24 junho 2015

Os Predadores e um Zoológico Sem Dono


Hipopótamo de zoológico inundado invade cidade de Tbilisi - Geórgia



Um colunista brasileiro tem se destacado por seus primorosos ensaios, na maioria, quase sempre relacionados a fatos do risível cotidiano de nossa república. Trata-se de Roberto Pompeu de Toledo, que escreve na última página da revista semanal – Veja. O autor, na atualidade, vem discorrendo mais sobre os acontecimentos da esfera político-administrativa que têm como palco, o Congresso em Brasília.

Aprecio muito seus artigos, tanto pela verve carregada de humor e doces metáforas quanto pelas analogias que interligam as presepadas semanais dos nossos constituintes a fatos pitorescos colhidos de nossa Literatura/História e do mundo internacional.

Pelo que se assiste na TV Senado, TV Câmara e se lê nos principais jornais do país, o Congresso virou uma verdadeira Torre de Babel, lugar conturbado pela confusão de línguas estranhas, onde ninguém se entende. Lá são criadas leis a toque de caixa, leis que se chocam entre si, como a sobremesa bizarra de grilo com chocolate.

Na revista Veja - edição 2431 - que saiu nas bancas domingo (dia 21), Roberto Pompeu de Toledo resume, de forma magistral, a balbúrdia reinante em Brasília nos últimos dias, onde a grande vítima é a Pobre Constituição” (título que encabeça seu artigo). A sagaz analogia, que o ensaísta faz das ações sem nexo dos nossos constituintes com uma enchente ocorrida recentemente nas terras da antiga União Soviética, é digna de nota. Para que o(a) leitor(a) possa comprovar o que digo, transcrevo abaixo, com os devidos créditos, um trecho desse seu antológico ensaio:

Com a autoridade do presidente no chão, o ministério (à exceção da Fazenda) inoperante, o PT disputando com a oposição quem incomoda mais o governo e o Congresso despirocado, os predadores estão soltos. A situação é comparável à de Tbilisi, a capital da república caucasiana da Geórgia, onde uma enchente na semana passada provocou, entre outros estragos, a inundação do zoológico e a dispersão dos animais pela cidade. Deu-se então, segundo inventariou o The News York Times que um urso foi flagrado tentando se equilibrar na janela de um 2° andar, um crocodilo foi visto a espreitar os carros parados numa rodovia intransitável e um hipopótamo acabou pendurado nos galhos de uma árvore. Aqui, a dona do zoológico, de medo de ser demitida, demitiu-se, os funcionários entregaram os pontos e as feras se jogam cada uma a um naco do texto constitucional. A última vítima é o artigo 228, aquele que declara que são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos. Ele veio se juntar aos atentados contra a ordem constitucional que, já há algumas semanas, são disparados pela “reforma política” do deputado Eduardo Cunha”.
[Roberto Pompeu de Toledo]


Convenhamos, foi por nosso intermédio que, lá fora, o Brasil ficou conhecido como o país do Carnaval, do futebol fantástico repleto de jogadores exímios em seus sensacionais dribles, sabendo fingir como nenhum outro, diante de suas esfuziantes torcidas.

Por ocasião da primeira aprovação da proposta de diminuição da maioridade penal para 16 anos, parlamentares agiram como se estivessem comemorando a vitória de seu time. Com toda a força de seus pulmões gritaram o estribilho que comumente se exibe nas arenas futebolísticas Eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor” , como se esse pequeno obstáculo ultrapassado fosse a senha mágica definitiva para o arrefecimento da criminalidade.

E o que dizer da recente manifestação no plenário da Câmara, quando mais de uma dezena de militantes da bancada evangélica, de mãos dadas, rezaram em alto e bom som oPai Nosso? Em êxtase, encerraram a encenação com um “Viva Jesus Cristo!”, pela vitória alcançada com a aprovação da cláusula de crime hediondo para quem profanar símbolos religiosos. Por certo, o sentimento que os dominava naquele momento nada mais era que resquícios do contagiante idealismo religioso das cruzadas da idade média.

De nada adiantou uma figura solitária, abafada pela maioria vitoriosa, a bradar lá do fundo do palco montado: Vamos respeitar a república laica brasileira!

Pois é caro(a) leitor(a), estamos na estação do inverno, propícia a enchentes como a que aconteceu na Geórgia. O nosso Zoológico sem dono pode estar, sutilmente, sendo invadido pelas águas das torrenciais chuvas tão comuns nessa época. O grande perigo é que as feras, antes domadas em seus apriscos, podem sair fazendo estragos ao entrar por caminhos nunca dantes percorridos. Aí, sim, a depredação daquilo que se denominou de bem público pode atingir níveis nunca imaginados.

