Era o medo de morrer que induzia os antigos escravos a permanecerem submissos a seus Senhores. O espectro desse medo, com sua sombra forte e lúgubre, como nos primórdios, sufoca ainda o nosso desejo de liberdade.
Hegel, em sua Fenomenologia do Espírito, fez um pequeno e emblemático intróito sobre a dialética ― “O Senhor e o Escravo”:
"Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar a sua vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, que náo teme por a sua vida em jogo. O outro que não ousa arriscar a sua vida, é vencido. O vencedor não mata o vencido, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o escravo “servus”, que agora conservado pelo Vitorioso se torna um eterno devedor.
Como toda moeda tem o seu lado avesso ou oposto, passemos a exibir a outra face da teoria de Hegel: "O Senhor só é senhor em função da existência do escravo. O Senhor depende da consciência do escravo para ser reconhecido como tal”.
O historiador inglês, Theodore Zeldin, em “Uma História Íntima da Humanidade”, tece algumas considerações sobre o paradoxo“liberdade-escravidão”, evidenciando que as pessoas crescem “fatigadas de obediência”, da mesma forma que evoluem “cansadas de liberdade”.Alguns escravos lograram assegurar sua autonomia mesmo sendo forçados a um trabalho desprezível, fingindo aceitar as humilhações, representando um papel de forma que o Senhor vivesse na ilusão de que detinha o comando, em consonância com o provérbio favorito do escravo jamaicano, que diz: “Passe por tolo para obter vantagem”.
O proprietário romano de escravos, Plínio (77 d.C.) ― apelidado de ―, "O Velho", no intuito de demonstrar que ele era também um escravo, assim escreveu: “Usamos os pés de outra pessoa quando saímos, usamos os olhos de outra pessoa para reconhecer as coisas, usamos a memória de outra pessoa para saudar as pessoas, usamos a ajuda de alguém para permanecer vivos. As únicas coisas que guardamos para nós mesmos são os prazeres.”
Mas o sonho da sociedade utilitária pós-moderna ainda continua sendo, como nos primórdios, o de um dia poder viver como um Senhor. Não sabem esses candidatos a senhores que ao tentarem abandonar as vestimentas de escravos, estarão se tornando dependentes de outros tipos de Senhores: os robôs da tecnologia niilista, a ciência agressiva, poderosa e insensibilizadora de nossos afetos.
Zigmunt Bauman, sobre a “pós modernidade líquida”, disse: “o homem pós-moderno faz tudo em nome da segurança. Ele quer ser livre e junto com este desejo vem a insegurança que o leva ao pânico”.
Concluindo: a escravidão nunca será abolida do mundo. No máximo ela será trocada por novas formas de escravização. Lutar para ser livre já se tornou cansativo e doloroso demais.
Tinha razão Theodore Zeldin, quando assim escreveu: “Cada geração procura somente o que pensa lhe faltar e reconhece apenas o que já conhece". No entanto, a despeito dos novos anseios de liberdade, muito do que as pessoas fazem ainda é governado pelos velhos modos de pensar”.
Já que estamos a falar sobre “Senhores e Escravos”, não podeira deixar de abordar um tipo de escravismo que campeia na pós-modernidade, e vem tomando conta de nós, de uma forma sutil e poderosa. Na maior parte do nosso tempo, navegamos muito mais pelo oceano da internet ou em redes virtuais, do que em conversa com os familiares que estão, em corpos, mais próximos em
nossos lares. Dependentes do “Senhor” ― “Mundo Cibernético”― progredimos e ao mesmo tempo retornamos a viver como os escravos de antigamente que não tinham família e não deviam lealdade a ninguém,salvo ao seu Senhor.
A evolução tecnológica que nos tirou das matas, é a mesma que nos aprisiona nas selvas de pedras e de silício. Boa parte das doenças que assolaram a humanidade de outrora, hoje, são facilmente debeladas; em contrapartida não conseguimos fugir do trabalho desvairado, do esgotamento nervoso, da depressão e do estresse. Levados por uma correnteza implacável continuamos escravos de nós mesmos.
Ensaio de Levi B. Santos, publicado originariamente no Blog. C.P.F.G. (Confraria dos Pensadores Fora da Gaiola) em abril de 2012.
