As
duas faces do Deus Romano Janus
(museu do Vaticano) – simbolizam o dualismo sobre-humano
das ideologias
O
conceito de inconsciente criado
por Freud
fez cair por terra a soberania da consciência. A descoberta
de que o nosso complexo “eu” não era mais detentor daquela aura
de superioridade que se pensava até então, terminou por provocar
uma reviravolta nos campos da ciência, religião, filosofia e
política. O determinismo do inconsciente tomou a expressão javélica
“Eu Sou o que Sou!” para si, deixando a esfera da
consciência ao sabor de suas influências, como bem afirmou Erich
Fromm em “O
Medo
à Liberdade”: “O homem moderno vive na ilusão de
saber o que quer, quando de fato ele quer o que se supõe que deva
querer”.
Foi no
decorrer de 1970 que o filósofo marxista Louis Althusser,
para explicar os raízes psicológicas dos conflitos de natureza
ideológica, trouxe para o campo da Teoria Ideológica os conceitos
freudianos como, inconsciente, mecanismos de defesas psíquicos, o
Superego e as identificações imaginárias que começam a se formar
após os primeiros cinco anos de idade. Chegou-se a conclusão de que
o substrato psíquico denominado inconsciente tem um papel
preponderante na constituição do sujeito. Por essa ótica, as
vinculações ou fantasias infantis reprimidas seriam responsáveis
pela socialização dos desejos numa idade mais madura do indivíduo.
Nos iludimos quando imaginamos que podemos livremente escolher e
ficar com o “polo aparentemente bom” de nossa ambivalência
psíquica. Vez ou outra, sem que percebamos, lá estamos a nos
identificar com o polo antagônico de nosso aparelho psíquico,
constituído de afetos negativos que publicamente repudiamos. A
identificação com a pessoa que não queríamos ser, é uma espécie
de desmascaramento que o inconsciente nos prega ―
enfim, uma verdade inconveniente que geralmente é rechaçada pela
consciência para que o indivíduo agarrado monoliticamente a uma de
suas dúbias almas, não sofra.
Geralmente
demonizamos os nossos afetos negativos. Freud deu o
nome de mecanismos de defesa aos atos
instantâneos que sempre nos leva a deslocar ou projetar o nosso lado
sombrio no outro que estranhamos. O poeta Olavo Bilac
imortalizou em versos o conflito ou antagonismo entre essas
duas almas: “E no perpétuo IDEAL que te devora/Residem
juntamente no teu peito/Um demônio que ruge e um deus que chora.”
Xenofonte
(430 a.C.),
em termos metafísicos expressou muito bem a velha
ambivalência dos afetos: “...Ó Ciro, estou convencido que
tenho duas almas; quando a alma boa domina passo a praticar
ações nobres e virtuosas; mas quando a alma má predomina, sou
constrangido a praticar o mal.”
Na
psicanálise, a expressão freudiana “ideal do eu” está no
epicentro de todo o pensamento ideológico. “Do ideal do eu
parte um importante caminho para compreensão da psicologia coletiva.
Este ideal tem, além de sua parte individual, sua parte social, que
é também o ideal comum de uma família, de uma classe ou de uma
nação” ― escreveu
Freud em “Introdução ao Narcisismo”.
André
Singer, porta-voz da presidência da república (2003-07) em
seu livro “Os
Sentidos
do Lulismo”, faz uso de linguagem metafórica (ou porque
não dizer psicológica?) para dissecar as duas almas (ou polos
ambíguos) que habitam a psique petista. Aos polos paradoxais da
ambivalência lulista ele deu os nomes: “espírito de Sion”
e “espírito de Anhembi”. Por “espírito de Sion”
entenda-se o anseio aguerrido de forte teor anticapitalista presente
no coração dos militantes que frequentavam as salas do colégio
Sion em Higienópolis (São Paulo) - na segunda metade dos anos 1970
– local onde a maioria da juventude reivindicava uma sociedade sem
patrões. O “espírito de Anhembi” caracterizava a segunda
alma do PT, que tem na “Carta ao Povo Brasileiro”(junho de
2002) um Lula se comprometendo com as exigências do capitalismo
(época do Lulinha Paz e Amor), tanto é que agregou como vice de sua
chapa um empresário do partido Liberal, o mineiro José de
Alencar. Essa alma paradoxal do lulismo, através de um
processo sutil de identificação, estaria a flertar com o
neo-liberalismo praticado por FHC.
