26 janeiro 2017

“Cui Bono?” (A Quem Beneficia?…)





O psicanalista e ensaísta da Folha de São Paulo, Contardo Calligaris, de formação lacaniana, em um artigo publicado hoje na Folha de São Paulo confirma o quanto somos guiados pelo princípio do PRAZER fenômeno observado e estudado minuciosamente por Freud e, mas do que nunca, em evidência nos meios familiares, sociais e políticos da atualidade. Diz ele, em conformidade com a metáfora 'mundo líquido' de Bauman: “há um tremendo prazer em saborear nossa capacidade de 'entender' o mundo, e tanto faz se a 'explicação' pouco ou nada tem a ver com a realidade”.

Contardo Calligaris, foi discípulo de Lacan, em Paris, e como tal, profundo conhecedor de suas ideias. Da existência de armadilhas que intermedeiam as ações e reações humanas, ele as reconhece em si mesmo. Ações que, por vezes, partem de nós, sem que haja o mínimo de reflexão. Reza a psicanálise que o segredo reside em nós, lá no lado avesso do bordado ou peça argumentativa que empreendemos. Ardorosamente desejamos, agimos ou reagimos para não pensar, como estivéssemos erigindo fortalezas a fim de que algo profundamente enraizado em nosso íntimo não apareça.

O fenomenal ensaio de Contardo, sob o título “Quem Matou Teori Zavascki?” demostra a existência de um caleidoscópio de elementos arcaicos que se movimentam dentro de nós à procura de uma solução que nos satisfaça.

É sobre as armadilhas do Desejo do Outro, em nós refletido, que o psicanalista Contardo Calligaris nos brinda com o antológico ensaio, abaixo replicado. Acho que vale a pena conferi-lo. 


 “QUEM MATOU TEORI ZAVASCKI?