7 comentários:
Caro Levi,
Muito bom seu texto e não tenho como discordar da análise que fez ao final do artigo quanto lembrou da moderna escravidão cibernética. Hoje em dia, ai do trabalhador se não acompanhar os recados do patrão no WhatsApp, sem o qual muitos acabam profissionalmente incluídos. No Direito, por exemplo, já se admimite até intimação eletrônica por este meio. E, pelas regras do novo Código de Processo Civil (CPC), encontro sérios obstáculos se for ajuizar uma ação sem informar o endereço eletrônico do meu cliente. Veja só este artigo que escrevi recentemente em meu blogue:
https://doutorrodrigoluz.blogspot.com.br/2016/06/a-importancia-do-e-mail-para-fins.html
Mas há escravidões piores e ocorre quando a própria pessoa permite se escravizar em seus desejos e emoções. Pois o trabalhador, quando não quer se submeter, ele pode definir um horário em seu dia útil para abrir a caixa postal eletrônica e/ou olhar os recados do WhatsApp. Conheço um pessoa que age assim e diz que, se alguém quer falar com ele urgentemente, que ligue para o seu celular.
Acredito que, pelo fato de tudo ser muito novo, as pessoas ainda estão encontrando dificuldades de lidar com a tecnologia que cada vez mais nos cerca. O que era para nos proporcionar mais tempo para o lazer e qualidade de vida, acaba se tornando a corrente que nos prende. A internet torna-se uma nova droga que, se usada compulsivamente, torna o homem improdutivo economicamente (se usada para lazer em demasia) e acaba privando-o do relacionamento social com a família, amigos e com a natureza.
É como ensinava Jesus, no 4º Evangelho, quando o Mestre disse que todo aquele que vive em pecado seria escravo deste. Não concorda?
Em tempo! Já que falei do Evangelho de João, cabe aqui uma outra reflexão do NT da Bíblia sobre o tema da escravidão:
"Cada um deve permanecer na condição em que foi chamado por Deus. Foi você chamado sendo escravo? Não se incomode com isso. Mas, se você puder conseguir a liberdade, consiga-a. Pois aquele que, sendo escravo, foi chamado pelo Senhor, é liberto e pertence ao Senhor; Semelhantemente, aquele que era livre quando foi chamado, é escravo de Cristo. Vocês foram comprados por alto preço; não se tornem escravos de homens. Irmãos, cada um deve permanecer diante de Deus na condição em que foi chamado." (1ª Coríntios 7:20-24; NVI)
Nesta carta à Igreja em Corinto, Paulo parece não dar tanto valor a uma alforria no que diz respeito à exploração do trabalho escravo. Ele não dispensa a oportunidade do escravo mudar tal condição, mas ressalta uma outra liberdade adquirida no Senhor.
Praticamente dois mil anos depois do apóstolo ter nos deixado essas orientações, os teólogos ainda procuram desenvolver a ideia de como se dá essa liberdade adquirida pela submissão ao senhorio de Cristo. E aí eu me aventuraria em dizer que o praticante da religião, por agir com maior disciplina sobre as tentações da carne (suas compulsões), consegue maior êxito na busca da liberdade do que o indivíduo inconsciente e/ou sem atitude cujas emoções ele não tenta conduzir.
Enfim, você mexeu num tema que dá pra se debater bastante... (rsrsrs)
Em tempo 2!
Gostaria ainda de chamar sua atenção para a Epístola a Filemon, na qual Paulo, estando preso, intercede pelo escravo fujão Onésimo junto ao seu senhor, o qual seria também um cristão.
Tendo o apóstolo ganhado o coração de Onésimo pela via do diálogo, busca de tal modo apaziguar os ânimos de Filemon tentando promover uma conciliação entre ambos, chamando-me a atenção este versículo numerado como sendo o catorze, visto que, por sua autoridade no meio eclesiástico, Paulo poderia mandar tanto no escravo quan to no senhor deste:
"Mas não quis fazer nada sem a sua permissão, para que qualquer favor que você fizer seja espontâneo, e não forçado."
Posso dizer que a liberdade se conquista quando, pela afirmação do senso ético, tomamos as decisões corretas. É quando já não nos levamos mais pelas cadeias das emoções e dos ressentimentos. E o texto nos leva a concluir que, por livre vontade, Onésimo e Filemon vão então se encontrar...
