmagado pelo peso da ambivalência, o homem projeta o seu
lado mal, obscuro ou de sombra, no outro (até nos amigos ou familiares), ou até
mesmo em si, quando, de boa fé, diz: “Que diabo tomou conta de mim para fazer tal
coisa?”
A
ambivalência dos afetos em Saulo de Tarso, apóstolo fundador do
cristianismo, era percebida como uma espécie de luta no ar entre potestades
diabólicas e divinas. O conflito interno que ocorria dentro do seu palco
mental, era compreendido (de forma mítica) como forças externas personificadas
do mal e do bem a se confrontarem nos lugares celestiais. Com a descoberta do
inconsciente tornou-se evidente que as características ou afetos que julgamos
inaceitáveis em nós, por um mecanismo de defesa psíquico, são projetados em
figuras tidas inferiores, como bodes, capetas, cobras, diabo, hereges, etc.
Zigmunt
Baumann, em “Vida em Fragmentos:
Sobre ética pós moderna”, para mostrar que a ambivalência faz parte da
condição humana, alude a cena primordial da ambivalência experimentada lá
atrás, nos primórdios de nossa existência e sua correlação com o nosso
comportamento de adulto, hoje. No dizer desse escritor, “o projeto moderno postula um mundo de ambivalência moral". Para esse
polêmico sociólogo, a Moral é contingente e ambivalente, pois flui da incerteza
dos desejos humanos. Em “O Mal-Estar da Pós Modernidade”
(página 90), Zigmunt faz uma afirmação emblemática com relação à constante ambivalência
humana que perpassa o nosso universo, e que na mente do religioso adentra o
âmbito dos deuses: “...tudo a ganhar,
nada a perder por se ter o conhecimento da endêmica e incurável ambivalência, e
por se abster de uma cruzada antiambivalência (afinal, suicida).”
Ao
invés da luta inglória que tenta santificar e demonizar os afetos que compõem a
nossa ambivalência, seria bem mais produtivo, se usássemos a Parábola relatada
nos evangelhos sobre o “Joio e o Trigo”
para compreender e admitir que em nossas atitudes e racionalizações ora somos “trigo”, ora somos “joio”.
Por Levi B. Santos
6 comentários:
Acho bem natural que o homem faça as projeções de sua ambivalência sobre a Divindade pois, afinal, concebemos o Eterno e Infinito com nossas limitações pessoais. E penso que Deus se relaciona conosco respeitando e interagindo com essas limitações. Infelizmente, poucos sabem discernir o que há de projeção humana sobre suas concepções religiosas dirigidas a Deus. Todavia, creio que encontro no Pai Celeste um Ser acima de tudo isso que nossa mente cria e projeta. Tal é a confiança que um crente maduro precisa ter.
Não sei, Rodrigão, se você vai concordar com a nova abordagem que Lacan fez, ao reler e atualizar os conceitos freudianos. Para ele, o jogo que perpassa a mente da maioria dos adeptos de uma religião obedece a seguinte fórmula imaginária:
“Desejo ser OUTRO que realmente não EU. Desejo ser um ser diferente dos demais. Dentro da igreja luto para me tornar alguém diferente. Fracasso e me desprezo, quando não consigo ser esse EU IDEAL — ou tenho ‘êxito’, e abandono o meu verdadeiro EU”.
O que ocorre quando o crente passa a trabalhar incessantemente no sentido de querer expulsar de si o afeto obscuro e inaceitável, numa tentativa de curar-se de sua ambivalência?
Na procura de tal santificação ele jamais expulsa a sua SOMBRA ou seu lado sombrio, antes, o reprime ou recalca para a instância inconsciente de sua psique.
Ilusoriamente ele pensa que está evitando a bipolaridade dos afetos. O script pré-determinado supostamente sagrado internalizado por ele o faz reagir defensivamente, reação essa caracterizada pela ojeriza ao pólo “vergonhoso” de sua ambivalência.
Quem não se lembra da corriqueira afirmação do fiel recémconvertido, que ao se alienar a um dos pólos de sua ambivalência em detrimento do outro, diz de forma enfática:
“Agora, o Velho Adão está morto!”.
Oi, Levi. Não nego que possa haver conflitos na mente do religioso durante o seu processo de aperfeiçoamento ético-espiritual. É que nem sempre os processos de crescimento pessoal seguem uma linha benéfica sendo certo que a ignorância reinante em diversas congregações atrapalha muito. As más interpretações e a maneira como se lê a Bíblia, por exemplo, pode provocar desajustes terríveis no indivíduo. Assim, aquilo que Paulo possa ter escrito dentro de um plano mais filosófico corre o risco de ser deturpado pelos receptores e emissores de uma pregação. Mas, quem estudou Romanos sabe que precisa coexistir com a natureza do "Velho Adão" para poder melhorar e seguir firme na prática das boas obras para as quais Deus nos criou afim de que andássemos nelas.
Por outro lado, Paulo escreveu aos destinatários de sua epístola aos coríntios para que fossem seus imitadores assim como ele seria em relação a Cristo (1Co 11:1). E Cristo, considerado como o arquétipo perfeito de comportamento, tendo no Sermão da Montanha ensinado sobre amar ao próximo como filhos do Pai Celestial (Mt 5:48), mostrou foi uma diretriz.
Bem, eu creio que a perfeição desse Deus não se encontra tão distante assim do homem. Há em nós também a semente do "trigo" ainda que coexistindo com a do "joio". Com isso, cabe ao homem no seu processo de aperfeiçoamento despertar o potencial para o bem que há dentro de si pois isto é que significa buscar a perfeição do Pai pela santificação.
Não concorda?
Zigmunt Baumann, em “Vida em Fragmentos” (página 284) disseca maravilhosamente, essa tal de AMBIVALÊCIA. Senão vejamos:
“O judeu é a ambivalência encarnada. E a ambivalência é a ambivalência sobretudo porque não pode ser encarnada sem sentimentos ambivalentes: é ao mesmo tempo atraente e nauseante, lembra aquilo que se gostaria de ser, mas se tem medo de ser, agita diante dos olhos àquilo que se preferiria não ver — que as contas liquidadas ainda estão em aberto, e as possibilidades perdidas ainda estão vivas. É uma compreensão sobre a verdade do ser que todo alvoroço ordenador tenta em vão excluir” (perfeitamente
claro, cristalino)
Isto aqui é uma verdadeira conferência psico-teológica!!!
A psicanálise só poderia vir de um judeu, estudioso da Torah, hein Eduardo? (rsrs).
As análises teológicas foram transformadas por Freud em metodologia científica — afirmou Paul Tillich em seu livro, Teologia da Cultura
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