É
o Desejo utópico de alcançar a completude que leva o sujeito
a aventurar-se para experenciar novos mundos, novos édens e
desertos, lá fora. Como nada de fora jamais o complementa e
satisfaz, a esse anseio não correspondido, se contrapõe a
necessidade imperiosa de retornar ou voltar ao estado
vivencial primitivo. Aquilo que Nietzsche exprimia como “O eterno
retorno”, na verdade, era uma demonstração de que o tempo tanto
era infinito para trás (evocando o passado) quanto para frente
(idealizando um porvir). A esse fenômeno, a psicanálise preferiu
conceituar de “determinismo psíquico” —
uma espécie de resposta instintiva inerente à nossa natureza
ambígua, por excelência. Na verdade, o que a parábola quer mostrar
é o sujeito cindido entre “Édipo (um inconsciente que, mesmo à
sua revelia, o determina) e Hamlet (uma consciência culpada,
bloqueadora de sua liberdade)”.
André
Gide, sobre o DESEJO que faz o sujeito sair do seu ninho e sobre a
NECESSIDADE que o faz voltar às suas origens ou raízes, realiza uma
dialética surpreendentemente emblemática para o nosso tempo. Os
“paradoxos” que as entrelinhas deixam exalar, revelam, acima de
tudo, a história dúbia ou ambivalente dos nossos anseios no meio da
família e da sociedade da qual fazemos parte.
Na
esplêndida narrativa do autor, o Irmão mais velho da Parábola
do Filho Pródigo empreende um envolvente diálogo de fundo
psicoteológico com seu irmão mais novo, ocorrido no segundo dia
após o Festim.
Como
na primeira parte da parábola, André Gide faz menção ao significante
metafísico “Pai” (com “P” maiúsculo) e o provedor biológico
“pai” (com “p” minúsculo).
Penso
que vale a pena conferir esse metafórico e profundo diálogo. A
leitura reflexiva e desarmada, com certeza, levará o(a) leitor(a) a
perceber os encontros e desencontros na dança imaginária dos afetos
opostos que permeiam a subjetividade de cada um de nós.
(Resenha
― Por Levi B. Santos)
O
filho pródigo encarando seu irmão com orgulho, fala:
— Meu
irmão mais velho, já nem nos parecemos mais
O
irmão mais velho:
— A
culpa é tua.
— Minha,
por quê?
— Porque
eu permaneci na ordem; tudo que nos distingue é fruto ou semente do
orgulho.
— Só
posso ter diferente os meus defeitos?
— Não
tomes por qualidade senão o que te atém à ordem, e submete tudo o
mais.
— Essa
mutilação é que eu temia. Tudo isso que queres suprimir vem
igualmente do Pai.
— Espera
lá, não disse suprimir, mas submeter.
— Eu
te compreendo bem. Foi exatamente assim que acabei subjugando as
minhas virtudes.
— E
é por isso que volto a encontrá-las em ti. Mas é preciso que as
amplies. Compreende-me bem: não se trata de diminuição, mas de uma
exaltação de teu ser o que proponho, na qual os elementos mais
diversos e insubordinados de tua carne e de teu espírito devam
sinfonicamente se integrar, na qual o pior de ti deva alimentar o
melhor, e em que o melhor deva submeter-se a …
— Era
uma exaltação também que eu procurava, que eu encontrei lá no
deserto — e talvez não muito diversa da que agora me propões.
— Na
verdade, o que pretendo é impô-la.
— Nosso
pai não falou com tal dureza.
— Bem
sei o que te disse o Pai. É vago. Ele já não se explica
claramente; de modo que é possível fazê-lo dizer o que deseja. Mas
eu conheço bem seu pensamento. Dentre os servidores sou seu único
intérprete e quem quiser compreender o Pai deve escutar a mim.
— Eu
o ouvia tão bem sem tua ajuda.
