13 dezembro 2010

A Ceia Totêmica Cristã

Tomai, comei; isto é o meu corpo (Jesus)

Um ritual antropofágico dos tempos pré históricos, ainda hoje, continua sendo reproduzido com toda sua grandeza simbólica na cerimônia da Eucaristia (igreja católica) e nas cerimônias da Santa Ceia (igrejas protestantes e evangélicas). Em tais rituais, os membros reconhecidos como irmãos são convidados a comer um pedaço do corpo de Cristo e a beber seu sangue, que no caso, são simbolizados pelo pão e pelo vinho, à semelhança da refeição totêmica que Freud narra em seu livro “Totem e Tabu”, a qual ele considera o mais antigo festival da humanidade. Para ele, a repetição desse ato memorável estaria encravada nas origens do pensamento religioso cristão.

“Quando o homem partilhava uma refeição com o seu deus, estava expressando a convicção de que eram partes de uma só substância; e nunca partilharia essa ceia com quem considerasse um estranho” (Freud – Totem e Tabu – pag 162)

Em “Totem e Tabu”, Freud utiliza o mito da morte do Pai primitivo para compreensão da gênese da religião cristã. Ele vê um paralelismo do mito cristão com o totemismo.

“A força ética da refeição sacrificatória pública repousava em idéias muito antigas da significação de comer e beber juntos. Comer e beber com um homem constituía um símbolo e uma confirmação de companheirismo e obrigações sociais mútuas” (Totem e Tabu – pág 161)

Na ceia totêmica, cada um dos participantes ao ingerir simbolicamente um pedaço do corpo do Totem adquire a sua santidade. Pelo ato de devorá-Lo realizavam a identificação com Ele, adquirindo sua força. A refeição totêmica surge como uma forma e um esforço de apaziguar o Pai, e mitigar o sentimento de culpa por se ter entronizado o Filho no lugar de Deus-Pai. O próprio ato pelo qual o Filho oferecia a maior expiação ao Pai conduzia-o ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o Pai. Cristo, Ele próprio, tornava-se Deus em lugar do Pai, deslocando a religião paterna (Judaísmo) para a religião filial (cristianismo)

Nesse sentido, Philippe Julien, psicanalista Francês, no seu livro “Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe” — página 79 (Editora Comp. de Freud), diz o seguinte: “O cristianismo começa com a morte do Pai Todo poderoso, por que Ele se esvaziando do seu poder, deixa de intervir na história, fazendo, para o bem ou para o mal, nascer o desejo do outro”.

Freud vê aspectos do paradoxo humano no totemismo, em que o fato do crime e do sentimento de culpa dos filhos da horda primitiva que matam o pai primevo, tanto pode gerar a concretização do desejo como a negação dele, constituindo aquilo que denominamos em psicanálise: “ambivalência emocional”.

Mircea Eliade, em seu livro Aspectos do Mito” (pág. 93) — diz que “as cerimônias religiosas são festas de recordação, com um significante — o de apreender o mito central, ou seja, o assassínio da divindade e suas conseqüências”.

“Na psicologia de Jung, ao celebrar a última ceia, o crente estaria comendo a sua própria carne e bebendo o seu próprio sangue; isso tinha um significado: o de que ele devia reconhecer e aceitar o outro que há em si mesmo” — escreveu Edward Edinger no seu livro, “Arquétipo Cristão” (página 63)

O aspecto da “refeição do Totem”, que recobre a última ceia, mostra Cristo representando o “Anthropos” — o homem total original.

Na iconografia primitiva, a Última Ceia era representada por uma refeição à base de peixe, e remonta ao Banquete Messiânico da lenda judaica, na qual a carne do Leviatã — o monstro marinho —, é servida aos devotos. O Leviatã habitava as profundezas obscuras do oceano, e isso em psicanálise tem um paralelo — “o Inconsciente”, que analogicamente, representa as profundezas abissais e temerosas da psique. Esse mesmo monstro aquático — símbolo das forças poderosas do inconsciente — aparece na epopéia poética e mítica do personagem, Jó: “Se puseres a mão sobre ele (o Leviatã), lembrar-te-ás da peleja e nunca mais o intentarás. Toda a esperança de apanhá-lo é vã; o homem será derrubado só em vê-lo.” (Jó 41:8-9).