Segundo André
Singer, a guinada do Lulismo para a direita na campanha pela
presidência da república em 2002 deixou atônita boa parte da
esquerda petista. Por incrível que pareça, foi a segunda alma do
lulismo com vestes de direita, que levou as camadas mais
escolarizadas a elegê-lo para o primeiro mandato: 32% dos votos
obtidos por Lula em 2002 foram daqueles que ganhavam mais de dez
salários mínimos, e 28% dos que ganhavam em torno de cinco
salários. A parcela dos pobres (até dois salários mínimos)
contribuiu apenas com 15% do total de votos adquiridos por Lula.
(Fonte: Datafolha).
No segundo
mandato de Lula
(2006) as classes (abastada e média) que o elegeram em 2002
abandonaram o barco petista. A decepção provocada pelo mensalão,
sob o lema enganoso de Zé Dirceu (O PT não rouba
nem deixa roubar), foi responsável pela debandada da classe
média. Ocorreu então uma inversão: o lulismo deslocou-se da metade
superior da pirâmide para a base (população de baixa renda). O
estilo individual de ascensão social levou os mais pobres a fazer
vista grossa ao moinho da corrupção nas altas esferas da coalizão
petista. O eleitorado menos escolarizado do Nordeste (reduto
pertencente ao PMDB) que não aprovara o lulismo no primeiro mandato,
nessa nova edição deu a vitória a seu maior expoente.
No dizer de
André Singer, “os dois mandatos de Lula à frente
do executivo formaram síntese contraditória das duas almas que hoje
habitam o PT. Foi o fato de ter sido viável promover simultaneamente
políticas que beneficiavam o capital e a inclusão dos mais pobres,
com melhora relativa na situação dos trabalhadores,
que permitiu a convivência dos espíritos de Anhembi e de
Sion”.
A militância
entusiasmada petista, polarizada na alma ou espírito de Sion
nos anos 1980, apregoava a apropriação social dos meios de produção
e uma utópica sociedade sem patrões. O arrefecimento nas suas
hostes, hoje, creio que se deve mais a compreensão de que as duas
almas do Lulismo poderiam coexistir sem turbulências ou maiores
atritos. Os argumentos ideológicos (de direita e de esquerda) por mais
dissonantes que pudessem ser, bem que poderiam conviver pacificamente com as forças do mercado,
desde que as facções dos idealistas não viessem a se lambuzar no farto mel nem se atrevessem a ir
com muita sede ao pote.
Em suma, numa
leitura freudiana, o “espírito de Sion” seria nada mais
nada menos que resquício de um poderoso afeto da vivência
primeva do indivíduo, uma espécie de ressonância do vínculo paterno a que estavam ligados indissociavelmente na tenra infância. Por um
processo psicológico de identificação/deslocamento, o poder
paterno estaria representado pelo Estado: ele seria o eterno provedor
das massas inflamadas. Já o “espírito de Anhembi” ―
a segunda alma do lulismo ―,
corresponderia àquela fase de rebeldia (adolescência) onde a rua,
e não mais a casa ou o lar, é que tinha o condão de atrair
os meninotes do meu tempo para o campo do liberalismo com suas luzes, seu
maravilhoso mercado de troca de Gibis e de revistas novelescas da
Abril Cultural, além de uma parafernália de objetos que estimulavam o desejo prazeroso de possuí-los. Eu diria, até, que o
espírito do Anhembi foi o grande responsável
pelo deslumbramento da pós-modernidade. Como o homem é um animal
contraditório por natureza, um fato não se pode negar: às vezes, o espírito de Sion entra sorrateiro na sala do pensamento do
sujeito, provocando uma pungente nostalgia, tal qual um
grito saído da boca dos ancestrais a invocar o primitivismo
latente mas não morto que habita os porões sombrios de sua psique.
Por
Levi B. Santos
4 comentários:
A meu ver, apenas entre a época do impeachment de Collor (início dos anos 90) e a campanha de 2002, prolongando-se pelos primeiros anos de governo, foi que o lulismo conseguiu equilibrar os dois lados da gestão de um pais numa economia de mercado: as demandas do capital com a satisfação das necessidades da população humilde. Eu diria que o PSDB de FHC também se voltou para essa tarefa sem ter conseguido conduzir uma ampliação das melhorias num ritmo que a sociedade brasileira ansiava. Tanto foi que, tendo ocorrido aquela máxi-desvalorização do real, no começo de 1999, houve um desgaste do governo tucano.
Mas voltando ao PT, recordo que, no anos 90, as ideias neoliberais chegaram a influenciar algumas lideranças mais esclarecidas. O próprio José Genuino foi considerado a "direita do PT" e nutria simpatia pelas privatizações flertando com o governo FHC. Ainda no governo Itamar, os radicais da CST deixaram o partido fundando o inexpressivo PSTU. SE tudo parecia que, em 1994, Lula iria ganhar até que surgiu o Plano Real conduzindo FHC à vitória e quatro anos depois à reeleição.
