18 dezembro 2017

O Natal e os Anjos do "Senhor Mercado"






Às vésperas do Natal de 2010 escrevi, nesse meu recanto do Google, o ensaio “NATAL: É Tempo de Rever Nossos Anjos” . No prólogo do artigo postado naquela época, dizia eu: “A história dos anjos se confunde com a história do homem, estando, relacionada ao nosso lado profano e ao nosso lado divino. A presença invisível dos anjos se confunde com o universo de nossos sentimentos, ambições, virtudes e falhas. Uma história repleta de contradições.”

Em sentido metafórico, a mente é a morada dos anjos. No mês de dezembro suas vozes se tornam mais audíveis, mais estridentes, atiçando de forma violenta os desejos humanos narcisistas. Na atual sociedade de consumo, as vozes angelicais do Natal têm ressoado fortemente no coração de muitos. O Rei e poeta bíblico Davi em seu mais famoso poema(Salmo de n° 23), cantava: “O Senhor é meu Pastor, Nada Me Faltará”. O desenvolvimento tecnológico criador de necessidades e impulsionador de desejos, na era moderna, para elevar as vozes de seus anjos, fez do título da poesia de Davi um bordão para servir de marketing a um indomável Senhor: O Mercado. Segundo os evangelhos, Cristo, uma vez, tentou expulsar os anjos desse “Senhor Mercado” do interior do Templo de Jerusalém, no episódio que ficou conhecido como “A Expulsão dos Vendilhões do Templo”. Eles faziam comércio com o sagrado, ocasião em que o Messias prometido sapecou a célebre frase “minha casa é casa de oração, e não covil de ladrões!”.

No Natal, os anjos do “Senhor Mercado” parecem redobrar os decibéis de suas vozes. Os que resistem ir às compras, usando seu décimo terceiro salário para pagar suas dívidas, são poucos. “Corra, você pode chegar atrasado aos nossos standards!” ecoa em uníssono o coral de anjos do Senhor Mercado, ao som de emocionantes cantos natalinos. É impossível o consumidor resistir ao apelo dos anjos que se encontram em torno do messias abarrotado de presentes em sua manjedoura. No imaginário coletivo da civilização ocidental, os mensageiros angelicais, nas festas do período natalino, portam uma rica faixa com dizeres em letras garrafais imensamente coloridas e flamejantes, condicionadores de êxtases consumistas irresistíveis:
A via para a felicidade ou o máximo de prazer passa pela satisfação irrestrita de todos os desejos. Não temam começar o próximo ano endividado, o que importa é seu prazer, aqui e agora. O Nosso Deus Mercado promete que todos os gastos que ultrapassar o salário de seus clientes serão beneficamente negociados no futuro”.


Na “Tentação do Deserto” metáfora dos “Desejos humanos”, relativa ao TER” , até mesmo Cristo se viu diante de um oferecimento, cuja essência tem tudo a ver com a lógica mercantil do mundo de hoje: “Tudo Isso Te Darei se Prostrado me Adorares”. É na época natalina que os anjos do Senhor Mercado mais martelam em nossos ouvidos uma musicazinha mundialmente conhecida, símbolo maior do $eu “céu paradi$íaco”, que assim termina: “...muito dinheiro no bolso, saúde pra “dar” e VENDER”. Enquanto Javeh, no Velho Testamento, conjuga o verbo SER, ao afirmar “Eu Sou o Que Sou!”, o deus do Mercado global troca o SER pela forma verbal TER, o mais almejado verbo da supermoderna sociedade de consumo. Para ele o consumir é bem mais interessante: alivia a ansiedade porque o que se tem não pode ser tirado. Pode, sim, ser trocado por outro bem que mais se identifique com a moda da época. Talvez por isso, o Deus Mercado, através de seus anjos, não cansam de anunciar em bom som: “Eu Sou o Que Tenho e o Que Consumo”. Enquanto a mensagem do Messias visa não ceder às tentações do Desejo no Modo TER, Papai Noel, o anjo maior do “Deus Mercado” insufla a capitulação. Os anjos comerciais estimulam o sujeito a não resistir a esse tipo de tentação, induzido-o dessa forma, a uma relação de completa inércia e não de vida com os objetos que obsessivamente adquirem. Se as pessoas não podem conter o imbatível Deus Mercado, é porque se encontram Nele contidos ou entranhados, desde tempos imemoriais.

Não nos causa surpresa, o Evangelho da Prosperidade Econômica ser, hoje, o que mais cresce no mundo ocidental, Seus anjos estão anunciando suas “Boa$ Nova$” por toda a parte, mais especialmente no âmbito da Televisão (os Tele-Anjos). A adoração que os humanos têm por eles é irresistivelmente tentadora. Esses hábeis anjos conjugam o verbo TER em todas as pessoas. É Importante salientar, aqui, que a locução “eu tenho”, no hebraico de forma indireta, significa o maravilhoso sentimento de posse: “é para mim”. “Quem me livrará do corpo dessa morte?!” escreveu o apóstolo Paulo aos Romanos. Parafraseando o apóstolo fundador do cristianismo, eu diria: quem resistirá ao divinal/profano chamamento do Deus Mercado, autor de anúncios como este?:

Esse mês todas as famílias serão ricamente compensadas. Todos poderão ter acesso a generosa oferta de oportunidades de endividamento. Não importam a desigualdade social, a corrupção endêmica e a miséria que assolam o país, o que importa é que Deus se fez Mercado e habitou entre os seus para a glória de todos que possuem a sua poderosa moeda de troca”.