Como a alegria da maior folia das terras de Dom João VI “termina” numa quarta-feira de cinzas, não custa lembrar aqui o refrão do samba enredo da União da Ilha (Rio de Janeiro) no carnaval de 1978:

Como será o amanhã, responda quem puder...” (bis)


Por Levi B. Santos

Guarabira, 24 de junho de 2015


Site da Imagem: www.bbc.com/notícias

18 junho 2015

Por Amor aos Necessitados





Quem pode fazer o bem e não faz comete pecado afirmou São Tiago, em seu evangelho. O apóstolo, São Paulo, por sua vez, evidenciou em sua epístola aos Romanos que o amor estaria acima da Lei.

O místico da primeira escolástica, Hugo de São Victor, fez uma categórica afirmação: “Nós amamos a Deus e Lhe servimos mas não buscamos nenhum prêmio, pois não queremos passar por mercenários. Amamos com um amor puro, desinteressado e filial e nada procuramos. Que Deus decida se lhe apraz dar-nos alguma coisa; de nossa parte nada lhe solicitamos. Nós o amamos, mas nada procuramos, nem mesmo Aquele a quem amamos.

Não esqueçamos, porém, da versão mundana do dito de São Francisco de Assis: “...É dando que se recebe”. Segundo o psicanalista Flávio Gikovate, esse refrão (tão usado e vezado no meio político – grifo meu), pode indicar a disposição de dar de si e se dedicar a alguém (ou um grupo – grifo meu) com o objetivo de receber o tratamento que gostaria.

O leitor(a) a essas alturas deve estar se contorcendo, com essa história de amor desinteressado, achando, talvez, que ele não exista.
Está posta então, a questão: existe ou não existe o amor desinteressado?
Para a Psicologia Profunda, mesmo que seja “desinteressado”, esse amor, exige uma gratificação que não precisa, necessariamente, ser retribuída na mesma moeda.

Atualmente, nos meios de comunicação, as pedaladas fiscais que o governo deu com a finalidade de não deixar os bolsistas a ver navios, vêm ocasionando um acalorado debate. Melhor explicando, O TCU não quer dar o aval à inusitada operação posta em prática pela maior autoridade da nação: a de realizar créditos fictícios ou sem lastro nas contas dos necessitados do “bolsa família”, à revelia da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Andei pensando com os meus botões sobre a vexatória situação dos beneficiários do Bolsa Família, quando no calor da campanha (2014) pela reeleição da presidenta, correram o sério risco de não receber seus proventos, pois o orçamento governamental encontrava-se estourado. Pergunta-se: O governo e seus conselheiros mais fiéis, agiram ou não por amor, quando, para não deixar os pobres sem o seu pão de cada dia, recorreram a um artifício acima da Lei para contornar o grave problema?

Muitos condenam o Governo por aplicar dinheiro em outras instâncias de seu interesse, cobrindo um santo e descobrindo outro. Mas como estamos em um país cristão, respaldado nos evangelhos, sabemos que isso é coisa para se deixar vir às claras por ocasião do Julgamento Final, onde cada alma vai dar conta de si e ter pesadas suas obras. Depois de satisfeito o seu desejo, o governo então diria ao Supremo Juiz: os recursos para as pedaladas saíram dos bolsos da minha grande comunidade de fiéis. A bicicleta não é minha, é do povo que me elegeu; eu apenas pedalo nela pra sobreviver e para ser vista como uma grande equilibrista na grande arena política do segundo maior país cristão do mundo.

Quem sabe se Ele, comovido pela fraqueza que permeia o humano, não diria ao apagar das luzes: Eu Sou brasileiro, perdoada estais!



Por Levi B. Santos
Guarabira, 18 de junho de 2015


Link da Imagem: vejaabril.com.br/blog/reinaldo

13 junho 2015

Breves Considerações Sobre os "Mortos-Vivos" de Dostoiévski






Debruçar-se sobre as obras literárias do fenomenal escritor russo, Fiódor Dostoiévski é o mesmo que mergulhar no profundo e sombrio abismo da psique — instância que à semelhança do tenebroso oceano ― esconde em seu interior monstros, fantasmas e tesouros incrustados em carcaças de embarcações perdidas no tempo.

Nas entrelinhas de seu antológico conto, “Bobók”, o autor revela como funciona o mecanismo psíquico (consciente/inconsciente). Seus escritos de caráter dialógico mostram, de forma nítida e serena, que o desejo do outro está sempre infiltrado em nossas ações e reações. “Cada um de nós é um EU somente porque há um conceito do Outro” — diria mais tarde, Jacques Lacan.

