O
laboratório era sua segunda casa. A bem dizer, quase todos habitantes da
pequenina cidade já tinham passado por suas mãos. Respeitavam-no, pois era a quem recorriam; a quem entregavam seu sangue, seus excrementos sólidos e
líquidos a ser examinados minuciosamente.
Na
tarde cinzenta e fria de seu sepultamento ninguém ousou dizer uma palavra
sequer. O sacerdote esperava que alguém se pronunciasse, antes do féretro descer
à cova, mas nenhum tomou essa iniciativa. Aliás, nada podiam fazer, pois estavam
perplexos, como que atacados por uma sisudez mórbida, como se uma aura paralisante
tivesse caído abruptamente sobre seus nervos e músculos. Uma mistura de
perplexidade e tristeza transparecia em todos os olhares.
O
silêncio que reinou minutos antes do corpo do cientista descer à sepultura,
talvez fosse resultado do clima de extrema religiosidade da população a colidir
com a personalidade paradoxal do douto senhor. Talvez, os seus defeitos estivessem
a anular as suas virtudes, impedindo os discursos fúnebres, que geralmente se
nutrem do lado “bom” do sujeito. O certo é que um clima de temor caiu sobre os
que estavam ao pé de sua cova. Uns temiam que surgisse algum antipático
a falar, ali, sobre as fraquezas e as excentricidades do defunto; outros
receavam que as palavras de elogios ao morto, pudessem desaguar em um sonoro “não é
verdade!”.
Não
é que deu para ouvir o que uma das garotas, ali presente, balbuciou ao ouvido da outra?! É que o
falecido tinha encontrado tantas variedades de vermes nas fezes dela que, ao
apresentar-lhe o resultado, chamou-a de “verminosa” ― termo compreendido pela examinada como um xingamento.
Enfim,
o doutor era o paradoxo em pessoa ― o que não é novidade nenhuma, pois é exatamente
a contradição que caracteriza o humano. Por vezes, pessoas que compareciam a
seu laboratório para lhe fazer perguntas sobre resultados de exames, recebiam
como resposta, o silêncio, ou, quando muito, o lembrete: “Não abra o envelope, seu médico
é quem vai informar o que você tem.”
Denotando todo seu modo ambivalente de ser, às vezes, quando inquirido insistentemente
sobre o que tinha dado nos exames, disparava: “Huuuuumm! Parece uma infecção aguda!”.
Não
encontrando fórmulas para dizer a verdade, em toda sua plenitude, naquele cair de tarde, a maneira melhor, mais simples e sincera
que encontraram foi não emitir opiniões sobre o incrível homem de branco. Na falta de expressões que
abarcassem toda a verdade sobre o falecido, resolveram aproveitar o silêncio ou
o vazio de palavras do momento para recordar fatos pitorescos e engraçados da
vida do doutor ― homem que conhecia muito bem o que estava oculto no sangue e
nos excrementos de todos que o acompanhavam em sua derradeira viagem.
As
últimas palavras do sacerdote confirmaram o que preconizam os filósofos e
estudiosos da alma humana: “Não existe olhar neutro ― ele está sempre
carregado de subjetividades nas relações que construímos uns com os outros”.
O
enunciado bíblico “... e as suas obras o sigam” ― recitado
pelo pároco no final do ritual fúnebre ―, mudara instantaneamente o ar dos velhos
amigos de infância do analista a caminho de sua última morada. A estranheza
denunciada pelo olhar deles, talvez se devesse a palavra “obra”. Este termo parece ter sido a senha para que viessem à tona
fatos longínquos de suas vidas. É de se pensar que chegaram instantaneamente às suas mentes,
lembranças reprimidas do tempo em que depositavam as latinhas com os dejetos dos filhos e netos sobre o balcão de madeira do velho laboratório a serem analisados.
“Eu vim trazer a obra de meu menino para o senhor examinar” ― era assim que os ex-colegas de infância, com o olhar cabisbaixo e carregado de vergonha, se dirigiam a esse homem sisudo de avental branco, que passava a maior parte de seu tempo cercado de tubos de ensaios, tendo bem ao centro de uma grande mesa de madeira de lei o inseparável e velho microscópio cheirando a clorofórmio.
“Eu vim trazer a obra de meu menino para o senhor examinar” ― era assim que os ex-colegas de infância, com o olhar cabisbaixo e carregado de vergonha, se dirigiam a esse homem sisudo de avental branco, que passava a maior parte de seu tempo cercado de tubos de ensaios, tendo bem ao centro de uma grande mesa de madeira de lei o inseparável e velho microscópio cheirando a clorofórmio.
Depois
do enterro de um ente querido, comumente, há sempre pessoas que têm o dom de
contagiar o ambiente com suas traquinices, como que para quebrar a monotonia de
fundo melancólico instaurada em ocasiões como essa. O certo é que ao descerem a ladeira do
cemitério, rumo às suas casas, riram muito a respeito do paralelismo lingüístico
entre “fezes” e “obras”(*).
Até confidenciaram entre si que o falecido poderia (por que não?) ter sua
função re-exercida na eternidade.
Por Levi B. Santos
Guarabira,
30 de outubro de 2013
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