Na
atualidade não há como negar a existência de um forte
entrelaçamento entre a Literatura e a Psicanálise. Uma instância
não vive sem a outra, pois a matéria prima que manejam é a mesma:
a letra, que vem da fala ou do dito, dos lapsos, das crônicas, dos
contos, dos sonhos, da poesia, dos desejos não realizados, enfim, da
imaginação. Não foi à toa que a psicologia foi buscar na
literatura os principais elementos metafóricos para formulação da
Teoria do Inconsciente. As grandes obras de Freud, sem
nenhuma dúvida, foram frutos da leitura reflexiva de
um épico clássico ― “Édipo
Rei” ― de Sófocles, especialmente
destinado ao teatro.
A
psicanálise parte da fala e da ausculta do sujeito, no intento de
que afetos escondidos a sete chaves possam vir à tona. De maneira
análoga, a literatura ou o ato de escrever, por sua vez, permite a
vazão dos conteúdos latentes do inconsciente. Tudo isso demonstra
com clareza que essas duas misteriosas instâncias são, na verdade,
irmãs siamesas.
Comentando
o conto “Mineirinho”
―
“Clarice na
Cabeceira” (Editora Rocco)
―
escreveu
Caetano
Veloso:
“Clarice
Lispector teve um enorme impacto sobre mim”.
Em
1959, quando ainda era um imberbe jovem de Santo Amaro na Bahia,
ficara profundamente impressionado após
ler o conto de
Clarice,
“A
Imitação
da Rosa”.
Em
1968, um dos anos mais turbulentos da ditadura militar, Caetano
e outros artistas exigiam do governador do Rio uma posição sobre o
estudante Edson Luís assassinado de maneira covarde no
restaurante universitário (Calabouço), ocasião em que,
sorrateiramente, foi abordado por uma mulher: “Sou
eu, Caetano!” ― anunciou, Clarice Lispector,
diante de um ainda tímido poeta, cantor e compositor da MPB.
O
certo é que por essa época, as obras de cunho profundamente
psicanalítico de Clarice Lispector
inundaram as mentes dos artistas brasileiros, e serviram de fonte de
inspiração para muitos, como foi o caso de Marília Pêra.
Segundo
a psicologia de Carl Gustav Jung, “a Persona
(máscara em latim) opera como mediadora entre o ego e o mundo
externo; é um meio termo entre o indivíduo e aquilo que ele deveria
ser”. No seu ensaio “Persona”
Clarice, se reportando ao uso de nossas primeiras
máscaras, em uma perspicaz auto-análise, assim escreve:
“...os
adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que vão vivendo
fabricam a própria máscara”.
[...]Mesmo sem ser
atriz nem ter pertencido ao teatro grego ―
uso uma máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se
escolhe para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é
que se faça mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade.
Mas é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se
sozinho em súbita máscara involuntária e terrível.”
Bem
lá no final de seu ensaio psicanalítico a autora conclui de forma
magistral:
“Se
bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar. É que depois
de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente ―
ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma
palavra ouvida ―
de repente a máscara de guerra da vida cresta-se toda no rosto como
lama seca, e os pedaços irregulares caem com um ruído oco no chão.
Eis o rosto, agora nu, maduro, sensível quando não era para ser. E
ele chora em silêncio para não morrer”.
O
sujeito escolhe a sua máscara (ou sua máscara vem mesmo sem que ele
a tenha escolhido?). É com ela que o indivíduo se apresenta no meio
social; ela representa o que a pessoa é, não para si, mas para os
outros. A coisa funciona de forma tão imperceptível que, às vezes,
o sujeito chega a se confundir com o personagem que está representando.
Marília
Pêra, a premiadíssima estrela do Teatro
Brasileiro, fazendo a apresentação da antológica crônica
“Persona” de Clarice Lispector, num texto
profundamente analítico diz, bem ao estilo Junguiano:
“É
muito difícil ser o que se é. O que se é? Onde começa o fio dessa
meada? Esse é um mistério da vida.
Somos
o que papai e mamãe fizeram de nós. Ou vovô e vovó, titia, babá,
professor e irmãos.
Depois
livros, filmes, peças, melodias, novelas, hoje internet, nos moldam.
Cores
que outros artistas pintaram em nós, eis o que se é.
Nunca
outra vez nossa tela em branco?
Atores
também são seres cheios de emoções e carências banais.
Por
isso talvez fosse aconselhável que atores usassem máscaras, como no
teatro antigo.
Porque,
sem as máscaras, há o risco de mostrarmos ao público sentimentos
que talvez não pertençam aos personagens, mas ao nosso cotidiano
mundo, sem transcendência universal.”
A
antológica letra de SAMPA
mostra, mais do que tudo, a influência de Clarice
Lispector nas
composições de
Caetano
Veloso:
“Quando
eu encarei frente a frente não vi o meu rosto”
(Caetano).
Como era
de se esperar,
no espelho da fria e
cinzenta São Paulo, Caetano
jamais
poderia
reconhecer
o seu rosto primitivamente
refletido no espelho
de
sua “terra-mãe”.
Quem
sabe se
restos
de um
passado
emitido
pelos arquivos psíquicos secretos, do tempo em que o
cantor e compositor
baiano
lia
e refletia sobre os textos de Clarice,
não
estavam ali
emitindo
ressonâncias
ante
a nova
e
feia
megalópole paulista? “É
que a mente apavora o que não é mesmo velho” ―
diria Caetano,
de
forma metafórica e auto-biográfica, em sua imortal canção, antes
de se tornar “Mutante”.
A
letra de SAMPA, explicita
que
mais tarde, sem perder suas identidades, os novos baianos, num
processo de lenta
adaptação, passeariam no cruzamento da Ypiranga com a avenida São
João, curtindo numa boa sua agradável
garoa. No
Ensaio “Os
Espelhos”,
Clarice,
disserta
sobre o espelhamento
de um itinerante
que
mesmo diante
de uma nova realidade, deixa
transparecer
“vestígios de sua própria imagem narcísica”.
“O
que é um espelho? É o único material inventado que é natural.
Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si
mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua
profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço
transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem ―
não percebeu o seu mistério”.
“É
que Narciso acha feio o que não é espelho”
― reagiria Caetano. “O
Mito
de Narciso” remete essa expressão de Caetano
em Sampa à sua mãe Liríope. “Por
desconhecer a própria individualidade, Liríope
não pode refletir seu filho Narciso, e este
será carente em relação a seu próprio reflexo” (O
Mito de Narciso ―
Raíssa Cavalcanti ―
Babel
da Psicanálise)
É
num pequeno trecho do profundo ensaio “Os Espelhos” que
Clarice, numa veia analítica incomum, parece denunciar
o “por quê” da estranheza de Caetano frente
a fria selva de pedra paulista, tão diferente de sua “cidade-mãe”
― Santo Amaro da
Purificação ―
Bahia:
“Vi
o espelho propriamente dito. E descobri os enormes espaços gelados
que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de
gelo”.
“Não
existe a palavra espelho (a
velha Santo Amaro de Caetano – grifo meu) ―
só
espelhos”.
Por
fim, em SAMPA, Caetano chega a percepção de que a “feia
São Paulo” é mais um espelho entre outros, “com
suas oficinas de florestas e seus deuses da chuva”.
Por
Levi B. Santos
Guarabira,
28 de maio de 2017