05 dezembro 2016

“Nossa Contraditória Natureza” ─ Um Tema Inconveniente em Congresso Festivo





O Bispo empalideceu instantaneamente ao tomar consciência que o Tema do Congresso religioso seria baseado na Carta que o apóstolo Paulo deixou aos Romanos , exatamente a parte que considerava a mais difícil e truncada da Bíblia Rom. 7:19

Com antecedência, já tinha enviado passagem de avião e uma boa ajuda de custo para o famoso preletor. Mas não teve outra decisão, que a de rapidamente enviar uma mensagem curta e certeira pelo WhatsApp ao renomado pregador, implorando para que abdicasse de tocar nessa passagem tão polêmica da epístola de Paulo aos Romanos, tema que já lhe custara muitos meses de estudo e reflexão sem que até agora encontrasse lógica nenhuma na dúbia citação paulina.

Em sua agonia, tivera até sonhos em que anjos apareciam informando-lhe que aquilo que Paulo escrevera teria sido na época em que sua fé ainda estava imatura. Lembrou-se de que certa vez, ouviu um colega de ministério dizer que o apóstolo Paulo escrevera o capítulo 7 de Romanos não para ser tema de sermões em cultos públicos, e sim para ser ventilado em reuniões secretas da igreja.

Pediu a opinião de seu vice, o qual, de imediato, concordou que seria um perigo ou um balde de água fria no Congresso discorrer para pecadores ou novos convertidos sobre um tema inflamável e até mesmo contraditório, como se a contradição não fosse a característica maior do ser humano.

O bispo viajou de urgência à Brasília, a fim de consultar o Setor de Aconselhamento da igreja matriz a qual pertencia, por sinal, muito frequentada por autoridades da república, além de grande parcela de mestres e doutores em Ciências Humanas da Capital Federal.

Não gostou, ou para falar a verdade nua e crua, saiu altamente decepcionado com o que ouvira de alguns sabichões da cúpula de comando de sua instituição religiosa.
Chegou até a exclamar para si: “Meu Deus, a Igreja da qual sou um simples bispo, está mundanizada!” Nem notou que o aparente paradoxo da passagem paulina se fez presente nele mesmo, ou em seu inconsciente, ao pedir, no mesmo instante, perdão pelo pecado de “blasfêmia” ao considerar a santa Igreja desviada dos caminhos do Senhor.

Não entendera nada do que o psicólogo, teólogo e doutor Ph.D. em “Carta aos Romanos” tinha exposto sobre a essência da ambiguidade dos afetos humanos tão bem sintetizada pelo apóstolo Paulo naquele emblemático versículo. Como gravara em seu smartphone tudo que ouvira na reunião, na viagem de volta para sua cidade natal foi revendo o que os estudiosos conselheiros tinham lhe explicado a respeito do polêmico Romanos (7:19). Mas uma voz não cessava de sussurrar aos seus ouvidos: “Isto é coisa do Diabo, bispo. Saia dessa!”

Nunca que vou concordar com tamanho absurdo que ouvi dos meus superiores , dizia o bispo de si para si. Lá atrás em uma das últimas poltronas do avião que o levava a sua terra natal, a curiosidade, tal qual prurido em lugar mais sensível do corpo, estimulou-o a novamente ligar seu aparelho a fim de rever toda a gravação que fizera da fala do seu superior hierárquico:

Paulo disse algo profundo, que ainda hoje é base de toda a Psicologia individual e coletiva: Através da célebre afirmação de Saulo de Tarso aos Romanos, hoje podemos compreender que a religião não é uma espécie de luneta para observação de panoramas externos. Pelo contrário, ela é um espelho que nos possibilita olhar para dentro de nós mesmos, a fim de que entendamos que mesmo ao pregar o bem, o mal está lá escondido nos recônditos mais profundos de nossa psique ou alma”.

Torceu o nariz quando o teólogo fez, no seu dizer, uma fiel analogia da frase paradoxal de Paulo com um verso que Horácio, (65 a. C), grande poeta da Roma antiga, deixou registrado em seus escritos: “Mais na mente que no corpo jazem minhas dores/ Tudo que me prejudica, com alegria eu busco/ Tudo que me faz bem, com horror eu vejo”.

