Foi
muito feliz o filósofo Nietzsche, quando concebeu a ideia de
que “a vida é um eterno retorno”, pois o tempo gira, gira, gira
e está sempre a nos levar ao ponto de partida.
Aos
sessenta anos de idade, ainda exercendo a função de médico, me
vejo descansando no mesmo lugar que me serviu de pousada no inicio de
minha carreira. O quarto em que residi por um bom período, tem as
paredes muito altas, de reboco irregular, com cobertura de telhas
antigas feitas à mão, sustentadas por “caibos” e linhas de
madeira de lei. Nas noites quentes de verão, ele ficava infestado de
muriçocas, atrapalhando o meu sono. Foi neste cubículo que curti as
ressacas de minhas farras, de minhas aventuras, festas e namoricos no
fogoso tempo dos meus vinte e seis anos.
Hoje,
toda quinta-feira, após o tradicional almoço de galinha caipira,
feijão mulatinho, arroz e macarrão, com sobremesa de salada de
frutas, eu me recolho a este mesmo “quarto”. Ao meio-dia, lá
estou eu estirado em uma rede velhinha, já um pouco puída, porém
bem cheirosa, separada especialmente para mim. Ali dou o meu cochilo
de uma hora e meia, para depois iniciar o batente do segundo
expediente no mesmo Hospital que iniciei minhas atividades
profissionais há trinta e cinco anos.
Tudo
agora é vazio neste quarto. Vazia está uma estante velha de três
prateleiras, instalada no mesmo canto de sempre. Era nela que
guardava os meus livros de medicina. Essa estante serve hoje de
suporte a um jarro grande, também vazio, na cor escarlate.
As
duas velhinhas Bia e Bazinha, cabisbaixas, uma em cada canto
guardando um vazio de palavras talvez pensadas, mas não ditas. De
tanto tempo juntas, quem sabe, enfastiaram-se do diálogo. Na
ausência de palavras só o entrecruzar dos olhares, fala por si
mesmo. Sendo os olhos a janela da alma, para que conversar? Se as
janelas destas duas almas gêmeas estão tão escancaradas, que as
fazem se enxergar mutuamente por dentro, sem a necessidade da
palavra, é porque uma é o espelho da outra. É como se estivessem a
dizer entre si: “Se eu sei o que tu queres, e tu sabes o que eu
desejo ─ para que falar”?
Apesar
de vazio, o silêncio do meu quarto é quebrado de uma maneira quase
constante, pelo barulho que vem dos carros passando na rua em frente
de casa. Há 35 anos, o barulho que eu ouvia não vinha dos
automóveis. Eles eram raros. A rua era mais do povo, e o que eu
escutava eram restos de conversas das pessoas que passavam na
calçada, junto ao velho janelão do quarto, que dava para a rua. O
janelão continua o mesmo. As camadas de tinta a óleo, que a minha
mãe manda dar todos os anos em sua superfície, evitaram que a
madeira apodrecesse. Do lado de dentro de casa, os barulhos que ouço
vem do tilintar dos pratos e talheres sendo lavados na pia da
cozinha, pela velha Bazinha (apelido carinhoso de minha mãe), já
meio capenga e ruim da vista. O outro barulho vem da tosse insistente
de Bia (mãe de criação), portadora de uma doença
cardíaco-pulmonar que a castiga há anos.
Era
nesse mesmo quarto, que no inicio de minhas atividades de médico,
minha mãe gostava de trazer as suas amigas mais chegadas, para se
consultarem comigo. Eu ficava contrariado, pois achava que ao
meio-dia, não eram horas de se ouvir lamúrias dos doentes. Além do
mais, eles estavam me tirando do meu sagrado descanso na velha “rede
do meio-dia”.
Hoje,
a minha velha mãe, já sem amigas, pois quase todas já se foram, é
a única a se consultar. E eu, meio acordado, meio dormindo, vou
ouvindo os seus sintomas, que já se tornaram uma ladainha. De olhos
semicerrados, vou ouvindo ela falar:
─ Ó
Levi, eu quero que tu dê uma olhada aqui nas minhas pernas e nos
meus pés.
E
apontando para os lugares doloridos das pernas ela vai dizendo:
─ Dói
aqui, olha! Aqui... Aqui...Bem aqui…
Olhando
de soslaio, sem me mexer da rede vou respondendo como sempre:
─ Isso
é reumatismo, mamãe. A Sra. não pode tomar remédios para este
tipo de doença, por causa de sua gastrite. O jeito é ir levando a
vida assim mesmo.
E
é assim, bem junto a minha rede, após o almoço, que ela vai
desfiando suas demais queixas, como se eu tivesse a varinha mágica e
o poder de fazer desaparecer todas as suas dores.
─ Olha
Levi, eu não posso caminhar nem para feira, nem para a igreja, pois
fico muito cansada ─ continua falando minha mãe.
Essa
sua última queixa eu valorizei, porque ela sofre de
cardiopatia crônica, e não pode fazer muito esforço.
Imediatamente, abaixando um lado da rede, levanto a minha cabeça e o
pescoço duro afetado pela artrose, falo sério para ela:
─ A
Sra. só pode ir à igreja ou à feira, de carro, mamãe! Numa
caminhada dessas, a pé, o seu coração pode pifar. Tenha cuidado!
Vou falar com Davi (meu irmão) para ele providenciar um automóvel
para lhe levar a esses lugares.
Depois
de consultar-se, ela se retira, e eu continuo o meu cochilo na rede
do meio-dia.
De
repente, mas de repente mesmo, sinto a rede balançar. Abrindo os
olhos lentamente, vejo a sua mão puxando o punho da rede. É quando
ouço a velha “gravação”:
─ Já
são duas horas da tarde. Tá na hora de tu levantar. Levanta! Senão
vai chegar atrasado. Tem doce de goiaba, café com biscoito e
“delicia” lá na mesa.
Ela
continua com aquele mesmo cuidado de muitos anos atrás, de não me
deixar atrasar para o expediente da tarde. No horário exato diz:
“levanta”! E eu, preguiçosamente saio em câmera lenta da minha
tão confortável rede, para o mesmo e gostoso lanche que ela sempre
me preparou por todo esse tempo.
Toda
quinta-feira, na minha "rede do meio-dia", participo desse
rito médico-sentimental. Até quando? Só Deus sabe.
Crônica
por: Levi B. Santos
Guarabira,
28 de Fevereiro de 2007
Um comentário:
Bela crônica, meu amigo!
Durante o cotidiano simples de cada um, há uma riqueza de situações que preenchem a nossa existência e que, com o tempo, vão se tornar o verdadeiro tesouro com valor acima das riquezas materiais que possamos herdar.
Sem esquecer da educação recebida, que presente maior os pais nos deixam senão o tempo de convivência proporcionado?
Nos tempos de contatos virtuais, com mentes absorvidas pelas redes sociais de internet, podemos perder a noção sobre a importância do convívio presencial com a família e amigos.
Um abraço e aproveite o dia com sua família!
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