Diz a História que o calendário romano tinha 175 feriados. Era por ocasião desses dias especiais que as multidões do meio cultural Greco-Romano dirigiam-se ávidas de sangue ao grande anfiteatro romano – o Coliseu —, onde numa arena real se entretinham com os violentos espetáculos patrocinados pelos imperadores de Roma. Era uma maneira de provocar catarse na populaça, além de desviar a sua atenção dos reais e sérios problemas da polis.
Dando um pulo na História e olhando para o Brasil de hoje, veremos que as ressonâncias das carnificinas romanas ainda reverberam, não mais em anfiteatros públicos, mas dentro de nossas próprias casas, nos horários ditos “nobres”, em que as famílias encontram-se reunidas após o almoço ou após o jantar a frente da telinha (ou telona) de TV.
Quem não se lembra do mórbido espetáculo trnasmitido ao vivo pela televisão — a tragédia de Santo André —, o desfecho, passo a passo, de um crime passional. Lindemberg, tortura e mata a namorada – Eloá, numa transmissão pormenorizada do ponto de vista tecnológico, faturado nos mínimos detalhes pela imprensa televisiva. Poucos foram os que atentaram para as raras manchetes que saíram dizendo a verdade, após o encerramento da sessão macabra desse espetáculo em horário nobre: “a mídia exacerbou a psicopatia e a megalomania que estavam em jogo”.
Antes de praticar o crime, e sabendo da existência do grande aparato tecnológico na transmissão televisiva, Lindemberg, resolveu sair de sua impotência, criando uma autoimagem megalomaníaca para a mídia, ao dizer: “eu sou o cara!”, o que em miúdos, quer dizer: “eu sou o príncipe do gueto, o personagem principal da teatralização”. O ato tresloucado em Santo André, guiado pelos imperadores do coliseu televisivo prendeu a atenção de milhões de telespectadores.
Na verdade, o Coliseu televisivo sempre alcança uma audiência extraordinária em nossos lares, por que cada um de nós é, inconscientemente, um torcedor desse tipo de entretenimento.
Em sua obra, “O Mal Estar na Civilização”, Freud, fez uma emblemática observação que corrobora com tudo que escrevi até agora. Senão vejamos:
“A verdade é que o homem não é uma criatura terna e necessitada de afeto, mas um ser entre cujas disposições deve-se contar uma boa dose de agressividade. Por isso, o próximo não representa para ele somente um colaborador e um objeto sexual, mas também uma ocasião para satisfazer a sua agressividade, para explorar a sua capacidade de trabalho sem a retribuir, para se aproveitar dele sem o seu consentimento, apoderar-se dos seus bens, martirizá-lo e matá-lo”.
Se a força e a violência são dimensões constitutivas das relações humanas; se os heróis e artistas não reconhecem o paradoxo de que também são bandidos e vilões, como definir no grande coliseu em que estamos inseridos, os limites seguros para a reprodução da ordem social de respeito e paz entre os seres humanos?
Na genial tragédia descrita por Sófocles, Édipo, sem saber (ou sem querer), mata o pai e casa-se com a mãe. Na arena do “nosso coliseu” agimos, inconscientemente, vivenciando a contradição dos nossos afetos internos ao nos identificar com os personagens opostos dos trágicos espetáculos midiáticos. Na imagem do bandido preso ou morto ficam satisfeitos os nossos desejos de vingança; sobre as heroínas e os heróis sacrificados ficam as projeções do nosso choro e da nossa compaixão.
E assim, cotidianamente, esse cenário do coliseu de nosso horário nobre vem nos delineando com traços macabros e cruéis, que transformam o corpo do outro em um fetiche para a realização do festival canibalístico das nossas individualidades.
Freud explica...
Por Levi B. Santos
Guarabira, 26 de agosto de 2011
Site da imagem 1: vidanet.org.br
Site da imagem 2: revistanaweb.blogspot.com
8 comentários:
levi, é duro reconhecer o fascínio que tais espetáculos têm sobre nós. mas no exemplo que você deu, onde eloá acabou sendo morta, todos nós na verdade não estávamos torcendo para que o mal não fosse feito?
nossa ansiedade não era provocada pela espera que aquele cenário tivesse um final não trágico?
ou na verdade, inconscientemente, estávamos apenas fazendo parte do coliseu?
mas no coliseu havia a figura do bem e do mal? dois gladiadores, praticamente escravos, obrigados a lutarem até a morte?
a ânsia dos romanos era puramente por sangue e violência e a nossa não seria por justiça e que o bem vencesse?
mesmo sabendo que nesse o conceito de mal e bem não sejam completamente nítidos e claros?
podemos afirmar com toda segurança que o lindeberg não mataria eloá se a mídia não estivesse presente?
bem, meu amigo, eu não respondi nada, como você percebeu, só perguntei...rssss
“...todos nós na verdade não estávamos torcendo para que o mal não fosse feito?”
Exatamente, Edu, torcemos como os romanos torciam pelos gladiadores contra os leões na arena do antigo coliseu.