Bobók”, conta a história de Ivan Ivánitch: um bêbado que sofre de alucinações vai a um enterro e, depois de todo mundo ter ido embora do cemitério, resolve descansar um pouco sobre a laje de uma sepultura e, de repente, começa a ouvir vozes abafadas vindo de dentro dos túmulos a seu redor. Os mortos se identificam e começam a conversar entre si, como se a consciência humana continuasse a existir por algum tempo depois da morte. Sabedores que tinham, agora, total liberdade, diferente das condições terrenas, decidem, divertidamente, contar seus causos que, na vida anterior, mantinham guardados sob sete chaves.

Mas por enquanto eu quero é que não se minta. É só o que quero, porque isso é o essencial. Na terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha história[…]. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses na mais desavergonhada verdade.” (Bobók – página 35)

Eis que involuntariamente, Ivan Ivánitch, nauseado pelo forte odor de corpos em decomposição dá um sonoro espirro, o bastante para calar os mortos-vivos. Tudo ficou em um silêncio sepulcral.

Não acho que tenham sentido vergonha de mim: haviam resolvido não se envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e… nem uma palavra, nem um som. Também não dá para supor que tenham temido ser denunciados à polícia; porque, o que a polícia pode fazer neste caso? Concluo involuntariamente que, apesar de tudo, eles devem ter algum segredo desconhecido dos mortais, e que eles escondem cuidadosamente de todo mortal.” (Ivan Ivanitch – página 37)

Traduzindo os elementos do conto “Bobók” pela via metafórica, o que se evidencia? O polêmico Slavoj Zizek faz uma incursão sobre a assertiva dostoievskiana de que “Sem Deus tudo é permitido”. Para ele, o que o escritor russo quer retratar em sua ilustração de um apavorante “Universo sem Deus” em que “tudo é permitido” é o mundo imaginário do fundamentalista religioso. Se o Deus do cristão está lá, irreversivelmente com eles, então poderiam concluir, “Com Deus tudo é permitido”. Por que não?

Mas eis que o espirro inesperado do observador/narrador faz calar os mortos. Paradoxalmente, o que isso significa, senão o entendimento de que o impulso de contar toda a verdade não é livre? A presença incômoda do “outro-ouvinte-testemunha” barra ou impede os “vivos-mortos” de expor sem amarras os seus recalques.

A imagem desse agente ético repressor internalizado é o que Lacan denominou, o “Grande Outro”, que Freud rotulou de Superego, que o mundo judaico-cristão percebe como um Ser antropomórfico radicado nas maiores alturas. Ao que parece, não há jogo sem essas instâncias patriarcais. Diante da impossibilidade de eliminar por completo o olho dessa “imago paternaque espreita o homem de perto, fazer uma trégua ou acordo amigável com ela, seria a solução mais viável.

Para que a fábula dos “mortos-vivos” não se transforme numa “mentira Suprema”, é bom dissecá-la pelo lado avesso. Só desta forma, é que poderíamos colher uma real compreensão do que se passa nos escaninhos desse ambivalente “reino psíquico”.

No mundo judaico-cristão não é raro a citação — “Universo sem Deus” , para expressar o desconforto do crente frente àquele que se diz ateu. O que o fiel piedoso talvez não saiba é que esse “Utópico Universo Psíquico sem Mediador” percebido no OUTRO, nada mais é que a projeção do submundo reprimido da própria religião, recalcada nos porões de sua mente. A proteção rígida do idealista religioso contra o gozo jubiloso do “pagão” não passa de uma reação defensiva contra o que existe no outro – causa de seu desconforto. No fundo, o que ele percebe como “terreno inóspito do pagão sem Deus”, na verdade, é o seu sonho supremo. Como dizia, Chesterton: “...mas dentro dessa proteção desumana, você encontrará a velha vida humana dançando como dançam as crianças e bebendo vinho como bebem os homens, pois o cristianismo é a única moldura para liberdade pagã.”

