No
tempo em que exercia sua função de cronista no Diário do Rio de
Janeiro (1860) e na Gazeta de Notícias (1900), Machado de Assis
publicava, diariamente, seus folhetins. Durante 40 anos, quando a
Imprensa Brasileira gozava um período importante de consolidação,
ironizou, como ninguém, o dia a dia da política e suas ideias
prontas.
As
cenas do Homem, dito civilizado, em seus folhetins, carregados de
metáforas tinham um sabor de comédia e de insensatez, como esse que
trago, com os devidos créditos, à baila em momentos trágicos e
risíveis de nossa república das bananas.
“A
fuga do Hospício é mais grave do que pode parecer à primeira
vista. Não me envergonho de confessar que aprendi algo com ela,
assim como que perdi uma das escoras de minha alma. Este resto de
frase é obscuro, mas eu não estou agora para emendar frases nem
palavras. O que for saindo saiu, e tanto melhor se entrar na cabeça
do leitor.
Ou
confiança nas leis, ou confiança nos homens, era convicção minha
de que se podia viver tranquilo fora do Hospício dos Alienados. No
bond, na sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta
a dizer histórias extravagantes e opiniões extraordinárias, era
meu costume ouvi-la quieto. Uma ou outra vez sucedia-me arregalar os
olhos involuntariamente, e o interlocutor, supondo que era admiração,
arregalava também os seus, e aumentava o desconcerto do discurso.
Nunca me passou pela cabeça que fosse um demente. Quando o
interlocutor, para melhor incutir uma ideia ou um fato, me apertava
muito o braço ou puxava com força pela gola, longe de atribuir o
gesto a simples loucura transitória, acreditava que era um modo
particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me
depressa dos fatos e das opiniões, não só por ter os braços mui
sensíveis, como porque não é com dois vinténs que um homem se
veste neste tempo.
Assim
vivia, e não vivia mal. A prova de que andava certo, é que não me
sucedia o menor desastre, salvo a perda da paciência; mas a
paciência elabora-se com facilidade; ─ perde-se de manhã, já de
noite se pode sair com dose nova.
O
mais corria naturalmente. Agora, porém, que fugiram doidos do
Hospício e que outros tentaram fazê-lo (e sabe Deus se a esta hora
já o terão conseguido), perdi aquela antiga confiança que me fazia
ouvir tranquilamente
discurso
e notícias. É o que acima chamei uma das escoras de minha alma.
Caiu por terra o forte apoio. Uma vez que se foge do Hospício dos
alienados(e não acuso por isso a administração) onde acharei
método para distinguir um louco de um homem de juízo? De ora
avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo,
ainda que não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se
governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos que
permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso
deixar de desconfiar de todos.
A
própria pessoa ─ ou para dar mais claro exemplo, ─ o próprio
leitor
deve
desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que é
ilustrado, benévolo e paciente, mas depois dos sucessos desta
semana, quem lhe afirma que não saiu ontem do Hospício?”.
(A
segunda parte dessa Crônica de Machado de Assis publicarei posteriormente).
Levi
B. Santos
Guarabira,
18 de junho de 2020
2 comentários:
Boa tarde, Levi. Apesar da leitura de Machado de Assis parecer às vezes um pouco obscura para mim devido ao seu estilo rebuscado, acho que entendi o que o autor tentou nos passar com o seu humor discreto.
Pensando nos dias de hoje, vejo a nossa política também com ares de loucura e de insensatez, apesar dos fortes interesses econômicos que a governam. Porém, até o próprio capitalismo me parece insano e contrário à vida, o que se torna mais claro numa republiqueta de bananas onde o papel regulador do Estado se mostra fraco. Afinal, mesmo diante de uma passageira pandemia, deixam que o imediatismo dos empresários prevaleçam sobre medidas de proteção da saúde pública.
Infelizmente, hoje chego à conclusão de que o Brasil é o pior dos mundos...
Ótimo sábado!
Caro Rodrigo
Machado, mais do que qualquer jornalista político de hoje, sabia escarafunchar as ocorrências risíveis da política de seu tempo. Ao fim e ao cabo, o enredo político de seu tempo é o mesmo dos dias atuais, sem tirar nem por.
Essa metáfora machadiana é o retrato de nossa louca republiqueta de hoje:
"O juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese"
Abçs,
Levi
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