29 junho 2016

"Credo Católico” e “Credo Psicanalítico” ─ Interseções





O Pai, é o grande herói da criança, principalmente em seus primeiros passos. É para essa figura que o adulto-criança, como ser faltante, transfere seus mais prementes anseios e desejos de completude. Esse “vínculo de amor”, de modo inconsciente, acompanha o homem em todo o seu desenvolvimento. De acordo com David E. Zimermann, essa espécie de relacionamento afetivo, como um pensamento mágico, está presente no homem primitivo: em suas crenças nos mitos e ritos, se fazendo presente até nas modernas ciências e nas culturas vigentes. Esse vínculo de amor tem sido enfocado, a seu modo, nas diferentes instâncias: mitologia, religião, filosofia, literatura, ciências e mais recentemente na psicanálise. Na psicanálise, entre o analisando e o analisado, esse vínculo foi nomeado “amor de transferência” sentimento este que a experiência religiosa, à sua maneira e de modo especial tomou-a para si.

A búlgara, Julia Kristeva, que antes de sua formatura em psicanálise foi professa da religião cristã ortodoxa, vê a experiência religiosa como um equivalente da análise psíquica, uma vez que ambas são propiciadas por um pacto de confiança recíproca. “A análise começa num momento comparável ao da fé, que é estabelecimento do amor de transferência. Eu tenho confiança em você e espero algo em contrapartida” assinala ela em seu livro, No Princípio Era o Amor (editora brasiliense).

Diferentemente do desejo de obter algo em contrapartida, que acontece com o fiel em face do Credo do Pai Todo Poderoso, Kristeva faz a seguinte contraposição em defesa do “Credo Psicanalitico”: “No entanto, a análise termina com a constatação de que não poderia haver contrapartida sem que eu me alienasse ao benfeitor”.

Júlia Kisteva dá a entender que enquanto o Credo católico do Pai Todo Poderoso reflete um amor transferencial (Apego ? Alienação? entre o fiel e o pai imaginário) “o discurso analítico fala de uma humanidade que aceita perder, para reconhecer-se em pura perda.”

O homem religioso preso a transformação imaginária de um mundo imundo e corrupto em um mundo purificado deposita seu penhor, seu desejo, sua força mágica no seu Deus ou Pai Todo Poderoso. Sua adesão à figura desse Pai Todo Poderoso e Sua fantástica narrativa gratifica-lhe com a glória futura. Segundo Kristeva, “O credo analítico, ao contrário, revela-nos verdades desagradáveis no mais das vezes a respeito de nossos próprios interesses psíquicos com que construímos nossos pactos amorosos, profissionais e conjugais. Tudo isso permeado por incertezas políticas, econômicas em meio a um vazio ideológico pouco propício a uma modificação”.

Lou Andreas – Salomé única mulher e ousada poetisa (Vide Link) a participar das reuniões psicanalíticas das quartas-feiras na casa de Freud (Viena) , em seu livro “Carta Aberta a Freud” (página 63 – Editora Princípio – 1931) faz uma menção emblemática ao homem piedoso em face de seu credo religioso:

Não nos esqueçamos de que no nosso próprio campo, vozes se têm levantado para nos alertar quanto a irmos longe demais, ou seja, por assimilarmos projeções grosseiras do desejo do divino às “espiritualizações” das quais ele é objeto. Para torná-lo bem científico têm-se passado conteúdos religiosos sob a luz da filosofia e da ética. Mas o senhor me conhece bastante para saber que nada me repugna tanto quanto despir a Deus do seu velho roupão para vesti-lo com um traje mais apresentável, a fim de introduzi-lo na alta sociedade.”

Por sua vez, falando aos católicos em um seminário na cidade de Paris, Jacques Lacan (realizador da magistral releitura das obras de Freud nos últimos tempos), surpreendeu a todos ao declarar que a religião triunfaria sobre a psicanálise (Vide “Triunfo da Religião" – Editora Zahar):

A religião tem recursos que nem se pode imaginar. Basta ver por enquanto como ela fervilha. São capazes de dar um sentido a vida humana. [...]Eu sou São João e seu 'No Começo Era O Verbo'. Para a análise, é verdade, no começo é o verbo(palavra, linguagem). Se não houvesse isso, não vejo porque a gente estaria nessa, juntos” concluiu surpreendentemente Jacques Lacan em uma entrevista à imprensa”. [Na íntegra, a entrevista de Jacques Lacan à Agence Central de Presse em Paris em 20/04/1974 – está reproduzida no Site Lacaneando Link: https://lacaneando.com.br/entrevista-a-imprensa-do-dr-lacan/]


Por Levi B. Santos
Guarabira, 29 de junho de 2016



6 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Bom dia, Levi!