Na verdade, o que os “mortos-vivos” de Dostoiévski escondem do personagem, Ivan Ivánicth (símbolo do Outro), é o “obsceno gozo compulsivo de sua natureza”. O espirro que fazem calar os mortos, impedindo de contarem suas vergonhas, é o cruel Superego entronizado nas profundezas psíquicas. A volta, enfim, do silêncio sepulcral, é sinal de que os “mortos” continuam mais vivos do que nunca no imaginário do escritor.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 13 de junho de 2015




08 junho 2015

Seu Último Yom Kipur




Morreu na madrugada do feriado judaico da expiação, após tomar a terceira injeção de morfina. Desde o início de sua doença fizera ver que não aceitaria “a paralisia da capacidade pela miséria corporal”. Não mais suportando as dores e o odor forte e fétido que inundava todo o seu quarto, proveniente do câncer de mandíbula que necrosara parte de sua face, de forma lúcida, despediu-se de seu médico de cabeceira, dando-lhe autorização para encerrar de uma vez por todas seu intenso sofrimento. Tentativas frustradas de debelar seu mal renderam-lhe mais de trinta cirurgias e penosas convalescenças.

O barulho lá fora, provocado pelas passadas de muitos judeus em Londres a caminho das sinagogas onde realizariam seus rituais de jejum e orações (Yom Kipur), ele deve ter escutado por um breve tempo até cair num sono profundo para não mais acordar. Coincidência ou não, veio entrar suavemente na imensurabilidade do tempo em uma fria madrugada de um sábado festivo “dia do perdão” ─, cerimonial judaico que em criança junto aos familiares o deixava extasiado por seus cânticos e pela magnífica ceia final.

Fora o criador da ciência da alma, que tem na “culpa imaginária” seu epicentro. A culpa e o perdão teriam alguma coisa a ver com a escolha do feriado sagrado do Yom Kipur, para, ainda em sã consciência, praticar a eutanásia?

Ao divã por ele criado quis dar um propósito aparentemente oposto ao que de fato acontecia no divã confessionário do judaísmo. Foi longe, a pretensão de que sua ciência, um dia, geraria no homem, a ausência de acusação com a concomitante ausência de perdão. Fato este, talvez impossível diante de nossa condição de transgressor, aturdido por afetos ambivalentes provenientes dos desvãos mais íntimos de nosso inconsciente, onde guardados estão crimes não ditos e recalques de toda ordem.

O modo de pensamento talmúdico não pode ter desaparecido de nós confidenciou-lhe, certa vez, um amigo que frequentava as famosas reuniões científicas das quartas-feiras, ao notar que havia uma íntima relação entre as modalidades de interpretação do texto bíblico e a abordagem na análise psíquica. Era evidente a estreita ligação entre a psicanálise e a tradição Judaica. Não custa lembrar que no divã do confessionário da ortodoxia judaica da qual seu pai foi um membro ativo, era através da confissão da culpa a um Pai imaginário que o judeu, por ocasião do Yom Kipur, percebía-se isento ou redimido da própria dor psíquica de culpa. A figura do Superego que criara, não seria uma forma de confirmar que um pai continuava a viver no inconsciente do sonhador?

Diante de seus discípulos, reagia de modo enfático: “o analista não inclui nem exclui, não culpa nem absorve”. Foi rebelde até o fim. Quis ser senhor até do dia de sua morte, provocando polêmica entre os ortodoxos de sua nação ao escolher a comemoração do Yom Kipur para se despedir da vida.

Logo cedo aprendera da mãe a resignar-se aos ditames da condição humana: “um dia teria que retornar ao pó, de onde veio”. O que não se poderia imaginar naquela época, era que, ele mesmo, seria o capataz a dar ordem para o início da metamorfose última sentença javélica registrada no livro de Gênesis ─, tantas vezes repetida por sua genitora nas aulas diuturnas de catecismo religioso.

Por toda a cidade de Londres, seu último refúgio em vida, máscaras de gás eram distribuídas para fazer face aos terríveis bombardeios aéreos que a Alemanha de Hitler iniciara naqueles trágicos dias de setembro de 1939. “Será a minha última guerra afirmou ele ao médico que cuidara de sua saúde nos seus últimos dez anos de vida. A guerra tinha sido um tema recorrente em suas palestras. Só via duas formas de descarregar a libido agressiva que cada um carrega dentro de si: através da pulsão destrutiva (assassinatos, guerras), ou da sublimação, entendendo-se por esta última, a conversão da poderosa energia instintiva humana em criações artísticas, em produções de cunho científico, político ou econômico.


P.S.:

Freud morreu num processo de Eutanásia, segundo Ernest Jones, seu biógrafo. Eu acho necessário que nós possamos ter a coragem, em uma sociedade aberta e plural de discutir essa questão com serenidade, mesmo porque a qualquer instante nós estamos sujeitos a nos transformarmos num objeto passivo de uma decisão politica e biológica a respeito de nossa existência sem que sequer possamos ser ouvidos. Eu acho esta a maior das violências em relação a questão da minha morte”. [Jacob Pinheiro Goldberg]


  Por Levi B. Santos
 Guarabira, 08 de junho de 2015