Um ritual antropofágico dos tempos pré históricos, ainda hoje, continua sendo reproduzido com toda sua grandeza simbólica na cerimônia da Eucaristia (igreja católica) e nas cerimônias da Santa Ceia (igrejas protestantes e evangélicas). Em tais rituais, os membros reconhecidos como irmãos são convidados a comer um pedaço do corpo de Cristo e a beber seu sangue, que no caso, são simbolizados pelo pão e pelo vinho, à semelhança da refeição totêmica que Freud narra em seu livro “Totem e Tabu”, a qual ele considera o mais antigo festival da humanidade. Para ele, a repetição desse ato memorável estaria encravada nas origens do pensamento religioso cristão.
“Quando o homem partilhava uma refeição com o seu deus, estava expressando a convicção de que eram partes de uma só substância; e nunca partilharia essa ceia com quem considerasse um estranho” (Freud – Totem e Tabu – pag 162)
Em “Totem e Tabu”, Freud utiliza o mito da morte do Pai primitivo para compreensão da gênese da religião cristã. Ele vê um paralelismo do mito cristão com o totemismo.
“A força ética da refeição sacrificatória pública repousava em idéias muito antigas da significação de comer e beber juntos. Comer e beber com um homem constituía um símbolo e uma confirmação de companheirismo e obrigações sociais mútuas” (Totem e Tabu – pág 161)
Na ceia totêmica, cada um dos participantes ao ingerir simbolicamente um pedaço do corpo do Totem adquire a sua santidade. Pelo ato de devorá-Lo realizavam a identificação com Ele, adquirindo sua força. A refeição totêmica surge como uma forma e um esforço de apaziguar o Pai, e mitigar o sentimento de culpa por se ter entronizado o Filho no lugar de Deus-Pai. O próprio ato pelo qual o Filho oferecia a maior expiação ao Pai conduzia-o ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o Pai. Cristo, Ele próprio, tornava-se Deus em lugar do Pai, deslocando a religião paterna (Judaísmo) para a religião filial (cristianismo)
Nesse sentido, Philippe Julien, psicanalista Francês, no seu livro “Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe” — página 79 (Editora Comp. de Freud), diz o seguinte: “O cristianismo começa com a morte do Pai Todo poderoso, por que Ele se esvaziando do seu poder, deixa de intervir na história, fazendo, para o bem ou para o mal, nascer o desejo do outro”.
Freud vê aspectos do paradoxo humano no totemismo, em que o fato do crime e do sentimento de culpa dos filhos da horda primitiva que matam o pai primevo, tanto pode gerar a concretização do desejo como a negação dele, constituindo aquilo que denominamos em psicanálise: “ambivalência emocional”.
Mircea Eliade, em seu livro “Aspectos do Mito” (pág. 93) — diz que “as cerimônias religiosas são festas de recordação, com um significante — o de apreender o mito central, ou seja, o assassínio da divindade e suas conseqüências”.
“Na psicologia de Jung, ao celebrar a última ceia, o crente estaria comendo a sua própria carne e bebendo o seu próprio sangue; isso tinha um significado: o de que ele devia reconhecer e aceitar o outro que há em si mesmo” — escreveu Edward Edinger no seu livro, “Arquétipo Cristão” (página 63)
O aspecto da “refeição do Totem”, que recobre a última ceia, mostra Cristo representando o “Anthropos” — o homem total original.
Na iconografia primitiva, a Última Ceia era representada por uma refeição à base de peixe, e remonta ao Banquete Messiânico da lenda judaica, na qual a carne do Leviatã — o monstro marinho —, é servida aos devotos. O Leviatã habitava as profundezas obscuras do oceano, e isso em psicanálise tem um paralelo — “o Inconsciente”, que analogicamente, representa as profundezas abissais e temerosas da psique. Esse mesmo monstro aquático — símbolo das forças poderosas do inconsciente — aparece na epopéia poética e mítica do personagem, Jó: “Se puseres a mão sobre ele (o Leviatã), lembrar-te-ás da peleja e nunca mais o intentarás. Toda a esperança de apanhá-lo é vã; o homem será derrubado só em vê-lo.” (Jó 41:8-9).
A tradição mítica cristã diz que, na aparição de Cristo na Galiléia depois de sua morte, Ele comeu peixe com favo de mel junto aos seus discípulos. Tanto o peixe dessa refeição sobrenatural ou intra-psíquica de Cristo como o grande peixe Leviatã da lenda judaica, representam os conteúdos da psique primordial e seus reflexos percebidos na consciência. A ceia é o processo “revelatio” em que o “o imenso tesouro” que jaz oculto em nós, passa a ser observado no outro, nosso irmão, num processo que Jung denominou “individuação” (vide - O Mito do Significado de Anniela Jaffé — editora Cultrix — página 82)
A ceia totêmica de Cristo fez nascer na religião a “função fraternal”, sugerindo que o semelhante, o “irmão”, tem um impacto estruturante/desestruturante, entretanto, necessário na constituição da nossa individualidade, desde que cada um faça o seu mergulho, para provar do estrangeiro que há em si, na figura de um Leviatã que habita nas profundezas do obscuro e temível mar do inconsciente.
P.S.:
“A psicanálise preocupa-se apenas em analisar o conteúdo da psique expresso no mito. A existência psicológica é subjetiva e verdadeira, porque o conceito de verdade não está ligado ao palpável e ao que é demonstrável racionalmente, mas ao que é percebido sensorialmente, de forma individual ou em grupo”. (Erich Fromm — Psicanálise e Religião – página 21)
O mito é considerado como o maior patrimônio espiritual da humanidade. “Os mitos resultam de experiências humanas coletivas, sem que seus produtores tenham consciência da autoria deles, pois são projeções das interpretações do mundo interior e exterior transformadas em imagens, metáforas ou representações e expressões da própria realidade”. (Ernest Cassirer – Mito e Linguagem – Editora Perspectiva)
Por Levi B. Santos
Guarabira 13 de dezembro de 2010
FONTES:
1. Freud, Totem e Tabu — Editora Imago
2. Philippe Julien, Não Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe — Editora Companhia de Freud
3. Mircea Eliade, Aspectos do Mito — Editora Edições 70 (Portugal)
4. Edward Edinger, Arquétipo Cristão — Editora Cultrix
5. Anniella Jaffé, O Mito do Significado — Editora Cultrix
6. Erich Fromm, Psicanálise e Religião — Editora Zahar
7. Ernest Cassirer, Mito e Linguagem — Editora Perspectiva
8. Bíblia Sagrada, Livro de Jó