Debruçar-se
sobre as obras literárias do fenomenal escritor russo, Fiódor
Dostoiévski é o mesmo que mergulhar no profundo e sombrio abismo da
psique — instância que à semelhança do tenebroso oceano ―
esconde em seu interior monstros, fantasmas e tesouros incrustados em
carcaças de embarcações perdidas no tempo.
Nas
entrelinhas de seu antológico conto, “Bobók”, o autor revela
como funciona o mecanismo psíquico (consciente/inconsciente). Seus
escritos de caráter dialógico mostram, de forma nítida e serena,
que o desejo do outro está sempre infiltrado em nossas ações e
reações. “Cada um de nós é um EU somente porque há um
conceito do Outro” — diria mais tarde, Jacques Lacan.
“Bobók”,
conta a história de Ivan
Ivánitch: um
bêbado que sofre de alucinações vai a um enterro e, depois
de todo mundo ter ido embora
do
cemitério, resolve descansar um pouco sobre a laje de uma sepultura
e,
de repente, começa a ouvir vozes abafadas vindo de dentro dos
túmulos a seu redor. Os
mortos se identificam e começam a conversar entre si, como se a
consciência humana continuasse a existir por
algum tempo depois da
morte. Sabedores que
tinham, agora, total liberdade, diferente das condições terrenas,
decidem, divertidamente, contar
seus causos
que, na vida anterior, mantinham guardados sob sete chaves.
“Mas
por enquanto eu quero é que não se minta. É só o que quero,
porque isso é o essencial. Na terra é impossível viver e não
mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de
rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo
significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas
histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de
todos a contar a minha história[…]. Abaixo as cordas, e vivamos
esses dois meses na mais desavergonhada verdade.”
(Bobók
– página 35)
Eis
que involuntariamente, Ivan Ivánitch, nauseado pelo forte
odor de corpos em decomposição dá um sonoro espirro, o bastante
para calar os mortos-vivos. Tudo ficou em um silêncio sepulcral.
“Não
acho que tenham sentido vergonha de mim: haviam resolvido não se
envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e… nem uma palavra,
nem um som. Também não dá para supor que tenham temido ser
denunciados à polícia; porque, o que a polícia pode fazer neste
caso? Concluo involuntariamente que, apesar de tudo, eles devem ter
algum segredo desconhecido dos mortais, e que eles escondem
cuidadosamente de todo mortal.” (Ivan
Ivanitch – página 37)
Traduzindo
os elementos do conto “Bobók” pela via metafórica, o que se
evidencia? O polêmico Slavoj Zizek
faz uma incursão
sobre a assertiva
dostoievskiana
de que “Sem Deus tudo é permitido”. Para
ele, o
que o escritor russo quer retratar em sua ilustração de
um apavorante
“Universo sem Deus” em que “tudo é permitido”
é o
mundo imaginário do fundamentalista religioso. Se o Deus do cristão
está lá, irreversivelmente com eles, então poderiam
concluir, “Com
Deus tudo é permitido”. Por
que não?
Mas
eis que o espirro inesperado do observador/narrador faz calar os
mortos. Paradoxalmente, o que isso significa, senão o entendimento
de que o impulso de contar toda a verdade não é livre? A presença
incômoda do “outro-ouvinte-testemunha” barra ou impede os
“vivos-mortos” de expor sem amarras os seus recalques.
A
imagem desse agente ético repressor internalizado é o que Lacan
denominou, o “Grande Outro”, que Freud rotulou de
Superego, que o mundo judaico-cristão percebe como um
Ser antropomórfico radicado nas maiores alturas. Ao que parece, não
há jogo sem essas instâncias patriarcais. Diante da impossibilidade
de eliminar por completo o olho dessa “imago paterna”
que espreita o homem de perto, fazer uma trégua ou acordo
amigável com ela, seria a solução mais viável.
Para
que a fábula dos “mortos-vivos” não se transforme numa “mentira
Suprema”, é bom dissecá-la pelo lado avesso. Só desta forma, é
que poderíamos colher uma real compreensão do que se passa nos
escaninhos desse ambivalente “reino psíquico”.
No
mundo judaico-cristão não é raro a citação — “Universo
sem Deus” —, para expressar o desconforto do
crente frente àquele que se diz ateu. O que o fiel piedoso talvez
não saiba é que esse “Utópico Universo Psíquico sem
Mediador” percebido no OUTRO, nada mais é que a projeção do
submundo reprimido da própria religião, recalcada nos porões de
sua mente. A proteção rígida do idealista religioso contra o gozo
jubiloso do “pagão” não passa de uma reação defensiva contra
o que existe no outro – causa de seu desconforto. No fundo,
o que ele percebe como “terreno inóspito do pagão sem Deus”,
na verdade, é o seu sonho supremo. Como dizia, Chesterton:
“...mas dentro dessa proteção desumana, você encontrará a
velha vida humana dançando como dançam as crianças e bebendo vinho
como bebem os homens, pois o cristianismo é a única moldura para
liberdade pagã.”
Na
verdade, o que os “mortos-vivos”
de Dostoiévski escondem do personagem, Ivan Ivánicth
(símbolo do Outro), é o “obsceno gozo compulsivo de sua
natureza”. O espirro
que fazem calar os mortos, impedindo de contarem suas vergonhas, é
o cruel Superego entronizado nas profundezas psíquicas. A volta,
enfim, do silêncio sepulcral, é sinal de que os “mortos”
continuam mais vivos do que nunca no imaginário do escritor.
Por
Levi B. Santos
4 comentários:
Grande Levi.
Somos irremediavelmente culpados do nosso silêncio. Nós nos machucamos demais quando somos criticados. Temos uma visão incorreta de Deus, portanto, atribuimos a Ele, as nossas auto sensuras.
Quando crescemos nEle, descobrimos o quanto estávamos julgando-O como um déspota.
Perdão, autocensura.
Já que você falou em Déspota, Guiomar.
Fazendo uma leitura pela inversão da frase famosa de Doistoiévski chegaremos ao - “Se Deus existe tudo é permitido” . Pois é, o fundamentalista percebendo-se como instrumento da vontade de Deus acha que tudo é permitido, inclusive matar milhares de inocentes, como está acontecendo lá no “sagrado” Oriente Médio. Não resta dúvida de que esses justiceiros “não mortos”, estão sob o feitiço compulsivo de um deus déspota.
Tem vários espaços em que os “não mortos”, estão surdos para o "espirro" do personagem principal do conto, Bobók. Por isso mesmo não silenciam, e continuam a trabalhar incessantemente a preço de sangue, visando um paraíso de delícias sem fim, no além . A Televisão e os jornais mostram quase que diariamente a face desse deus e de seus guerreiros.
Por outro lado, no Novo Mundo (aqui bem pertinho de nós) há outros tipos de guerreiros — aqueles que compulsivamente exploram o próximo, usando-o como ferramenta para seu próprio prazer e lucro. (rsrs)
Levi, os terroristas, os empresários da fé têm o mesmo deus das galeras de partidos de futebol, dos homofóbicos, dos negrofobicos, dos fanáticos politicos, etc.
Estes perversos assassinos se escondem onde melhor lhes convém.
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