11 fevereiro 2017

"A Reprimenda do Irmão Mais Velho” ― “A Volta do Filho Pródigo” (2ª Parte)





É o Desejo utópico de alcançar a completude que leva o sujeito a aventurar-se para experenciar novos mundos, novos édens e desertos, lá fora. Como nada de fora jamais o complementa e satisfaz, a esse anseio não correspondido, se contrapõe a necessidade imperiosa de retornar ou voltar ao estado vivencial primitivo. Aquilo que Nietzsche exprimia como “O eterno retorno”, na verdade, era uma demonstração de que o tempo tanto era infinito para trás (evocando o passado) quanto para frente (idealizando um porvir). A esse fenômeno, a psicanálise preferiu conceituar de “determinismo psíquico” uma espécie de resposta instintiva inerente à nossa natureza ambígua, por excelência. Na verdade, o que a parábola quer mostrar é o sujeito cindido entre “Édipo (um inconsciente que, mesmo à sua revelia, o determina) e Hamlet (uma consciência culpada, bloqueadora de sua liberdade)”.

André Gide, sobre o DESEJO que faz o sujeito sair do seu ninho e sobre a NECESSIDADE que o faz voltar às suas origens ou raízes, realiza uma dialética surpreendentemente emblemática para o nosso tempo. Os “paradoxos” que as entrelinhas deixam exalar, revelam, acima de tudo, a história dúbia ou ambivalente dos nossos anseios no meio da família e da sociedade da qual fazemos parte.

Na esplêndida narrativa do autor, o Irmão mais velho da Parábola do Filho Pródigo empreende um envolvente diálogo de fundo psicoteológico com seu irmão mais novo, ocorrido no segundo dia após o Festim.

Como na primeira parte da parábola, André Gide faz menção ao significante metafísico “Pai” (com “P” maiúsculo) e o provedor biológico “pai” (com “p” minúsculo).
Penso que vale a pena conferir esse metafórico e profundo diálogo. A leitura reflexiva e desarmada, com certeza, levará o(a) leitor(a) a perceber os encontros e desencontros na dança imaginária dos afetos opostos que permeiam a subjetividade de cada um de nós.

(Resenha ― Por Levi B. Santos)



O filho pródigo encarando seu irmão com orgulho, fala:

Meu irmão mais velho, já nem nos parecemos mais
O irmão mais velho:
A culpa é tua.
Minha, por quê?
Porque eu permaneci na ordem; tudo que nos distingue é fruto ou semente do orgulho.
Só posso ter diferente os meus defeitos?
Não tomes por qualidade senão o que te atém à ordem, e submete tudo o mais.
Essa mutilação é que eu temia. Tudo isso que queres suprimir vem igualmente do Pai.
Espera lá, não disse suprimir, mas submeter.
Eu te compreendo bem. Foi exatamente assim que acabei subjugando as minhas virtudes.
E é por isso que volto a encontrá-las em ti. Mas é preciso que as amplies. Compreende-me bem: não se trata de diminuição, mas de uma exaltação de teu ser o que proponho, na qual os elementos mais diversos e insubordinados de tua carne e de teu espírito devam sinfonicamente se integrar, na qual o pior de ti deva alimentar o melhor, e em que o melhor deva submeter-se a …
Era uma exaltação também que eu procurava, que eu encontrei lá no deserto — e talvez não muito diversa da que agora me propões.
Na verdade, o que pretendo é impô-la.
Nosso pai não falou com tal dureza.
Bem sei o que te disse o Pai. É vago. Ele já não se explica claramente; de modo que é possível fazê-lo dizer o que deseja. Mas eu conheço bem seu pensamento. Dentre os servidores sou seu único intérprete e quem quiser compreender o Pai deve escutar a mim.
Eu o ouvia tão bem sem tua ajuda.
É o que pensas; compreendia mal. Não há várias maneiras de se compreender o Pai; não há várias maneiras de ouvi-lo. Não há várias formas de amá-lo; a fim de estarmos unidos em seu amor.
Em sua Casa.
Este amor conduz a ela; aliás bem viste isso pois estás de retorno. Dize-me, agora: que te levou a partir?
Sentia demais que a Casa não abraçava o universo inteiro. Eu próprio não me continha no ser que queríeis que fosse. Apesar de mim mesmo, imaginava outras culturas, outras terras e caminhos a percorrer para chegar a elas — caminhos não traçados; imaginava em mim o novo ser que sentia lançar-me em direção a eles. Por isso me evadi.
Pensa no que teria acontecido se eu, como tu, abandonasse a Casa do Pai. Os servidores e os bandidos iriam pilhar todos os nossos bens.
Pouco importa então, pois vislumbrava outros bens…
Quanto exagerava o teu orgulho. Irmão, a indisciplina passou. Se ainda não sabes, logo conhecerás o caos de que o homem saiu. Ou antes: mal saiu; com sua carga natural, ele volta a tombar nele se o Espírito não mantiver erguido. Não aprendas às tuas custas: os elementos bem ordenados que te compõem esperam apenas uma aquiescência, uma fraqueza qualquer de tua parte para retornarem à anarquia… Mas o que não saberás nunca será o tempo que o homem levou para chegar ao Homem. Agora que o modelo está concluído, mantenhamo-nos fiéis a ele. “Guarda firmemente o que possuis”, diz o espírito ao anjo da Igreja, e acrescenta “ a fim de que ninguém usurpe a tua coroa”. Tua coroa o usurpador a espreita; ele está em toda parte ronda ao teu redor, em ti. Guarda firmemente, meu irmão! Guarda firmemente.
Há muito tempo que a larguei de mão, já não posso agarrar-me aos bens.
Podes, sim, eu te ajudarei. Cuidei de teus bens a tua ausência.
E além do mais, essa palavra do Espírito, eu a conheço; não a citaste por inteiro.
Na verdade ela continua assim: “O que vencer, farei dele uma coluna no templo de meu Deus, e dali não sairá”
— “E dali não sairá.” É isso precisamente que me assusta.
Mas se é para tua felicidade.
Oh!, compreendo bem. Mas nesse templo eu já estava…
Fizeste mal em sair, já que quiseste regressar.
Bem sei, bem sei. Eis-me de volta, admito.
Que bens podereis buscar lá fora que não hajas aqui em abundância? Ou melhor: somente aqui encontrarás teus bens.
Já sei que guardaste minhas posses.
A parte de teus bens que não conseguiste dilapidar. Ou seja, a parte que nos é comum: os bens de raiz.
Não possuo então nada de exclusivamente meu?
Possuis: aquela parte especial de bens que o Pai consinta ainda em conceder-te.
Isto é tudo o que eu quero; aceito não querer mais do que isso.
Orgulhoso! ― Não serás consultado a propósito. Essa parte entre nós é muita incerta: aconselho-te antes a que renuncies a ela. Esta parte de bens pessoais já te levou à perdição; seriam outros bens que dilapidarias em seguida.
Os outros, eu não podia levar.
Por isso irás encontrá-lo intatos. Mas chega por hoje. Entra no repouso da Casa.
Vem a propósito, pois me sinto fatigado.
Bendita seja a tua fadiga, então! Agora, dorme. Amanhã a mãe te falará.
[André Gide]


[Próximo Capítulo — Resenha e um pequeno trecho de “A Mãe” — 3ª Parte de “A Volta do Filho Pródigo”]


Guarabira, 11 de fevereiro de 2017

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