14 dezembro 2017

O Poeta e o “Desejo de Falar com Deus”




Nada melhor que a palavra poética para exprimir o vazio existencial do sujeito. A ânsia de retomar o desejo inefável das benesses sagradas de um pai simbólico, faz com que o individuo “tenha que” abdicar das vestimentas que recobrem sua nudez. É justamente a falta que provoca em nós o desejo. Uma vez, satisfeito o desejo, o vazio volta a nos encontrar em uma outra parte de nossa trágica vida.

...A arte é, em si, capaz de comover o humano, desde os primórdios da civilização” afirmou a psicanalista Marília Brandão Lemos, em um artigo publicado na conceituada Revista “Estudos de Psicanálise” (PEPSIC) de setembro de 2006, sob o título: “Poesia, Psicanálise e Ato Criativo” , citando, em seguida, a providencial frase do poeta Mário Quintana: “E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação.”

Toda criatura é atravessada por um Desejo de Ser (ou de Ter), desejo intermediado pela palavra. Parafraseando o prólogo do Evangelho de S. João, eu diria que, o desejo se fez gerado em nossa carne, antes mesmo de termos consciência: É sobre essedesejo criador”, que Marília Lemos, em seu artigo abaixo, faz a seguinte alusão:

O Poeta, é um artesão da palavra, que forja o verbo com martelo e bigorna. Forjar a coisicidade da mesma. Como disse Lacan: 'à dignidade do indizível', do objeto perdido, do pulsional em seu efeito sublimatório que se sustenta sobre o NADA.
Segundo o criador da psicanálise, o desejo expresso nas artes, na literatura (poesia) adviria de redutos do processo psíquico primário, e o artista teria acesso privilegiado aos elementos do Inconsciente, pelo seu talento natural”.

No imaginário do poeta/religioso, à linguagem universalizante do Superego (imago divina paterna) é representada por algo interno que não cessa de ordenar ou exigir(simbolizado no poema de Gil, pela expressão repetitiva “tenho que...”). O “tenho que calar a voz/ tenho que aceitar a dor” é a condição necessária para que o amargor existencial do sujeito seja amenizado.

Todo esse preâmbulo de divagações pelos meandros da arte poética, da psicanálise e da Religião tem um propósito salutar. Portanto, não me alongarei, partindo para o que realmente interessa:

Movido por um processo dialético/simbólico/existencial, Gilberto Gil, elaborou, em 1980, um poema metafórico, representação da ambivalência dos afetos humanos Se Eu Quiser Falar com Deus”.

Nas palavras da psicanalista, Marília Brandão Lemos: “… o artista para criar, cria do despoder, da fraqueza humana, da impotência, do desamparo humano e não da Providência Divina. Cria da finitude e não da Eternidade Divina”.

Na realidade, o poema de Gil revela, mais que tudo, o desejo do artista, em seu caos interno, por “...um espaço onde ainda seja possível se mexer, quiçá voar”.

Decidido pela estrada/Que ao findar vai dar em nada/Nada, nada, nada/ Do que eu pensava encontrar” O desfecho do poema evidencia elementos de fundo psicanalítico.

Como a linguagem do Inconsciente (Deus – Pai simbólico) corresponde ao avesso do discurso do sujeito, o desejo é, ao inverso, dom daquilo que não temos. É confusão da falta, do vazio; é o oco ou espaço vazio de um vaso, ou seja, é o Nada. Nas palavras do psicanalista francês, Philippe julien, “o Desejo está para além da linguagem, hiância sempre aberta, a um só tempo lugar de medo e de fascinação”.

O “Nada do que desejava encontrar” do final do poema de Gilberto Gil, é uma espécie de queixa, e em termos psicanalíticos corresponde ao que Philippe Julien, aqui, afirma:

O que ele busca no outro é o precipício de seu desejo, para que o abismo de sua própria ausência tenha mais atrativos para o outro que sua limitada presença”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de dezembro de 2017

Um comentário:

Anônimo disse...

"Opá, um bom texto sobre a poética de Gil. Psicanálise de complexa prosa viu!!!! Mas talvez Jung dissesse que não se trata só do desejo freudiano. Gil é um cara religioso, devoto, venera santos e entidades afro, então, pensando nisso e nos ensinamentos de Jung, há na letra uma indissociável relação do homem-pecador-pedinte com a busca (religação) de um "senhor" do universo e "criador" de todas as coisas. Há na letra uma clara alusão ao abandono do homem, seu desespero humilhante que rasteja na busca da misericórdia e graça de seu deus, implorando salvação, perdão, de uma danação de que não se sabe, não se tem idéia, pois o caminho vai dar em "nada, nada, nada, nada, do que eu pensava encontrar". O poema de Gil é uma declaração de abandono e desespero humano, que busca no ascetismo um solução para a equação inexplicável e irresoluta da vida. Se tenho que ficar a sós e apagar a luz, e calar a voz, e encontrar a paz, e folgar os nós dos sapatos, da gravata e dos DESEJOS, e dos receios, perdendo a conta de mãos vazias com a alma e o corpo nus... Aceitar a dor e comer o pão que o diabo amassou, virar um cão, lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu SONHO, e me ver tristonho, me achando medonho, e ainda alegrar meu coração... Se eu quiser falar com Deus tenho de me aventurar, e subir aos CÉUS, sem cordas pra segurar, dizer ADEUS, dar as costas, caminhar, decidido pela estrada, que ao findar vai dar em nada, nada, nada, nada, nada, nada, do que eu pensava encontrar... A letra é fantástica, mesmo que depois de despida pela "lógica" freudiana ou Junguiana!!!

[Comentário de George Bronzeado - enviado por e-mail]