Sentiu-se mal e desejou até apagar esse trecho horripilante da totalidade do que gravara na “Clínica da Alma”, situada numa dependência da grande catedral de sua Instituição em Brasília, ocasião em que tivera a oportunidade de ouvir o Mestre-Conselheiro explicando o “porquê” da emblemática frase de Paulo “O querer bem está em mim, porém não consigo efetuá-lo”.

Paulo queria explicitar que o desejo de fazer o bem realmente habitava no homem regenerado, naquela porção nova da natureza dupla do crente; mas visto que a sua antiga e corrupta natureza mantinha o domínio, a sua porção regenerada ficava tolhida… […] Por conseguinte, o crente continuava a fazer o que odeia, sendo incapaz de praticar o que ama.”

Sentiu náuseas ao conferir a elucidação enfatizada pelo Teólogo existencialista, cuja função precípua era a de dirimir dúvidas sobre a interpretação de textos que versassem sobre a natureza ambígua ou contraditória do homem em sua totalidade. O desejo de externar o que pensava na cara do conselheiro veio à tona em seu coração: ora, o velho Adão em si já morrera, por conseguinte, não poderia admitir que continuava a fazer o que odeia. Poderia até concordar com o teólogo e conselheiro-mor de sua igreja, se ele tivesse explicitado que o "mal" podia aparecer em sonhos, pois no sono profundo não se consegue controlar a mente. Para ele o que valia mais era o estado de vigília, estágio em que o sujeito tem a capacidade de reprimir as coisas da carne que vez por outra aflora na consciência. 

Como, admitir toda essa asneira meu Deus do Céu? Como, na condição de Nova Criatura, além de mensageiro de Cristo, vou afirmar para as minhas ovelhas que o mal que não quero para elas, esse faço? inquiria o bispo, meio desnorteado. Foi quando abandonou o seu celular para retirar de sua pasta o grosso volume de 887 páginas do livro “Romanos interpretado versículo por versículo” , grande coleção da Editora Candeia, composta de seis grossos volumes, totalizando nada mais nada menos que 4.336 páginas, do autor, Russell Norman Champlin, Ph.D.
Além de ser muito dispendioso adquirir todo o Novo Testamento explicado versículo por versículo, sabia que nunca chegaria a ler tamanho calhamaço. Contentou-se apenas com o volume correspondente a Carta de Paulo aos Romanos.

Ao abrir livro aleatoriamente, como quem puxa à guiza de revelações, versículos bíblicos escritos em pequenos cartões coloridos da velha conhecida “Caixa de Promessas, o bispo surpreendeu-se com a analogia que o autor fez da célebre e paradoxal frase de Romanos 7:19, com um verso do poeta considerado por ele como um dos mais mundanos. Tremeu só ele, e não o avião, ao ler o que considerava uma blasfêmia: tratava-se de uma poesia existencialista de Olavo Bilac, um dos maiores poetas de nosso país. E não é que, repentinamente, arregalou os olhos ao se deparar com o trecho final do poema, que dizia assim:

E, no perpétuo ideal que te devora/Residem, juntamente no teu peito/Um demônio que ruge e um Deus que chora”.

Fechou o volume de quase mil páginas e clamou tão alto pelo sangue de Cristo, que acabou acordando muitos passageiros que estavam cochilando nas poltronas do avião. Dali pra frente não conseguiu ler mais nada daquele herético livro.

E haja pensamentos e mais pensamentos a torturar o bispo, que com seus botões racionalizava, agora em um surdo silêncio. Alguma coisa nele dizia: Não sei, mas certas passagens bíblicas, só vamos entender na outra vida. Para evitar contendas, enquanto estiver a frente da igreja, esse tema não será motivo de filosofices, seja de quem for, doutores ou não doutores. Ademais, o Livro Sagrado não é de particular interpretação, e ponto final.

Diante de uma das mais severas crises da história recente da nação brasileira, decorrente da falta de credibilidade, a maioria dos membros do corpo da igreja em uma votação democrática, pediu mais leveza na escolha do tema do Congresso: Em vez de assunto tão terrível e complexo, que se falasse de algo mais prazeroso, como “Vitória e Glória” que deixa todo mundo saltitante de contentamento ―, além de ser uma espécie de compensação anestesiante para o enfrentamento da realidade tão angustiante da vida que, bem diferente do ambiente sagrado, naturalmente se leva lá fora.

