O
psicanalista e ensaísta da Folha de São Paulo, Contardo
Calligaris, de formação lacaniana, em um artigo publicado hoje
na Folha de São Paulo confirma o quanto somos guiados pelo princípio
do PRAZER — fenômeno
observado e estudado minuciosamente por Freud e, mas do que
nunca, em evidência nos meios familiares, sociais e políticos da
atualidade. Diz ele, em conformidade com a metáfora 'mundo líquido'
de Bauman: “há um tremendo prazer em saborear nossa
capacidade de 'entender' o mundo, e tanto faz se a 'explicação'
pouco ou nada tem a ver com a realidade”.
Contardo
Calligaris, foi discípulo de Lacan, em Paris, e como tal,
profundo conhecedor de suas ideias. Da existência de armadilhas que
intermedeiam as ações e reações humanas, ele as reconhece em si
mesmo. Ações que, por vezes, partem de nós, sem que haja o mínimo
de reflexão. Reza a psicanálise que o segredo reside em nós, lá
no lado avesso do bordado ou peça argumentativa que empreendemos.
Ardorosamente desejamos, agimos ou reagimos para não pensar, como
estivéssemos erigindo fortalezas a fim de que algo profundamente
enraizado em nosso íntimo não apareça.
O
fenomenal ensaio de Contardo, sob o título ―
“Quem Matou Teori Zavascki?”―
demostra a existência de um caleidoscópio de elementos arcaicos que
se movimentam dentro de nós à procura de uma solução que nos
satisfaça.
É
sobre as armadilhas do Desejo do Outro, em nós refletido, que o
psicanalista Contardo Calligaris nos brinda com o antológico
ensaio, abaixo replicado. Acho que vale a pena conferi-lo.
“QUEM
MATOU TEORI ZAVASCKI?”
A
última operação lançada pela Polícia Federal brasileira foi
batizada "Cui
Bono?"
–"para o bem de quem?", "a quem beneficia?".
Quando
se procura o responsável por um crime (ou por um fato que poderia
ser um crime), quem sai ganhando poderia ser, no mínimo, suspeito.
Não é?
De
fato, a pergunta "a quem beneficia?", por si só, não leva
ninguém a conclusão alguma.
Primeiro,
um crime pode beneficiar a tanta gente que é impossível
identificar, assim, o responsável. Segundo e mais importante, não
somos seres racionais: não paramos de cometer atos que não nos
favorecem e mesmo que nos prejudicam –por descontrole, vingança,
rancor, amor, estupidez etc.
Na
maioria dos casos, a pergunta "a quem beneficia?" só serve
para produzir em nós a ilusão agradável de que compreendemos: de
repente, a realidade pode ser "explicada" pelas supostas
motivações dos indivíduos suspeitos. A morte de Teori Zavascki foi
um acidente? Sim, claro. Como a morte de Juscelino, de Eduardo Campos
etc. ― cui bono? Quem
tinha interesse em atrasar a Lava Jato? Ou em destruir documentos que
dizem que estavam na pasta do magistrado?
Sites,
blogs, tuítes não precisam dizer quase nada explicitamente. Eles
preferem fazer alusão a segredos que sequer precisam ser
mencionados: entre "nós" um olhar basta, "eles"
não vão nos enganar.
Essa
preferência pela alusão evita o ridículo que, sem ela, triunfaria.
Pegue
a simpatia declarada de Donald Trump por Putin. Acrescente a
intervenção de hackers russos nas eleições dos EUA e eis uma
mistura do seriado "The Americans" com o filme "A
Profecia": desde criança, Trump seria um agente russo dormente
que conseguiu entrar no establishment dos EUA a ponto de se tornar
presidente do país. Não é boa?
Já
escrevi isto
antes:
há um tremendo prazer em saborear nossa capacidade de "entender"
o mundo, e tanto faz se a "explicação" pouco ou nada tem
a ver com a realidade.
A
ideia de conspirações escusas atrás de tudo faz sucesso desde o
fim do século 18, quando a história ficou órfã de Deus. Desde
então, adoramos descobrir ou inventar que mãos sangrentas operam
escondidas nas coxias do nosso teatro: aparentemente, a paranoia nos
consola de estarmos num mundo sem sentido.
Nas
últimas décadas, duas datas. A partir dos anos 1950 e 1960 do
século passado, as explicações paranoicas do mundo se multiplicam
– talvez por efeito da Guerra Fria, em que a inimizade do outro
lado podia explicar quase tudo.
Nos
anos 1990, chega a internet. Torna-se fácil propagar ideias em
comunidades em que todos concordam (com quem discorda não é preciso
argumentar, basta bloquear). O consenso alimenta a certeza de cada um
e a loucura das interpretações.
Como
já dizia Nietzsche, comentando Hamlet no "Ecce Homo": "Não
é a dúvida, mas a certeza que nos enlouquece".
Enfim,
a paranoia é hoje o estilo mais popular de explicação do mundo.
Isso porque o mundo é mais complexo do que nunca e topamos qualquer
negócio para nos iludir quanto à nossa capacidade de explicá-lo.
Certo? Sim, e a internet facilita essa ilusão.
Agora,
talvez não seja só pela Guerra Fria que, nos anos 1950 e 60, tenha
aumentado nosso gosto pela explicação paranoica do mundo.
Justamente
nesses anos, no Ocidente, o amor dos pais pelos filhos se torna
dramaticamente narcisista, ou seja, cada vez mais, os pais esperam
que os filhos realizem seus sonhos frustrados. Cada vez mais, os pais
amam os filhos como prolongamentos de suas próprias vidas –como
segundas chances deles, dos pais, e não como seres separados.
Você
acharia revoltante um pai ou uma mãe que tivessem um filho para
encontrar na criança órgãos compatíveis com os seus, para
transplante? Pois bem, o amor narcisista dos pais modernos é o
equivalente psíquico dessa conduta.
O
amor parental se tornou, ao mesmo tempo, excessivo e opressivo: você
será o que eu preciso que você seja para realizar meus sonhos.
Logo
no fim dos anos 1940, uma grande psicanalista, Melanie Klein,
descobriu que, já no primeiro ano de vida, as crianças temiam ser
odiadas pela pessoa que mais amavam. Ela chamou esse temor de
"posição esquizoparanoide". Por que será?
Com
os pais que temos e que somos, não é de estranhar que a paranoia se
torne a maneira mais popular de tentar compreender o mundo.[Contardo
Calligaris – Caderno “Ilustrada” –
Folha de São Paulo de 26 de janeiro de 2017]
P.S.:
A
verdade nunca é toda. Sempre escapa um resto a demonstrar. Esse resto
não pode ser encontrado, pois, sendo da ordem do inconsciente, se
apresenta como um buraco ou furo que tudo suga para que nada possa
aparecer. Na fala, a verdade reside no não dito pelo sujeito, e na
escrita a verdade está nas entrelinhas do que se escreve. A angústia
é resultado da impossibilidade de dizer toda a verdade que, por ser
inconsciente, não pode ser dita por completo.
Quando alguém afirmar uma "verdade" sobre você, a maneira dolorosa, mas mais prática de reagir ― é proceder exatamente como Cristo o fez
perante Pilatos: “Tu o Dizes!”
Guarabira,
26 de janeiro de 2017