A
Parábola do Filho Pródigo reinterpretada de forma magnífica
por André Gide, com certeza vai
levar o leitor ou leitora a uma reflexão
profundamente humana, e a uma percepção nítida dos
campos subjetivos, até certo ponto,
antagônicos entre o filho
e o pai provedor. Os polos antagônicos
dos afetos paterno e filial se debatem entre si,
quando o filho, em pleno deserto, se reporta ao amor
por um Pai (com “P” maiúsculo)
simbólico-imaginário: o Deus da religião, o
“Arquético Patriarcal” de
Jung, “O Grande Outro” de
Lacan e o “Superego” de Freud.
Poderíamos
até denominar essa parábola de “Linguagem do Pai
versus Linguagem do Filho”, pois trata de um
pai natural que em sua subjetividade sente-se
abandonado pelo filho. Entretanto, de forma
transcendente, se percebe o filho dilapidador de
bens físicos, em toda sua miserabilidade,
se reportando a um Pai que estava em toda
parte, e que mesmo na adversidade nunca o tinha deixado
de amar. O clímax surge com toda veemência, no
momento em que o pai biológico(escrito
sempre com “p” minúsculo) ao passar
em rosto a situação de decadência financeira
do filho lá fora, é surpreendido
com uma declaração corajosa e sincera, que se constitui
o pilar básico da filosofia judaico-cristã: “Foi
na aridez do deserto que mais amei a minha sede” —
soluçou o filho pródigo.
(Resenha
― Por Levi B. Santos)
(*)
André Paul Guilherme Gide (1869 ―
1951) recebeu o prêmio Nobel de literatura em 1909. Da Parábola
narrada nos evangelhos, o renomado escritor francês, pelo avesso do
que geralmente se prega, mostra um filho que em sua aventura
libertária e
ilusionista não
encontrou
o que desejava. No que
se refere ao mundo do TER,
volta vencido,
mas resignado
e revigorado pelo
grande aprendizado
que a dor mais
moral do que física duramente
o marcou.
Por André Gide (*)
─
Meu
filho, por que me abandonaste?
─
Ter-vos-ei
de fato abandonado? Pai, não estás em toda parte? Jamais vos deixei
de amar.
─
Não
porfiemos. Eu tinha uma casa que te abrigava. Ela foi erguida para
ti. Para que tua alma nela pudesse encontrar abrigo, um luxo digno de
si, conforto, emprego, muitas gerações trabalharam. Tu, o herdeiro,
o filho, por que te havias de evadir da Casa?
─
Porque
ela me encerrava. A Casa não sois vós, meu Pai.
─
Fui
eu quem a construiu, e para ti.
─
Ah!
Vós não haveis disto isto, mas meu irmão. Vós, sim, haveis
construído toda a terra, a Casa e tudo que não é a Casa. A Casa,
outros que não vós a construíram; em vosso nome, eu sei, mas
outros que não vós.
─
O
homem tem necessidade de um teto sob o qual repousar a cabeça.
Orgulhoso! Pensavas poder dormir ao relento?
─
Será
preciso tanto orgulho para isso? Outros mais pobres do que eu o
conseguiram.
─
Mas
isso são os pobres. Pobre tu não és. Ninguém pode abdicar de sua
riqueza. Eu te havia feito o mais rico de todos.
─
Meu
Pai, bem sabeis que ao partir levei comigo o quanto pude de riquezas.
Que me importam os bens que não se podem carregar.
─
Toda
essa fortuna que levaste foi dilapidada loucamente.
─
Mudei
vosso ouro em prazer, vossos preceitos em fantasia, minha castidade
em poesia e minha austeridade em desejos.
─
Seria
para isso que teus pais previdentes porfiaram em destilar em ti
virtudes?
─
Para
que eu ardesse de uma chama mais bela, um novo fervor me alumiava.
─
Pensa
nessa pura chama que Moisés viu sobre a sarça ardente; ela brilhava
mas sem consumir.
─
Eu
conheci o amor que nos consome.
─
O
amor que te quero ensinar reconforta. Ao cabo de algum tempo, que te
restou, ó filho pródigo?
─
A
lembrança desses prazeres.
─
E
a privação que vem depois?
─
Nessa
privação, eu me sentia perto de vós, meu Pai.
─
Era
preciso a miséria para te forçares a voltares a mim?
─
Não
sei; não sei. Foi na aridez do deserto que mais amei a minha sede.
─
Tua
miséria te fez sentir melhor o preço das riquezas.
─
Não,
isso não. Não me compreendeis meu pai? Meu coração vazio de tudo,
encheu-se de amor. Ao preço de todos os meus bens, adquiri o fervor.
─
Estavas
então feliz longe de mim?
─
Eu
não me sentia longe de vós.
─
Então
que te fez voltar? Fala.
─
Não
sei. A indolência, talvez.
─
A
indolência, meu filho! Então não foi o amor?
─
Pai,
já vos disse, jamais vos amei tanto quanto no deserto. Mas estava
cansado, cada manhã, de prover minha subsistência. Em casa, pelo
menos, se come bem.
─
Sim,
os servidores provêm todo o necessário. Com que, então, o que te
trouxe de volta foi a fome?
