É sempre na época em que se celebra a páscoa, que vem à tona, inusitados fatos dos tempos de minha meninice, que ainda guardo indelevelmente na memória.
Ainda hoje, aos sessenta e dois anos de idade, toda vez que visito a minha mãe, no tradicional feriado da Sexta Feira da Paixão, assisto ao mesmo ritual dos tempos dos meus verdes anos. A procissão do “Senhor morto” ainda faz o mesmo trajeto de décadas atrás. Como o velho bangalô dos meus pais fica encravado no topo da ladeira da longa e retilínea avenida central da cidade, fico como um expectador privilegiado de um dos mais antigos rituais da igreja católica.
Foi ali, na murada da sacada de minha casa, que eu senti os meus primeiros terrores, os meus primeiros medos, ao ver se aproximar lentamente, em meio a uma grande multidão, a imagem do Senhor morto carregado em um andor, por quatro homens impecavelmente trajados de branco. Era tão perfeita a estátua, que cheguei, por diversas vezes, a duvidar se aquilo não era um cadáver de verdade: A pele do corpo seminu com a palidez semelhante a dos mortos, os olhos esbugalhados como se estivessem querendo sair das órbitas. E não é que o temor e tremor que tomavam conta de mim naqueles momentos, na minha imaginação, me faziam ver os dedões dos pés do Cristo morto, se mexer!
De início, eu vedava os meus olhos com as mãos, visivelmente atemorizado com àquele fúnebre espetáculo, cujo fundo musical era uma espécie de ladainha lúgubre e chorosa. Mas com o tempo fui perdendo o medo.
Foi ali, na murada da sacada de minha casa, que eu senti os meus primeiros terrores, os meus primeiros medos, ao ver se aproximar lentamente, em meio a uma grande multidão, a imagem do Senhor morto carregado em um andor, por quatro homens impecavelmente trajados de branco. Era tão perfeita a estátua, que cheguei, por diversas vezes, a duvidar se aquilo não era um cadáver de verdade: A pele do corpo seminu com a palidez semelhante a dos mortos, os olhos esbugalhados como se estivessem querendo sair das órbitas. E não é que o temor e tremor que tomavam conta de mim naqueles momentos, na minha imaginação, me faziam ver os dedões dos pés do Cristo morto, se mexer!
De início, eu vedava os meus olhos com as mãos, visivelmente atemorizado com àquele fúnebre espetáculo, cujo fundo musical era uma espécie de ladainha lúgubre e chorosa. Mas com o tempo fui perdendo o medo.
Já rapazote, por ocasião das procissões, eu resolvi deixar o Senhor morto de lado, passando a me concentrar mais na figura de um alto e vigoroso homem garbosamente vestido com sua finíssima indumentária branca. Ele fazia parte da dupla da frente que carregava o andor do Senhor morto. A sua posição por ser sempre a do lado direito, fazia-me ver em mais detalhes as peculiaridades de sua fisionomia.
Passaram-se alguns anos. Eu estava na praça central de minha cidade participando com os crentes de todas as denominações, da comemoração do dia da Bíblia, quando ouvi o preletor oficial bradar em alta voz:
- Peço nesse momento, para todos que estão aqui reunidos, erguerem bem alto, o que de melhor vocês adquiriram em suas vidas!
De repente, sobre nossas cabeças surgiu um mar imenso de bíblias de todas as cores, formatos e volumes, tremulando como se fossem estrelas brilhando em plena luz do dia. Mas, algo atiçou a minha curiosidade para saber de quem era aquele braço levantado tão alto, que fazia sua bíblia sobressair sobre as demais. Grande foi a minha surpresa ao constatar, que o volumoso livro de capa preta com o nome Bíblia na cor prateada, era do velho do andor, que passava perto de mim, todo ano, carregando o senhor morto nos ombros e na sua mão direita. Era ele mesmo em carne e osso. Pensei comigo: “o velho finalmente tinha deixado a sua religião, para ser um crente”.
Decorreram alguns anos. Eu, agora estudante da quarta série ginasial, fora indicado junto com outro colega, para fazer uma entrevista com os alunos do Mobral ─ um programa instituído pelo Governo para alfabetização de idosos, que alguns mais afoitos diziam ser destinado unicamente para fins eleitoreiros, pois ensinavam só assinar o nome, para que a pessoa pudesse tirar o seu título de eleitor.
Ao adentrar a escola ─ um casarão velho cheirando a mofo, com extensas áreas das paredes com reboco caído ─, fui surpreendido de tal forma, que fiquei com as pernas trêmulas. Lá no canto direito da sala estava o velho do andor sentado em uma carteira colegial, vestido de branco, como sempre. A segunda surpresa que tive: ele estava sem o seu volumoso livro de capa preta. Sentindo uma vaga tontura, permaneci parado por alguns minutos, antes de esboçar qualquer reação. Apesar de minha enorme timidez, algo lá dentro me dizia: “Coragem! Entreviste o velho do andor!.”
Recebi a autorização da diretora, e me dirigi cambaleante em direção ao velho do andor, para a minha primeira e emblemática entrevista como estudante.
A sala estava abafada, pois só havia uma janela lateral para entrada da brisa do fim de tarde. Após saudá-lo com um “boa tarde”, perguntei o seu nome. Ele me respondeu com a voz arrastada e cansada, devido o peso da idade:
─ Me chamo de Tomaz da Cruz Pordeus ─ falou com a voz desgastada pelo peso da idade.
Pronto disse comigo mesmo: era só o que faltava ─ , o homem tem religião até no nome.
Parti então para minha segunda pergunta ─ um tanto mal educada:
─ Seu Tomaz! O que levou o senhor nessa idade a procurar aprender a ler e a escrever?