A tradição mítica cristã diz que, na aparição de Cristo na Galiléia depois de sua morte, Ele comeu peixe com favo de mel junto aos seus discípulos. Tanto o peixe dessa refeição sobrenatural ou intra-psíquica de Cristo como o grande peixe Leviatã da lenda judaica, representam os conteúdos da psique primordial e seus reflexos percebidos na consciência. A ceia é o processo “revelatio” em que o “o imenso tesouro” que jaz oculto em nós, passa a ser observado no outro, nosso irmão, num processo que Jung denominou individuação” (vide - O Mito do Significado de Anniela Jaffé — editora Cultrix — página 82)

A ceia totêmica de Cristo fez nascer na religião a “função fraternal”, sugerindo que o semelhante, o “irmão”, tem um impacto estruturante/desestruturante, entretanto, necessário na constituição da nossa individualidade, desde que cada um faça o seu mergulho, para provar do estrangeiro que há em si, na figura de um Leviatã que habita nas profundezas do obscuro e temível mar do inconsciente.

P.S.:

A psicanálise preocupa-se apenas em analisar o conteúdo da psique expresso no mito. A existência psicológica é subjetiva e verdadeira, porque o conceito de verdade não está ligado ao palpável e ao que é demonstrável racionalmente, mas ao que é percebido sensorialmente, de forma individual ou em grupo”. (Erich Fromm — Psicanálise e Religião – página 21)

O mito é considerado como o maior patrimônio espiritual da humanidade. “Os mitos resultam de experiências humanas coletivas, sem que seus produtores tenham consciência da autoria deles, pois são projeções das interpretações do mundo interior e exterior transformadas em imagens, metáforas ou representações e expressões da própria realidade”. (Ernest Cassirer Mito e Linguagem – Editora Perspectiva)


Por Levi B. Santos

Guarabira 13 de dezembro de 2010


FONTES:

1. Freud, Totem e Tabu — Editora Imago

2. Philippe Julien, Não Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe — Editora Companhia de Freud

3. Mircea Eliade, Aspectos do Mito Editora Edições 70 (Portugal)

4. Edward Edinger, Arquétipo Cristão Editora Cultrix

5. Anniella Jaffé, O Mito do Significado — Editora Cultrix

6. Erich Fromm, Psicanálise e Religião — Editora Zahar

7. Ernest Cassirer, Mito e Linguagem Editora Perspectiva

8. Bíblia Sagrada, Livro de Jó

10 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Graça e paz!

Jesus inovou dentro daquilo que já existia no universo cultural de sua época. Alguns estudiosos dizem que a Ceia já era praticada em religiões oriundas da antiga Pérsia como o mitraísmo. Inclusive, desde a antigüidade, o nascimento de Mitra era celebrado em 25 de dezembro. Aliás, até o dualismo do judaísmo pós-exílio foi influenciado pelo mitraísmo e a cosmovisão persa, visto que até então o mal nem era personificado pela Torah e outros livros (basta comparar Samuel e Reis com Crônicas). Freud, todavia, parece querer aprofundar mais ainda a discussão, aproximando-se talvez, de uma época pré-histórica. De qualquer modo, foi inteligentíssima a instituição da Ceia por Jesus, pois foi uma maneira bem prática de se compreender o Evangelho e da graciosa obra do Messias. Aliás, naqueles tempos nem todos sabiam ler e escrever e a comunicação pelas imagens verbais, enigmas, parábolas e dinâmicas como a Ceia eram bem mais eficazes do que os livros. Finalmente, compartilho que o aprendizado sobre as origens da Ceia nos mostra a importância da Mensagem do Evangelho ser acessível às culturas que pretendemos nos comunicar.

guiomar barba disse...

Levi,

O Rodrigo disse" De qualquer modo, foi inteligentíssima a instituição da Ceia por Jesus, pois foi uma maneira bem prática de se compreender o Evangelho e da graciosa obra do Messias. Aliás, naqueles tempos nem todos sabiam ler e escrever e a comunicação pelas imagens verbais, enigmas, parábolas e dinâmicas como a Ceia eram bem mais eficazes do que os livros. Finalmente, compartilho que o aprendizado sobre as origens da Ceia nos mostra a importância da Mensagem do Evangelho ser acessível às culturas que pretendemos nos comunicar."

Concordo plenamente e lamento que não vivenciamos hoje a ceia da forma como Jesus estabeleceu. É um ato simbólico belíssimo aos meus olhos.

Muito bom o tema.
Beijão.

Levi B. Santos disse...

Realmente, Rodrigo, a "Última Ceia de Cristo" - em nível simbólico, é um dos arquétipos mais importantes de nossa psique.

Interessante, é que existe um paralelo dessa “refeição totêmica cristã” no mundo grego:
Dioniso, que era o único deus do panteão grego a nascer de uma mortal, resgatou a sua mãe do Hades e a instalou no céu.
Em sua primeira vida, quando criança, ele foi desmembrado pelos Titãs. Esses, com a realização desse ato experimentaram um sentimento, tipo “paixão”.