Ótimas as conclusões de Lacan que citou. Pena o tempo não me permitir ainda ler a entrevista que ele deu.

Penso que a religião, apesar de suas inúmeras falhas, alcança pontos do ser humano que a psicoterapia não preenche. Por exemplo, ao deixar o consultório do terapeuta, o paciente já não tem mais o acompanhamento físico daquele profissional que ele gostaria que fosse onipresente. Na sessão, não consegue fazer com que todas as suas dores e episódios importantes sejam conhecidos por quem não é onisciente. Tão pouco pode contar com a intervenção de quem, ao invés de onipotente, é impotente para resolver seus problemas.

Inegável que pessoas de fé suportam melhor os desafios que enfrentam ainda que venham a abordar os fatos da vida muitas vezes de maneira imatura e não receba uma assistência pastoral adequada na religião. Logo, o crente dificilmente perde as esperanças enquanto o descrente torna-se muitas vezes vulnerável. Principalmente quando racionaliza a inexistência de uma solução para o seu caso.

O que acha?

Levi Bronzeado dos Santos disse...

“Na sessão, não consegue fazer com que todas as suas dores e episódios importantes sejam conhecidos por quem não é onisciente. Tão pouco pode contar com a intervenção de quem, ao invés de onipotente, é impotente para resolver seus problemas. (Rodrigo)

A humana dualidade antagônica “Onipotência – Impotência” que você frisou em seu comentário, acima replicado fez-me lembrar de um trecho do livro “Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe” do psicanalista Philippe Julien que, de certa forma, tem algo a ver com o Credo do Pai Todo Poderoso do Catolicismo, que pretendi no ensaio postado aproximar
do Credo Psicanalítico:

“Basta ler os testemunhos dos evangelistas. Jesus faz primeiro apelo a um Pai que seria Todo-Poderoso, depois renuncia a seu pedido para abandonar-se nas mãos de um Pai que nada pode sem o consentimento do filho” (no entanto, não o que eu quero mas oque tu queres)

[…] .O credo psicanalítico é muito duro e cruel, pois gira em torno desse abandono existencial - arquétipo paterno que deixa o filho diante de um Pai esvaziado de sua potência, que na visão de Philippe Julien, se deixa entregar às consequências felizes ou infelizes, da liberdade e do desejo humanos” Nesse sentido, Hegel percebia o cristianismo como consequência do luto do Pai ideal Todo Poderoso.

[…] Por que Ele se submeteu a nosso querer, bom ou ruim. Ele não veio (na versão cristã) como vencedor, mas suplicando. (P. Julien).

Parece, Rodrigão, que o Credo católico não suporta um Deus indo a procura do homem.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Segundo o artigo escrito em espanhol pelo meu herético avô materno greco-costarriquenho, Georges Phanardzis, o qual publiquei dia 24/04 na nossa Confraria Teológica Logos e Mythos, a oração do Pai Nosso seria judaica e não cristã:

"El Padrenuestro fue dado antes de la cruz, quando Jesucristo instruía a sus apóstoles que no fueran por caminos de gentiles (Mat. 10:5) y consequentemente no se destina a los Cristianos, denominación que fue dada en Antioquía, décadas después de la ressurrección (Hechos 11:26), dejando patente que ni los apósteles ni Jesús, antes de la cruz, podrían ser llamados así." - http://logosemithos.blogspot.com.br/2016/04/seria-o-pai-nosso-uma-oracao-crista.html


Questionando onde estaria o Pai que, na oração é indicado como estaria "nos céus", ele rebate:

"¿En los cielos? ¡Creo que no! Después de la cruz, Dios unió cielos y tierra y él ahora está entre nosotros, en nosotros y no más en aquel lugar místico, lejano, inaccesible e inalcanzable (2ª Cor. 6:16 y Ef. 1:10); el reconcilióse con nosotros y ahora tenemos libertad y acceso a Dios con confianza (Ef. 3:12)."

Todavia, quanto ao ponto que colocou, ao citar P. Julien, a análise desjudaizante que meu avô fez do cristianismo, baseando-se nas cartas de Paulo, não mudou nada:

"¡ Como si se pudiera ser de otro modo! La soberanía de Dios está magnifica e dramáticamente descrita en Rom. 9:15-16"

Mas estamos a abordar uma das pedras de tropeço de muita gente dentro da religião. É quando o Pai nada faz para livrar seu filho do sofrimento. Este que também é motivo de atração de muitos para a Igreja também afasta quem nela se encontra atuando fielmente. O crente, sentindo-se abandonado afasta-se de sua comunidade eclesiástica e passa a desconstruir suas crenças, aceitando desde a descrença em si (sobre não ter fé suficiente), passando pela rejeição do milagre ou caindo nas armadilhas do ateísmo. Uns poucos admitem que podem passar por tribulações e que, neste mundo, apesar de sermos vitoriosos, podemos passar por aflições. Eu mesmo nem sempre aceito tal realidade em meu íntimo...