Robert Merton, sociólogo estadunidense, há meio século, já falava do “Efeito Mateus”, que Wolfgang Streeck redenonimou de “Princípio de Mateus”, e que o Deus Mercado tomou emprestado dos evangelhos, para fazer de seu: “Pois a qualquer que tiver, será dado, e terá com abundância. Ao que não tiver, até o que tem será tomado.(Mateus 25:29)
O homem moderno não pode conter o imbatível Deus Mercado, exatamente por estar Nele contido. É precisamente no mês de Dezembro que os anjos do Deus Mercado se soltam para sussurrar aos ouvidos de muitos:

Você quer Ter(se apossar) das Boa$ Nova$ de $alvação? Se responder, SIM, cuide de trocar seu carro, trocar seu smartphone ultrapassado por um mais moderno, não deixe de adquirir sapatos novos, calça e camisa de grife, seu vestido estiloso e brilhoso sempre a combinar com joias de última geração. Dirija-se aos templos modernos de consumo(shoppings), e procure se encantar e se embevecer com os sensacionais objetos irrecusáveis que estamos exibindo em nossas vitrines celestiais. Se, por outro lado, responder 'NÃO', será condenado ao ostracismo eterno”.

O Deus Mercado não quer que ninguém se perca: A rendição aos Desejos de Posse será a única opção para não se cair na “Perdição Eterna”.


Por Levi B. Santos
  Guarabira, 18 de dezembro de 2017


Site da Imagem 1: www.mundoemtranse.com,br

14 dezembro 2017

O Poeta e o “Desejo de Falar com Deus”




Nada melhor que a palavra poética para exprimir o vazio existencial do sujeito. A ânsia de retomar o desejo inefável das benesses sagradas de um pai simbólico, faz com que o individuo “tenha que” abdicar das vestimentas que recobrem sua nudez. É justamente a falta que provoca em nós o desejo. Uma vez, satisfeito o desejo, o vazio volta a nos encontrar em uma outra parte de nossa trágica vida.

...A arte é, em si, capaz de comover o humano, desde os primórdios da civilização” afirmou a psicanalista Marília Brandão Lemos, em um artigo publicado na conceituada Revista “Estudos de Psicanálise” (PEPSIC) de setembro de 2006, sob o título: “Poesia, Psicanálise e Ato Criativo” , citando, em seguida, a providencial frase do poeta Mário Quintana: “E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação.”

Toda criatura é atravessada por um Desejo de Ser (ou de Ter), desejo intermediado pela palavra. Parafraseando o prólogo do Evangelho de S. João, eu diria que, o desejo se fez gerado em nossa carne, antes mesmo de termos consciência: É sobre essedesejo criador”, que Marília Lemos, em seu artigo abaixo, faz a seguinte alusão:

O Poeta, é um artesão da palavra, que forja o verbo com martelo e bigorna. Forjar a coisicidade da mesma. Como disse Lacan: 'à dignidade do indizível', do objeto perdido, do pulsional em seu efeito sublimatório que se sustenta sobre o NADA.
Segundo o criador da psicanálise, o desejo expresso nas artes, na literatura (poesia) adviria de redutos do processo psíquico primário, e o artista teria acesso privilegiado aos elementos do Inconsciente, pelo seu talento natural”.

No imaginário do poeta/religioso, à linguagem universalizante do Superego (imago divina paterna) é representada por algo interno que não cessa de ordenar ou exigir(simbolizado no poema de Gil, pela expressão repetitiva “tenho que...”). O “tenho que calar a voz/ tenho que aceitar a dor” é a condição necessária para que o amargor existencial do sujeito seja amenizado.

Todo esse preâmbulo de divagações pelos meandros da arte poética, da psicanálise e da Religião tem um propósito salutar. Portanto, não me alongarei, partindo para o que realmente interessa:

Movido por um processo dialético/simbólico/existencial, Gilberto Gil, elaborou, em 1980, um poema metafórico, representação da ambivalência dos afetos humanos Se Eu Quiser Falar com Deus”.

Nas palavras da psicanalista, Marília Brandão Lemos: “… o artista para criar, cria do despoder, da fraqueza humana, da impotência, do desamparo humano e não da Providência Divina. Cria da finitude e não da Eternidade Divina”.

Na realidade, o poema de Gil revela, mais que tudo, o desejo do artista, em seu caos interno, por “...um espaço onde ainda seja possível se mexer, quiçá voar”.

Decidido pela estrada/Que ao findar vai dar em nada/Nada, nada, nada/ Do que eu pensava encontrar” O desfecho do poema evidencia elementos de fundo psicanalítico.

Como a linguagem do Inconsciente (Deus – Pai simbólico) corresponde ao avesso do discurso do sujeito, o desejo é, ao inverso, dom daquilo que não temos. É confusão da falta, do vazio; é o oco ou espaço vazio de um vaso, ou seja, é o Nada. Nas palavras do psicanalista francês, Philippe julien, “o Desejo está para além da linguagem, hiância sempre aberta, a um só tempo lugar de medo e de fascinação”.

O “Nada do que desejava encontrar” do final do poema de Gilberto Gil, é uma espécie de queixa, e em termos psicanalíticos corresponde ao que Philippe Julien, aqui, afirma:

O que ele busca no outro é o precipício de seu desejo, para que o abismo de sua própria ausência tenha mais atrativos para o outro que sua limitada presença”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de dezembro de 2017