Apesar da crise das bolsas asiáticas de 1997 ter enfraquecido até os ânimos da direita com o neoliberalismo, o PT manteve seu norte (pelo menos no discurso) de tentar conciliar digamos os dois pólos. E foi assim que de fato conseguiu se aliançar com o empresariado nacional atraindo o bilionário empresário mineiro José de Alencar. Aliás, boa parte do setor produtivo confiou na campanha de Lula porque seria a sua candidatura promissora para o Brasil crescer, com juros mais baixos e incentivos à indústria, desatrelando-se do capital financeiro. Isso sem chutar o balde quanto às medidas necessárias para a estabilização da economia adotadas desde FHC. Tanto é que o banqueiro Henrique Meirelles foi chamado pelo então presidente da República.
Acredito que o escândalo do Mensalão não teria contribuído para essa tendência se desfazer. Tivemos na América Latina o crescimento do totalitarismo de esquerda e uma relação quase carnal do governo petista com Hugo Chávez e demais regimes bolivarianos que foram surgindo. Temia-se que Lula desse um golpe na Constituição ao fim de seu segundo mandato. Tanto é que surgiu aquele movimento "Não ao 3" contra uma reforma eleitoral que aprovasse indefinidas reeleições.
Mas o fato é que o longo tempo no poder foi fazendo o PT se tornar cada vez mais surdo e medíocre. Não houve uma melhora na sociedade tão esperada pelos antigos simpatizantes petistas, a qualidade da educação continuou péssima e a saúde uma droga. Aí entrou a Dilma e o diálogo foi piorando cada vez mais. Enfim, o PT se engessou e se mostrou incapaz de se reinventar.
Durante as manifestações contra o impeachment, deu para ver o empresariado em peso apoiando o afastamento de Dilma assim como a classe média. Por sua vez, o pobre que agora sofre com a inflação, desemprego e maus serviços também não foi às ruas defender o decadente mandato da presidenta. Lula desgastou-se mais ainda quando foi nomeado ministro e tentou virar o jogo. Já não era mais o mesmo e hoje as suspeitas sobre o seu envolvimento em corrupção estão cada vez mais próximas de se confirmarem. Com ele deverá ser enterrado os eu partido de 36 anos de fundação, devendo se formar duas novas esquerdas no Brasil: uma radical (PSOL, PCdoB, PCB, PSTU, PCO) e outra moderada (REDE, PPS, PSB e PV).
Lula agia como um jogador de futebol que sabe chutar com as duas pernas.
O jogador que é dextro quando invade a área pela direita sente dificuldade de chutar para o gol, a mesma coisa acontece com o canhoto. Lula pretendia fazer àquilo que em psicanálise se denomina síntese dos polos ambivalentes da alma humana, até que veio o mensalão para desmascarar a facção do PT radical que, numa utópica polarização ou mecanismo inconsciente de projeção, apregoava não ser igual aos outros partidos que considerava corruptos, fato, por sinal, implícito no ardiloso lema criada pelo Zé Dirceu: O PT não rouba nem deixa roubar
Lembra Rodrigão? (rsrs)
Pois é, Levi. Faz quase 12 anos quando o então ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu disse em seu discurso que "esse governo não rouba e não deixa roubar e combate a corrupção. Este é um compromisso histórico nosso". Na ocasião, Lula tinha seus 18 meses e Dirceu dizia também o seguinte sobre a eficiência da máquina administrativa: "Não podemos ter um Estado mínimo, mas também não podemos ter um Estado inchado e ineficiente".
O tempo passou e a História republicana mostrou que nunca se roubou tanto em volume como nos governos petistas. Foram bilhões e mais bilhões desviados e um show de ineficiência com esses sindicalistas incompetentes da CUT ocupando cargos comissionados. O equilíbrio entre o Estado mínimo e o inchado não foi de modo algum alcançado. Hoje Dirceu está preso pelos crimes cometidos.
O psicanalista e professor de filosofia da psicanálise da Unifesp, Tales Ab'Sáber, no Link abaixo, em uma rica entrevista fala mais sobre as ambiguidades do Lulismo em contraposição ao Dilmismo. Com certeza, quem tiver a paciência de dar uma olhada, não irá perder o seu tempo:
http://brasileiros.com.br/2016/04/todos-os-vinculos-foram-explodidos/
Postar um comentário