─ Meu filho, estou aqui para aprender a ler, a fim de poder examinar as Escrituras Sagradas, pois, acredito que elas testificam de Deus e seu Filho Jesus. Quero ter a minha própria experiência, para não andar só pela cabeça dos outros – concluiu o velho dando uma tossida rouca no final da locução.
A resposta do velho do andor me desnorteou por completo, levando-me irrefletidamente a perguntar:
─ Mas o senhor já é crente! Eu o avistei, com sua mão direita fortemente empunhando uma bíblia, numa concentração cristã, lá na praça!
─ Meu filho, entre pensar e ser, vai uma grande distância. Eu pensava que era crente. Para felicidade minha, descobri que eu tinha apenas trocado de andor, isto é, trocado de ídolos. Descobri que a sensação que eu sentia ao carregar o andor do Senhor morto, segurando-o arrojadamente na minha mão direita, era a mesma que sentia quando empunhava a minha Bíblia. O meu maior prazer era carregá-la como um amuleto. Por muitas vezes, cheguei a colocar debaixo do meu travesseiro, para ver se acordava mais crente.
O velho do andor despertara-me para enxergar o óbvio: eu estava vivendo, até então, pelo viés das aparências, seguindo um batalhão de mosqueteiros, caminhando para lugar nenhum.
Apesar de ter nascido num lar cristão, e ser um igrejeiro contumaz, tinha ali, naquela breve e significativa entrevista, recebido a maior lição de minha vida. Lição esta que fez desmoronar o falso e frágil alicerce do meu aparente mundo religioso.
Sai dali sozinho, tímido e fraco, mas aliviado do peso forte das certezas acabadas, livre da amarga água do poço, com que saciaram a minha débil e imatura sede de Deus.
Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 21 de abril de 2009
6 comentários:
Caro Levi,
Que bela lição o velho do andor, seu Tomaz transmitiu. Sabendo da sua limitação, foi em busca de conhecimento para não continuar na mesma idolatria. Quantos ainda hoje, mesmo versados nas letras, são meros religiosos, não buscam suas próprias experiencias na Palavra, vão pela cabeça dos outros e o resultado é o que vemos por aí, gente que apenas trocou de andor, sem nenhum conhecimento da Palavra. Que a misericórdia do Senhor os alcance.Que esse texto possa servir de alerta para muita gente.
Shalom!
Yehudith.
Irmão Levi, a paz do Senhor!
Belo texto, este não poderia deixar de ir à minha "coleção".
Faz refletir sobre o verdadeiro novo nascimento, sobre o que realmente é ter uma vida com Deus.
Verdade é que muitos dos que dizem ser convertidos, são na verdade "convencidos" de que deveriam trocar de religião, e assim fazem; mudam de religião, de igreja, de templo, de amuletos e "muletas" de fé. Simplesmente deixam de fazer algumas coisas para começar a fazer outras, esquecendo-se de que o fazer é vazio se não for precedido pelo ser.
É isto que Jesus faz em nossa vida; a obra que nenhum homem pode fazer em si mesmo, o novo nascimento da água e do Espírito.
Que Deus continue te abençoando a cada dia.
AH! Com relação ao blog, se quiser eu posso fazer uma imagem bem legal para o Sr. colocar no cabeçalho da página. O meu ainda tem muito a melhorar, mas a gente faz o que pode. O seu blog embora seja de simples aparência tem um conteúdo maravilhoso.
Com relação
Preada Yehudith
Faço votos junto com você, para que aqueles que estão se alimentando dos enlatados gospel, acordem para procurar o verdadeiro e sadio alimento: Aquele que a gente procura, examina, escolhe e experimenta, para depois ingerí-lo.
Saudações em Cristo,
Levi B. Santos
Prezado amigo e irmão Luis Paulo
Ponho a minha assinatura abaixo do que você escreveu.
Realmente, são "convencidos" e não convertidos, aqueles que trocam de igreja, mas continuam com as mesmas práticas religiosas.
Para node eles vão, levam sempre o seu andor vazio para colocação de um novo ídolo.
Abçs fraternais,
Levi B. Santos
Amado, a paz do Senhor!
Te mandei um e-mail no glauberbronzeado@uol.com.br
dá uma olhada lá ok?
Abraços!
Olá caro irmão Levi!
Demorei a ler esse post, queria lê-lo em paz, longe da correria do dia-a-dia, longe dos problemas. E consegui. Terminei a leitura nesse momento e fiquei satisfeito.
A verdade é que na maioria das vezes pensamos que estamos no caminho certo sem ao menos questionar. Por exemplo, passei longos anos convivendo com irmãos em uma igreja tradicional, mas hoje percebi que, em todos estes anos, eu estava lá por conta dos amigos.
Pois bem irmão Levi, era a minha 'Procissão do Senhor Morto', todos os domingos eu estava lá, queria estar. Não faltava a nenhuma reunião de oração de quarta-feira, e nas reuniões quinzenais de sábado não podia perder.... amigos e mais amigos.
Hoje, pergunto onde aqueles amigos estão?, continuam na procissão.
Hoje o meu alicerce é Ele, graças a Deus fui liberto disso.
Prezado irmão e amigo Rodrigo
Acredito que cada um de nós, cristãos, tem uma história parecida com a do “Velho do
Andor”.
É que, no início de nossa fé, somos como uma folha seca levada pelos ventos em várias direções.
O velho que levava o andor, e depois a Bíblia, em sua procissão idólatra, retrata bem a minha infância longínqua, vivida e regida pelas aparências.
O ensaio, além de nos levar a uma reflexão sobre as premissas falsas com que julgamos o nosso próximo, nos serve de alerta nesse mundo, onde o que mais se valoriza é a exterioridade.
Sou grato pelo seu enriquecedor comentário.
Levi B. Santos
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