— É
o que pensas; compreendia mal. Não há várias maneiras de se
compreender o Pai; não há várias maneiras de ouvi-lo. Não há
várias formas de amá-lo; a fim de estarmos unidos em seu amor.
— Em
sua Casa.
— Este
amor conduz a ela; aliás bem viste isso pois estás de retorno.
Dize-me, agora: que te levou a partir?
— Sentia
demais que a Casa não abraçava o universo inteiro. Eu próprio não
me continha no ser que queríeis que fosse. Apesar de mim mesmo,
imaginava outras culturas, outras terras e caminhos a percorrer para
chegar a elas — caminhos não traçados; imaginava em mim o novo
ser que sentia lançar-me em direção a eles. Por isso me evadi.
— Pensa
no que teria acontecido se eu, como tu, abandonasse a Casa do Pai. Os
servidores e os bandidos iriam pilhar todos os nossos bens.
— Pouco
importa então, pois vislumbrava outros bens…
— Quanto
exagerava o teu orgulho. Irmão, a indisciplina passou. Se ainda não
sabes, logo conhecerás o caos de que o homem saiu. Ou antes: mal
saiu; com sua carga natural, ele volta a tombar nele se o Espírito
não mantiver erguido. Não aprendas às tuas custas: os elementos
bem ordenados que te compõem esperam apenas uma aquiescência, uma
fraqueza qualquer de tua parte para retornarem à anarquia… Mas o
que não saberás nunca será o tempo que o homem levou para chegar
ao Homem. Agora que o modelo está concluído, mantenhamo-nos fiéis
a ele. “Guarda firmemente o que possuis”, diz o espírito ao anjo
da Igreja, e acrescenta “ a fim de que ninguém usurpe a tua
coroa”. Tua coroa o usurpador a espreita; ele está em toda parte
ronda ao teu redor, em ti. Guarda firmemente, meu irmão! Guarda
firmemente.
— Há
muito tempo que a larguei de mão, já não posso agarrar-me aos
bens.
— Podes,
sim, eu te ajudarei. Cuidei de teus bens a tua ausência.
— E
além do mais, essa palavra do Espírito, eu a conheço; não a
citaste por inteiro.
— Na
verdade ela continua assim: “O que vencer, farei dele uma coluna no
templo de meu Deus, e dali não sairá”
— “E
dali não sairá.” É isso precisamente que me assusta.
— Mas
se é para tua felicidade.
— Oh!,
compreendo bem. Mas nesse templo eu já estava…
― Fizeste
mal em sair, já que quiseste regressar.
― Bem
sei, bem sei. Eis-me de volta, admito.
― Que
bens podereis buscar lá fora que não hajas aqui em abundância? Ou
melhor: somente aqui encontrarás teus bens.
― Já
sei que guardaste minhas posses.
— A
parte de teus bens que não conseguiste dilapidar. Ou seja, a parte
que nos é comum: os bens de raiz.
— Não
possuo então nada de exclusivamente meu?
― Possuis:
aquela parte especial de bens que o Pai consinta ainda em
conceder-te.
― Isto
é tudo o que eu quero; aceito não querer mais do que isso.
― Orgulhoso!
― Não serás consultado a propósito. Essa parte entre nós é
muita incerta: aconselho-te antes a que renuncies a ela. Esta parte
de bens pessoais já te levou à perdição; seriam outros bens que
dilapidarias em seguida.
― Os
outros, eu não podia levar.
― Por
isso irás encontrá-lo intatos. Mas chega por hoje. Entra no repouso
da Casa.
― Vem
a propósito, pois me sinto fatigado.
― Bendita
seja a tua fadiga, então! Agora, dorme. Amanhã a mãe te falará.
[André
Gide]
[Próximo
Capítulo — Resenha e um pequeno trecho de “A Mãe” — 3ª Parte de “A Volta do Filho
Pródigo”]
Guarabira,
11 de fevereiro de 2017
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