Li e refleti sobre seus comentários, por sinal muito bem vindos, Rodrigão.
Mas indo mais profundamente e entrando atrevidamente na instância da Psicanálise (não sou psicanalista, mas um curioso na matéria - rsrs) eu perguntaria:
Diante dos objetos provocadores de desejo da pós-modernidade, será que não somos escravizados por esse anseio primitivo instintivo que nos consome de forma cansativa e dolorosa?
São tantos os fardos pesados que a modernidade coloca em nossos ombros sob o rótulo de "progresso" que, francamente, não sei se somos menos escravos do que foram os nossos ancestrais. (rsrs)
Boa tarde, Levi.
Penso que, se pessoas gostam de ficar várias horas de seus dias navegando na internet para fins de entretenimento é porque isso lhes proporciona prazer. Ainda hoje, ao escrever sobre o desinteresse cada vez maior dos moradores das cidades do Sudeste quanto às festas caipiras (diferente aí do Nordeste onde vive), indaguei ironicamente por que quase ninguém mais tira um tempinho para enfeitar as suas ruas com bandeirinhas? Será pela falta de tempo quando, na verdade, temos muito para ficar entrando nas redes sociais pelo celular?!
Porém, acredito sim que haja um anseio primitiva por liberdade, prazer e convivência, mas que se encontra agora mal canalizado para a internet de maneira excessiva. Talvez a rede tenha se tornado um escape do tédio, preenchendo ainda que ilusoriamente a necessidade da mente estar em permanente estado de gozo. Ou quem sabe facilitando uma espécie de encontro de almas sem a percepção mais completa do contato presencial que, por sua vez, atrapalha o desenvolvimento da comunicação? Pois falando face a face, nem sempre um transmite ao outro tudo o que pensa ou sente por inúmeras razões capazes de distrair ou bloquear a entrega da mensagem. E, por outro lado, o encontro de pessoas desconhecidas na internet, facilita eventuais desabafos acerca dos nossos pensamentos e sentimentos, coisa que nem sempre as pessoas conseguem fazer entre seus familiares e vizinhos da comunidade.
Sobre seu último parágrafo no comentário acima, creio estarmos de acordo que há uma equivocada rotulação quanto ao que vem a ser progresso. E, de fato, podemos sim ser mais escravos do que teriam sido algum de nossos ancestrais de origem ou descendência africana. Aliás, não descarto que possa ter um "pé" ou dois lá no outro continente. (rsrsrs)
Olá Levi meu mestre Bronzeado, quanto tempo que não nos falamos, na verdade, não nos teclamos (risos). Sabe quem me trouxe aqui não é? Pois é, foi ele mesmo, o bom e velho Marcio que não mudou uma vírgula do que outrora fora. Não sei porque cargas d'agua ele ainda não acredita que há esperança para homem. Aí ele chega aqui e se depara com tão belas palavras que só poderiam brotar de uma mente poética como a tua e realmente acredita que vossa excelência seja mesmo tão pessimista quanto à humanidade. Tolo que é meu jovem amigo Marcio que não consegue ver o óbvio roçando os ralos pelos de seu bigode.
Sou livre, somos nós dois livres meu velho amigo, pois certamente escolhemos as amarras que nos prendem, as trancas que nos aferrolham, os grilhões que nos marcam os tornozelos, e o café quente que nos adormece a língua. Somos livres porque descobrimos que liberdade não é gozar de um direito ambulatorial que nos deram e sim, livres somos quando limitamos nossa capacidade de ir, vir, permanecer e estar, apenas quando essas limitações são cogitadas, preparadas, executadas e consumadas por nós mesmos. Isto é a mais pura liberdade. Sinto-me livre como um canário que nasceu no ninho de uma gaiola e em seu primeiro voo rumo ao céu, pode, e consequentemente será, devorado por uma ave de rapina qualquer.
Quando escolhi a liberdade, não me disseram que seria boa, perfeita e agradável. Disseram-me (disse-me) que seria pura e simplesmente....liberdade.
Como podes perceber meu mestre, não estou (sou) escravo da razão como sugere o garoto Marcio. Sou escravo da liberdade de pensamento que escolhi. Estou amarrado ao caminho que escolhi traçar. Pago a promessa que me obriguei cumprir, tudo isso no mais significante valor de liberdade plena.