Mas veja o que acontece (nesse caso) em níveis mais profundos da psique:
Identificamos o nosso “lado bom” naquele(a) que exibe as qualidades que amamos em nós. Por outro lado, inconscientemente, projetamos em Linbemberg (o outro) a parte de nós que repudiamos e deve ser dominada ou em último caso destruída.
O perigo ocorre quando a parte má é cindida de nós.
O termo vou desenrolar dito por Lindemberg, segundos antes do ato brutal já revela que ele decidira(insanamente) separar-se de sua parte “má” depositada na ex-namorada.
Entendo, que na tragédia de Santo André, o espetáculo transmitido pelas TVs de forma atabalhoada para todo o mundo reforçou na mente do psicopata a sua fantasia de por alguns instantes ser uma celebridade nacional em horário nobre (rsrs)
Agostinho também explica, risos. E melhor. Comemos a pêra do quintal alheio quando o nosso transborda em um pomar perfeito. Fazemos pelo prazer da maldade.
Grande Danilo
Quanta verdade está contida em sua observação.
Quanto se tem pêra a vontade em casa, e se rouba a pêra do quintal alheio, o intuito não é o de matar a fome, e sim o de dar vazão ao instinto de destruição do outro.
Muitos bem alimentados, para descarregar a sua agressividade e seus recalques, saem com capa de famintos pelo mundo afora destruindo plantações, até com aval de partidos políticos.
(ops, será que me excedi?! – rsrs)
Abraços,
Caro Levi.
Infelizmente, é próprio da natureza humana, que diante de tais fatos, ficar na expectativa e até torcer para que o pior aconteça. não que tenhamos simpatia pelos leões, mas parece que se o fato não terminar em tragédia, não tem graça. E pior, quanto maior for a tragédia melhor. a pergunta que faço é: Seria isso um certo grau de psicopatia comum nas pessoas? Porque temos que fazer um esforço tão grande para conscientemente tirar da nossa cabeça este tipo de sentimento? Levi, para se ter uma ideia, enquanto escrevo estas linhas, assisto a imprensa noticiando com "pesar" o rebaixamento de categoria do furacão Irene nos EUA. Só 12 mortos é muito pouco... vejo certa dose de frustração no ar... Ou seja, a tragédia não ganhou a magnitude desejada!!! Agora,em que nível será da psiquê humana está alojado tão brutal desejo?
Um abraço.
“Só 12 mortos é muito pouco... vejo certa dose de frustração no ar... Ou seja, a tragédia não ganhou a magnitude desejada!!! Agora,em que nível será da psiquê humana está alojado tão brutal desejo?” [Donizete]
Você falou com muita propriedade. Somos preparados para um espetáculo anunciado em grande escala, e quando a magnitude não é aquela esperada, fica no ar uma dose de frustração, que por ser inconsciente, nem notamos. Aí dizemos, sem a mínima parcimônia: “ah, muda de canal, era só uma pegadinha para nos fazer de bobo”
“Numa sociedade em que a violência está banalizada, ou não é identificada como sintoma de patologia social, corre-se o risco de a transformar num valor social válido, a ser incorporado. Isso pode gerar condições para que a violência física e moral se transforme num elemento de afirmação do jovem” — afirma o psicanalista, José Otávio Fagundes
Você falou em que nível da psique humana se guarda tão brutal desejo?
Só pode ser no velho porão denominado “inconsciente”, onde se escondem reprimidos crimes não ditos e desejos inconfessáveis (inclusive o prazer decorrente de serem eles e não nós as vítimas dos espetáculos trágicos).
Em nosso nome lá está o Datena, descarregando toda a sua agressividade interna contra juízes, políticos, governadores, e outras autoridades.
Tudo em nome da platéia que saboreia pipocas no sangrento horário nobre, como se estivesse num cinema.
Levi,
Belo texto, é bem por aí mesmo que está a luta da atualidade.
Soube até que o Pr. Silas Malafaia ficou arrasado quando perdeu a disputa de apresentar o seu ministério na tv de madrugada para o Pr. Valdomiro Santiago.
Silas disse mais ou menos assim: "Isso mostra da onde ele veio".
São ludas de verdadeiros gradiadores, dentro de um "coliseu" que hoje é visto por milhares de milhões.
Abraços amigão
Prezado Levi,
E o que dizer das projeçoes, do ódio desse ou daquele personagem, e que na verdade nada mais é do que o ódio de si mesmo, das suas anomalias morais, perversidades ocultas que por nao poder ser satisfeitas, extravazam na forma de censura?
Ah... a alma humana está perdida, meu amigo. Só mesmo a gratuidade de Deus pode nos salvar de nós mesmos!
Grande abraço,
Leonardo.
PS: Meu irmao, já faz uns cinco meses que o Púlpito Cristao mudou de endereço. Estamos no www.pulpitocristao.com e no www.pulpitocristao.com.br. No entanto, vejo que o link que aparece na coluna do seu blog remete ao endereço antigo, no blogspot. Se achar necessário e quiser ter as atualizaçoes do PC no seu blog, basta mudar o link lá...
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