─
É
possível também que a enfermidade, a covardia…
Afinal, essa alimentação fortuita enfraquecia-me; pois me
alimentava de frutos silvestres, de gafanhotos e de mel. Cada vez
suportava menos o desconforto que, a princípio me atiçava o fervor.
De noite, quando tinha frio, pensava em minha cama arrumada em casa
de meu pai; quando estava em jejum, lembrava que, em
casa de meu pai a abundância dos pratos sempre excedia a minha fome.
Cedi: já não me sentia com coragem bastante para lutar mais tempo,
com a força suficiente, e no entanto…
―
Então
gostasse do gordo vitelo de ontem?
O
filho pródigo arroja-se soluçando de rosto contra a terra:
―
Meu
pai, meu pai! O gosto selvagem das bolotas de carvalho perdura ainda
assim em minha boca. Nada conseguiria apagar-lhe o sabor.
―
Pobre
filho! ― retoma o pai que o ergue pelo braço. Talvez te tenha
falado com dureza. Foi teu irmão que o quis; é ele que quem dita a
lei aqui. Foi ele que me intimou a dizer-te: “Fora de Casa não há
salvação para ti”. Mas escuta: fui eu que te formei; sei o que há
em ti. Sei o que te impulsionava para os caminhos; eu te esperava ao
fim. Se me chamasses… eu estaria lá.
―
Meu
pai! Teria podido encontrar-vos sem voltar?
―
Se
te sentiste fraco, fizeste bem em vir. Chega por hoje repousa; amanhã
poderás falar com teu irmão.
[Próximo
capítulo: “A Reprimenda do Irmão Mais Velho”]
Guarabira,
03 de fevereiro de 2017
8 comentários:
"Foi na aridez do deserto que mais amei a minha sede." Ou foi na aridez do deserto que ele mais amou a sua água preterida? No deserto ele encontrou poços rotos, água poluída que não puderam saciar sua real sede.
"Ter-vos-ei de fato abandonado? Pai, não estás em toda parte?"
" Meu pai! Teria podido encontrar-vos sem voltar?"
Há uma contradição, ou eu não captei o verdadeiro sentido?
Acredito que o pai de algum modo pode ter se sentido responsável pela má escolha do filho quando deixou a casa. A identificação do pai da metáfora contada por Jesus com o Criador que concedemos como perfeito dificulta muito a humanização do pai. Pois, na realidade, relacionamentos rotos drcirrem dos comportamentos de ambas as partes, ainda que um haja concorrido mais do que o outro. Na parábola, as coisas se encerram com o diálogo entre o pai e o primogênito, ficando ainda muitas lacunas para serem exploradas.
Não sei, mas a descrição altamente poética e significante de André Gide tocou-me profundamente. Penso que se soltarmos as amarras da resistência que detesta tudo que é releitura interpretativa e nos determos nas entrelinhas do que foi escrito, poderemos captar muito da excelência do texto. Não é à toa que na língua hebraica, uma mesma história pode ser vocalizada de diversas maneiras e trazer um NOVO SENTIDO a cada vez que vem à tona.
Assim procediam os antigos escribas e intérpretes do Antigo Testamento. Eles eram contra a fixidez das letras da escritura sagrada, entendendo que o texto bíblico deveria ter uma leitura aberta ao infinito. O modo de pensamento talmúdico rejeita toda radicalidade interpretativa.
Na língua hebraica, uma mesma raiz literária pode possuir, a cada transmissão, um novo sentido, e isto se chama ― “dar alma às letras. Quem tem o sangue poético nas veias deve saber mais ou menos, o que estou tentando esclarecer. (rsrs)
Sobre a aparente contradição que a Guiomar apontou no diálogo replicado em seu comentário:
O que penso é que a confrade talvez não tenha compreendido que o sgnificante "Pai" (Com "P" maiúsculo) não é o mesmo que "pai" (com "p" minúsculo), como elucidei no primeiro parágrafo do prólogo à Parábola do Filho Pródigo de André Gide.
“Acredito que o pai de algum modo pode ter se sentido responsável pela má escolha do filho quando deixou a casa. A identificação do pai da metáfora contada por Jesus com o
Criador que concedemos como perfeito dificulta muito a humanização do pai.” ( Rodrigo)
Foi partindo dessa premissa, Rodrigo, que André Gide elaborou sua versão da parábola. É na descrição do imaginário encontro do pai e do filho após o festim, que ambos se abrem para uma conversa desarmada e carregada dos mais variados sentimentos humanos. O filho diz uma grande verdade: a de que o “PAI” transcendental não o tinha abandonado, mesmo na adversidade (é aí que entra toda a essência do genuíno cristianismo). Na parábola há várias intercalações entre o pensamento terreno do pai biológico e a figura do PAI simbólico-compreensivo percebido pelo filho, em seu sofrimento existencial, bem presente nessa frase:
”Nessa privação, eu me sentia perto de vós, meu Pai.”
Realmente ele escreveu uma brilhante obra.
O filho que sai, acaba por se tornar mais próximo do pai do que o filho que fica.
Mas haverá um diálogo extremamente interessante, Eduardo. É que no próximo capítulo da Parábola de André Gide, o filho que ficou(o mais velho, o ortodoxo) vai botar as unhas de fora. Olha o que ele falou para o irmão mais novo:
"Dentre os servidores do meu Pai sou seu único intérprete, e quem quiser compreendê-Lo deve escutar a mim!"
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