Mestre, estamos sentido sua falta em nosso grupo C.P.F.G 4.0 2016. Escolha prender-se a nós que o amamos e o admiramos, e prometemos não deixá-lo em paz um minuto sequer. Garanto que seu telefone precisará ser guardado em uma gaiola tantos serão os cantos produzidos pelo "zap zap". Escolha mestre Levi ser livre mesmo que seja trancafiando-se num mundo de amigos virtuais (que são muito mais reais do que os reais amigos que lhe tocam as vestes. Todavia, se não pretende mesmo ter este tipo de escravidão voluntária, peço-lhe que nunca se esqueça que o látego que fere é só o que está na mão do algoz, pois quando este instrumento de tortura é empunhado por nós que a nós mesmos acoitamos, quase sempre estaremos buscando a libertação.
Lindo...lindo ...lindo texto Mestre.
Noreda Somu Tossan
Caro Noreda
Que bom tê-lo aqui, novamente, com seus incisivos e profundos comentários. Seja sempre bem vindo.
Você falou:
“Quando escolhi a liberdade, não me disseram que seria boa, perfeita e agradável”
Talvez não haja discordância entre nós (contando com Márcio) e sim um mal entendido. Como bem sabemos a língua portuguesa é cheia de nuances, principalmente no tocante ao significado dos termos, especialmente no caso da palavra liberdade ou ser livre.
Aqui tem que se levar em conta que a consciência é apenas um iceberg, ou seja, apenas uma minúscula parte de um bloco muito maior que se encontra submerso em nossas profundezas psíquicas. Se dessas profundezas algo nos faz agir ou ir em determinada direção, como podemos dizer que somos psiquicamente livres?
O conceito de liberdade de escolha com relação ao aparelho psíquico é posto em xeque quando se compreende que o ser humano éreacionário por natureza, ou seja, estamos inconscientemente sempre racionalizando, sempre reagindo a uma ação interna que nos marcou profundamente nos primórdios de nossa frágil vida. Por isso que, na psicanálise, a racionalização é sempre um mecanismo de defesa psíquico. Pascal, mais de 200 anos antes de Freud, já dizia sabiamente que no coração havia razões que a própria razão desconhecia.
Em um ensaio postado neste blog em fevereiro de 2011, discorrendo sobre “Liberdade Virtual”, assim expus o termo “ser livre” (ou ter liberdade) do ponto de vista da psicanálise:
Na verdade, lá no nosso mais íntimo recanto somos assombrados pelo desassossego de viver sem a proteção de alguém mais poderoso, sem uma mão mais forte a segurar a nossa. Ser dependente para nós é uma constatação terrível e insuportável, apesar de existir dentro de nós um tipo de liberdade: a de dar nomes às coisas. Psicanaliticamente falando somos escravos dos instintos. Somos consumidos por um desejo de algo novo. Esse anseio primitivo, no entanto, se torna cansativo e doloroso, e terminamos por ceder a um “senhor mais forte”, que nos oferece o antigo fio em que nos quedamos escravos. Nossas autobiografias, caso retrocedessem a nossos ancestrais, poderiam nos fazer ver de que forma eles foram escravizados, e até que ponto nos libertamos dessa herança. Veríamos que não somos nós que falamos; dentro de nós há muitas vidas. Muito de nossa ancestralidade grita através de nossa garganta. Caminhamos em um círculo, onde tudo que vemos e que racionalizamos como novidade, já foi passado. Usamos os pés de outras pessoas quando andamos para frente, usamos os olhos de outra pessoa para reconhecer as coisas, usamos a memória dos que se foram, para formatar as nossas ambições. Escreveu Plínio (o Velho) 77 d.C.: “as únicas coisas que guardamos para nós mesmos são os nossos prazeres”.
Como “ser livre”, se as memórias que guardamos do nosso passado, ainda regem e influenciam os nossos sentimentos no presente?
Dizemos que somos livres ao pensarmos que os conceitos que adotamos são puramente nossos, quando não passam de um somatório de influências que incorporamos no dia a dia de nossa existência. “O homem moderno vive na ilusão de saber o que quer, quando de fato ele quer o que se supõe que deva querer” - (Erich From — O Medo à Liberdade)
Abçs. E volte sempre.
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