 A última operação lançada pela Polícia Federal brasileira foi batizada "Cui Bono?" –"para o bem de quem?", "a quem beneficia?".
Quando se procura o responsável por um crime (ou por um fato que poderia ser um crime), quem sai ganhando poderia ser, no mínimo, suspeito. Não é?
De fato, a pergunta "a quem beneficia?", por si só, não leva ninguém a conclusão alguma.
Primeiro, um crime pode beneficiar a tanta gente que é impossível identificar, assim, o responsável. Segundo e mais importante, não somos seres racionais: não paramos de cometer atos que não nos favorecem e mesmo que nos prejudicam –por descontrole, vingança, rancor, amor, estupidez etc.
Na maioria dos casos, a pergunta "a quem beneficia?" só serve para produzir em nós a ilusão agradável de que compreendemos: de repente, a realidade pode ser "explicada" pelas supostas motivações dos indivíduos suspeitos. A morte de Teori Zavascki foi um acidente? Sim, claro. Como a morte de Juscelino, de Eduardo Campos etc. cui bono? Quem tinha interesse em atrasar a Lava Jato? Ou em destruir documentos que dizem que estavam na pasta do magistrado?
Sites, blogs, tuítes não precisam dizer quase nada explicitamente. Eles preferem fazer alusão a segredos que sequer precisam ser mencionados: entre "nós" um olhar basta, "eles" não vão nos enganar.
Essa preferência pela alusão evita o ridículo que, sem ela, triunfaria.
Pegue a simpatia declarada de Donald Trump por Putin. Acrescente a intervenção de hackers russos nas eleições dos EUA e eis uma mistura do seriado "The Americans" com o filme "A Profecia": desde criança, Trump seria um agente russo dormente que conseguiu entrar no establishment dos EUA a ponto de se tornar presidente do país. Não é boa?
Já escrevi isto antes: há um tremendo prazer em saborear nossa capacidade de "entender" o mundo, e tanto faz se a "explicação" pouco ou nada tem a ver com a realidade.
A ideia de conspirações escusas atrás de tudo faz sucesso desde o fim do século 18, quando a história ficou órfã de Deus. Desde então, adoramos descobrir ou inventar que mãos sangrentas operam escondidas nas coxias do nosso teatro: aparentemente, a paranoia nos consola de estarmos num mundo sem sentido.
Nas últimas décadas, duas datas. A partir dos anos 1950 e 1960 do século passado, as explicações paranoicas do mundo se multiplicam – talvez por efeito da Guerra Fria, em que a inimizade do outro lado podia explicar quase tudo.
Nos anos 1990, chega a internet. Torna-se fácil propagar ideias em comunidades em que todos concordam (com quem discorda não é preciso argumentar, basta bloquear). O consenso alimenta a certeza de cada um e a loucura das interpretações.
Como já dizia Nietzsche, comentando Hamlet no "Ecce Homo": "Não é a dúvida, mas a certeza que nos enlouquece".
Enfim, a paranoia é hoje o estilo mais popular de explicação do mundo. Isso porque o mundo é mais complexo do que nunca e topamos qualquer negócio para nos iludir quanto à nossa capacidade de explicá-lo. Certo? Sim, e a internet facilita essa ilusão.
Agora, talvez não seja só pela Guerra Fria que, nos anos 1950 e 60, tenha aumentado nosso gosto pela explicação paranoica do mundo.
Justamente nesses anos, no Ocidente, o amor dos pais pelos filhos se torna dramaticamente narcisista, ou seja, cada vez mais, os pais esperam que os filhos realizem seus sonhos frustrados. Cada vez mais, os pais amam os filhos como prolongamentos de suas próprias vidas –como segundas chances deles, dos pais, e não como seres separados.
Você acharia revoltante um pai ou uma mãe que tivessem um filho para encontrar na criança órgãos compatíveis com os seus, para transplante? Pois bem, o amor narcisista dos pais modernos é o equivalente psíquico dessa conduta.
O amor parental se tornou, ao mesmo tempo, excessivo e opressivo: você será o que eu preciso que você seja para realizar meus sonhos.
Logo no fim dos anos 1940, uma grande psicanalista, Melanie Klein, descobriu que, já no primeiro ano de vida, as crianças temiam ser odiadas pela pessoa que mais amavam. Ela chamou esse temor de "posição esquizoparanoide". Por que será?
Com os pais que temos e que somos, não é de estranhar que a paranoia se torne a maneira mais popular de tentar compreender o mundo.[Contardo Calligaris – Caderno “Ilustrada” Folha de São Paulo de 26 de janeiro de 2017]



P.S.:


A verdade nunca é toda. Sempre escapa um resto a demonstrar. Esse resto não pode ser encontrado, pois, sendo da ordem do inconsciente, se apresenta como um buraco ou furo que tudo suga para que nada possa aparecer. Na fala, a verdade reside no não dito pelo sujeito, e na escrita a verdade está nas entrelinhas do que se escreve. A angústia é resultado da impossibilidade de dizer toda a verdade que, por ser inconsciente, não pode ser dita por completo.

Quando alguém afirmar uma "verdade" sobre você, a maneira dolorosa, mas mais prática de reagir é proceder exatamente como Cristo o fez perante Pilatos: “Tu o Dizes!”



Guarabira, 26 de janeiro de 2017

Um comentário:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Boa tarde, Levi.

Num mundo onde há de fato muitos atentados e traições, nunca é descartável a hipótese conspiracionista. Até porque faltava tão pouco pro ministro fazer grandes revelações.

Entretanto, há quem transforme a hipótese ou a desconfiança numa absoluta certeza sem nem ao menos aguardar uma conclusão lógica a respeito do caso.

De qualquer modo, tudo isso contribui positivamente em favor do andamento da Lava Jato para que haja seriedade e celeridade nos processo de investigação dos corruptos quanto ao sucessor do Teori.

O que acha?

Bom fim de semana