Bem, eu havia antes exposto as frustrações que um paciente pode ter com seu psicoterapeuta enquanto sua réplica fez-me refletir acerca das decepções quanto à religião ou a Deus. (rsrsrs)

Mas, quanto ao seu último parágrafo do comentário, creio que, na religião, Deus ir à procura do homem pode ocorrer quando um amigo, um irmão ou um parente compreensivo, sem assediar nossas vontades próprias, vem trazer um conforto nas horas difíceis, tornando-se instrumentos do Pai Celestial.

Levi Bronzeado dos Santos disse...

Quanto a “oração do Pai Nosso ser judaica e não cristã, , concordo plenamente com seu avô “herético” (entre aspas – rsrs).

"¿En los cielos? ¡Creo que no! Después de la cruz, Dios unió cielos y tierra y él ahora está entre nosotros, en nosotros y no más en aquel lugar místico, lejano, inaccesible e inalcanzable (2ª Cor. 6:16 y Ef. 1:10); el reconcilióse con nosotros y ahora tenemos libertad y acceso a Dios con confianza (Ef. 3:12)." (Georges Phanazardzis)

Foi esse o meu intento, ao centrar o ensaio em trechos do formidável livro de Julia Kristeva (cristã e psicanalista). Veja como o que Kristeva escreveu, e que replico abaixo, coaduna-se com os sólidos argumentos de seu saudoso avô:

Iahvé separa o céu da terra (judaísmo). Psicologicamente porém, cabe a paixão de Cristo, à loucura da cruz, como dizem Pascal e São Paulo, manifestar esse desdobramento sombrio que é talvez a condição paradoxal da fé: “Pai por que me abandonaste?”. É para além dessa melancolia essencial que o ser humano procura reencontrar o OUTRO, doravante seu interlocutor simbólico, em consonância com o epílogo de seu último comentário;

“...quando um amigo, um irmão ou um parente compreensivo, sem assediar nossas vontades próprias, vem trazer um conforto nas horas difíceis, tornando-se instrumentos do Pai Celestial. (Rodrigo)







RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Pois é, Levi, eu considero herético esse meu avô por defender ele ideias que se afastam da ortodoxia cristã protestante, muito embora ele tenha se tornado membro de uma seita surgida lá na América Central chamada Creciendo en Gracia, fundada pelo porto-riquenho José Luis de Jesús Miranda. Porém, não con sidero que tal instituição se encontre "fora da gaiola" (rsrsrs)

E esse meu avô ainda é vivo tendo hoje seus 83 anos de modo que não está tão idoso assim para ter um neto de 40. Aliás, é o último dos avós que me restou ainda encarnado.

Mas, indo ao debate, creio estarmos de acordo com muitas coisas. E, quanto à concepção judaica da Divindade, o que entendemos por Levítico é que a santidade do Eterno exige do homem uma permanente purificação para que este se coloque em sua Presença sem profanar o local de manifestação da glória divina. Daí o surgimento de um ineficaz sistema penitencial no qual até o sumo sacerdote da Aliança do Sinai precisava também purificar-se para poder entrar no Santo dos Santos uma vez ao ano sem alcançar uma solução definitiva.

Bem, podemos entender, sob esta ótica, que seria o homem quem se afasta do Santo pois o Altíssimo também consente em habitar com o contrito de coração, segundo os profetas. Ou seja, mesmo em sua evolução, o judaísmo antigo descrito na Bíblia já desconsiderava o véu da separação em diversas situações. Aliás, só o fato de muitos profetas não terem sido na linhagem araônica já veio mostrar um movimento da religião. Ainda que restassem valores culturais (estes também são mantidos ou recriados no cristianismo), é a atitude interior que passa a importar.

Contudo, todo amor declarado pela Divindade torna-se estéril quando não acompanhado de uma atitude sinceramente benigna em relação ao próximo já que, sendo este visível e necessitado de assistência/respeito, deve ser o destinatário das ações.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Em tempo!

Ao que parece terminamos por trazer reflexões que levam ao que poderíamos chamar de Credo da Amizade.

Talvez tão importante quanto a psicoterapia e o desenvolvimento de uma espiritualidade saudável seria o homem ter amigos com os quais ele possa dividir um pouco de sua vida, confessando com confiança aquilo que sente.

Ótimo final de sábado e um feliz domingo!