Ninguém é de ferro, não é irmãos? A vida, tal qual uma rapadura, já é tão dura!. Uma semana de festa, já nos aliviaria bastante — disse um empolgado membro, fazendo uso da palavra —, e isso foi o bastante para obtenção de calorosos aplausos e glórias a Deus.


NOTA:

Os trechos em itálico na cor vermelho-tijolo foram pinçados dos excertos e comentários ao capítulo 7 de “Romanos explicado versículo por versículo”, da grande coleção do Novo Testamento, de Norman Champlin Ph.D.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 05 de dezembro de 2016

5 comentários:

Felipe disse...

É de dá um nó. E o bispo engavetou o problema?

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Caro Levi,

Grato por mais uma abordagem sua a esse tema, o qual é um dos principais que costuma escrever em seu blogue.

De fato, esse ainda é um assunto que o meio religioso cristão tem dificuldades para debater. Não só porque desconstrói a ideia de que o convertido possui uma natureza distinta dos não crentes como também gera uma preocupação quanto à hipótese se alguém encontrar nessa passagem mais uma desculpa para "viver em pecado".

Se observarmos os comportamentos dos que costumam dar seus testemunhos de conversão, expondo na igreja que antes faziam isso e aquilo, mas agora estão regenerados (ao invés de se considerarem como pacientes em tratamento), entenderemos a dificuldade que há nas pessoas em admitirem a própria ambiguidade. Pois o ser humano, em sua necessidade de ser aceito dignamente por um grupo, buscando se adequar aos seus padrões de conduta, depois de certo tempo de crente/membro, resolve se enrijecer como um irmão de fé que subiu vários degraus na escada da santidade. Só que, ao agir assim, ele deixa de tratar melhor de suas chagas interiores e corre o risco de vir a enfrentar no futuro uma recaída. Aliás, não só uma como várias...

Bom seruacque essa passagem de Paulo fosse melhor trabalhada sendo possível harmoniza-la com outros escritos do NT. Inclusive com a primeira epístola de João quando o autor bíblico recomenda a confissao dos pecadis e a confiança na advocacia de Jesus perante o Pai (1:9-2:2)

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Ao que me parece, segundo o texto, o bispo permaneceu com suas reflexões e a igreja resolveu enfrentar outro tema mais light.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Sobre a crise de credibilidade em nossa República, a qual mencionou brevemente no texto, Levi, eis aí um assunto a ser tratado. Sem querer defender os corruptos, percebo que boa parte da sociedade anda ignorando a corrupção que há nela mesma e tenho muita preocupação quanto a isso.

Se dependesse hoje de muitos internautas que descarregam suas emoções enraivecidas nas redes sociais, os políticos envolvidos com maracutaias deveriam sofrer pena de morte em julgamento sumário e há quem defenda até uma intervenção militar com fechamento do Congresso e prisão pela Polícia Federal de quem bastaria ser investigado pelo MPF.

Pois bem. Tudo isso pode representar uma profunda indignação de nosso sofrido povo com a situação do país. Porém, também é um posicionamento pouco refletido sobre as contradições de nós mesmos como seres humanos. Como se não fôssemos todos responsáveis em maior ou menor grau pelo que anda ocorrendo. Como se não compactuassemos com a eleição de muitos considerados fichas sujas! Como se fôssemos desprovidos das mesmas inclinações pecaminosas para se apropriar do bem comum. Como se, num ambiente de ditadura, não voltaríamos a absuar pelo retorno da democracia tão logo se instalasse um regime rígido. Como se militares, juízes, membros do MP ou delegados da PF não fossem também sujeitos às idênticas contradições que os atuais governantes e legisladores...

Infelizmente, tendemos a ignorar nossa própria inclinação para o erro e isto obscurece o entendimento a ponto de nos induzir a escolhas infelizes. Não que a política brasileira deva permanecer tal como é hoje, mas não podemos permitir que os acontecimentos noticiados sobre a Lava-Jato e outros casos de corrupção acabem prejudicando a correta percepção da realidade.

Levi B. Santos disse...


Ao que me parece, segundo o texto, o bispo permaneceu com suas reflexões e a igreja resolveu enfrentar outro tema mais light” (Rodrigo)

Já dizia Freud, sobre esse tipo de solução light prazerosa:

Na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio de realidade” (rsrs)