Num paralelismo com a “Ùltima ceia de Cristo”, Dioniso oferece a sua própria carne aos seus adoradores, como garantia de sua imortalidade.

Segundo Jung, a “ceia” significa a consciência do “si-mesmo”, que nos permite ver as coisas “sob o aspecto da eternidade”.

Rodrigo, apareça mais vezes nesta sala. A sua contribuição é muito bem-vinda.

Por sinal, estou sempre acompanhando com interesse, as suas inserções muitíssimas abalizadas, lá no blog de Gresder.

Abraços,

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Tens razão, Guiomar

Muitos, sem entender a grandeza simbólica da Ceia, estão comendo e bebendo indignamente, não discernindo o corpo do Senhor — Já dizia, o “ambivalente” Saulo de Tarso (rsrs)

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Prezados Levi e Guiomar,

Mesmo sem a maioria dos participantes da Ceia alcançarem os entendimentos totêmicos de psicanalistas, historiadores, filósofos, teólogos e outros estudiosos, creio que o ato em si trás uma mensagem bem comunicativa, sendo esta bem acessível às pessoas simples. Aliás, eu ressaltaria que o discernimento do corpo e do sangue do Senhor se faz com a mais pura simplicidade.

Em falar no blogue do Gresder, conheci este blogue através do site dele. Inclusive, passei a receber muitas novas visitas no meu blog também depois que passei a frequentar.

Quando puder, visite minha página. Hoje mesmo escrevi sobre "A libertação dos homens peixes".

Abraços.

Eduardo Medeiros disse...

levi, excelente ensaio. também no apocalipse há a menção das "bodas do cordeiro" que também é um banquete escatológico.

refeições rituais estão, como você bem apontou, em várias tradições religiosas e a psicanálise faz uma abordagem muito interessante sobre elas.

aprendi mais um pouco.

estou um pouco ausente na expectativa do nascimento do eduardinho. na última consulta a médica disse que está tudo indo bem e ele está fazendo o trabalho de abrir passagem direitinho...rss

abraços

Guiomar Barba disse...

Levi amigão,

Vamos passar natal na Bolívia e pretendemos voltar dia 29 e irmos virar o ano em Recife, aonde queremos passar ótimas férias.

Desejo para você e sua família um dia de natal cheio da alegria e da plenitude do menino que se fez homem e vive para sempre.

Vou sentir saudades, não sei se terei tempo de visitar os blogs, as férias prometem ser agitadas. kkkkkkkkkkk Beijão.

Levi B. Santos disse...

EDUARDO, meu amigo e futuro pai


Parece que você é mesmo o Homem dos números. Inconscientemente, estás desejando que teu filho nasça no Natal.
Já estava ou não escrito nas estrelas? (rsrs)


RODRIGO

Vou passar no teu blog, agora mesmo. Conferirei o texto dos “pescadores de homens”, e deixarei um comentário registrado lá.


GUIOMAR

Desejo-lhe também um feliz Natal, lá nas terras do Evo Morales. Volte logo, para continuar encaminhando e doutrinando essa cambada de hereges nos caminhos do Senhor. (rsrs)

Anônimo disse...

Levi,

Ninguém melhor que você para fazer uma "viagem" mítica/religiosa nos conceitos do totemismo apresentado por Freud.

Tem um detalhe que é crucial, nos povos "realmente" primitivos (digo realmente porque não estou me referindo ao cristãos, porque mesmo hoje são primitivos), voltando... nos povos primitivos, eles comiam a carne de seus líderes de verdade, acreditando estar tomando o poder do líder para sim, comiam e bebiam.

No cristianismo, isso é só simbólico.

Seria legal se eles tivessem comido o tal de Jesus de verdade lá na cruz, acho que assim não surgiriam dúvidas sobre sua ressurreição.

Imagina também hoje, os pastores sendo comidos pelos membros das igrejas?

Acho que não deveria ter escrito isso, vai que a idéia cola?

Primitivos os cristãos são de verdade, só falta devorarem-se mutuamente a si mesmos em conjunto (redundâncias propositais, huahauah).

Abraços e tenha uma ótima ceia de natal. Detalhe, sacrificarei um peru, e, juntamente com a família comeremos sua carne e seu sangue.

Evaldo Wolkers.

J.Lima disse...

Magnífico ensaio Levi.
Sem dúvida a ceia é um ato simbólico de extrema importância.
O que acho interessante é que esse ato de "comer da divindade" não é algo novo, remonta a arquétipos longínquos da humanidade. Os cristãos tem sua fé estruturada no inconsciente coletivo da humanidade embora cada um considere unica a sua expressão. Contudo outros povos já expressavam essa transcendência da mesma maneira.
Excelente ensaio