23 janeiro 2012

Acolhendo o 'Caim e o Abel' Interior






Caim é aquele arquétipo que temos em nosso interior ou psique que nos faz não se sentir aceito. 
Por que Caim não suportava Abel? 
Porque Abel fazia aquilo que Caim não conseguia executar. Um era a tese e outro a antítese, símbolos de nossa contradição interna ou de nossa ambivalência.

O mito de Caim e Abel revela, acima de tudo, que esses dois irmãos representam os pólos afetivos e antagônicos da alma humana. A imagem iluminada de Abel fazia sombra em Caim. Caim só tinha um caminho: acolher a sombra de Abel refletida no espelho de sua alma. Mas no seu entender precisava culpar alguém para se livrar da incômoda sombra. Ao invés de aceitá-la e fazer dela uma síntese, planejou destruí-la sem saber que dessa forma estava cavando seu próprio fim, o suicídio. Já dizia o ensaísta francês, Maurice Blanchot: “quem encontra o OUTRO (o diferente) apenas pode-se dirigir a ele pela violência mortal, ou pelo dom da palavra em seu acolhimento”.

Para se compreender a origem do nosso conflito com o outro, o diferente, temos que recorrer à 'imago paterna', ou o nosso superego. A Paz ou a reconciliação e convivência entre nossos afetos antagônicos só podem ser intermediadas por um pai bondoso e acolhedor que aproveita o material de que é composto cada lado para realizar sua síntese. Sobre esse aspecto, já dizia o poeta Fernando Pessoa: “A Terra é feita de Céu”

O pai autoritário e guerreiro que não aceita a diferença entre os filhos, vai naturalmente incentivar a intolerância e o ódio (aqui, figurados nos dois irmãos da parábola), ativando o instinto de destruição de um sobre o outro, com seu corolário posterior de culpa e remorso.

Por falar em culpa e remorso, não poderia deixar de ressaltar um conto emblemático do escritor e poeta Jorge Luiz Borges, no qual, ele faz realçar a reconciliação dos nossos pólos paradoxais. A figura do perdão — resultado da reintegração entre os dois irmãos que se sentam à mesa, aceitando, cada um, os seus caracteres subjetivos particulares ―, é bem explorada nesta expressiva lenda:

Abel e Caim se encontram depois da morte. Caminhavam pelo deserto, e se reconheceram de longe porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram na terra, fizeram um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira de pessoa cansada quando finda o dia. No céu surgia alguma estrela que não tinha recebido o seu nome. À luz das chamas, Caim advertiu na frente de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que ia levar à boca, e pediu que fosse perdoado o seu crime.
Abel responde:
― Você me matou ou eu matei você? Já não me lembro, estamos juntos como antes.
― Agora sei que na verdade perdoou ― disse Caim, porque esquecer é perdoar. Eu tratarei de esquecer.
Abel disse devagar:
― Assim é. Enquanto dura o remorso, dura a culpa.

Freud dizia:quer ser menos cobrado? Assimile em sua psique um pai amoroso e mais compassivo, um superego mais conciliador”. O rei bíblico, Davi (Salmo 23)sentiu a presença de um Pai conciliando as forças que se debatiam em seu interior, representadas pela figura de uma mesa com o melhor dos manjares e o melhor dos vinhos. O poeta bíblico, enfim, apaziguou as forças do seu conflito interior,   O campo para destruição do lado oponente deu lugar a uma mesa farta para ele cear com seus “inimigos”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 22 de janeiro de 2012
Site da imagem: martydonnellan.wordpress.com

6 comentários:

Mariani Lima disse...

Levi, obrigada pelo envio do link.
Não sei se isso é ensinado ou se acontece naturalmente, mas as pessoas parecem em uma leitura mais simples considerar caim como o outro e Abel como a si mesmo. Reconhecer que ambos vivem em nós é mais elaborado, não é?
Abraços!Fica com Deus!

guiomar barba disse...

Levi, príncipe de paz! rsrs O problema é que as vezes Caim gosta de ser Caim e acha monótono ser Abel...

Um dia um rapaz me disse: eu não gostava quando as coisas estavam tranquilas, tudo bem, tudo bem. Eu fazia tudo virar mal, ficar escuro. Ele até que arranjou uma forma de fazer o mal diferente, menos visível, mas matou Abel da mesma forma.

As vezes é necessário um pai que nos diga: O mal está à tua porta, a ti cumpre dominá-lo.

Beijo.

Levi B. Santos disse...

Mariani

Lembra-se dos filmes de faroeste?

Pois é, no meu tempo de menino, quando íamos brincar de faroeste, perguntávamos: quem vai ser o bandido?
Não aparecia um. Todos queriam ser os artistas. (rsrs)

Levi B. Santos disse...

Guiomar

A réplica desse seu comentário, está lá na "Confraria Logos e Mithos", num comentário que fiz ao texto "FUNDAMENTALISMO" do Doni, cujo final termina assim:

A luta inglória do crente fundamentalista é querer expulsar um desses lados, sem entender que o nosso Caim depende do Abel, e vice versa. A vitória ou a derrota de um deles é a nossa morte". (rsrs)

Abraços,

Eduardo Medeiros disse...

"― Você me matou ou eu matei você? Já não me lembro, estamos juntos como antes."

quem matou quem? Caim matou Abel ou foi morto por tê-lo matado? Caim foi banido pois perdeu sua metade, seu contraponto. Tornou-se errante e o pai dos "ferreiros"(caim em hebraico, pode ser traduzido por ferreiro); para forjar a espada, o ferro precisa ser batido, batido, batido, caim, caim, caim...

Quantas metáforas podemos tirar dessa dupla inseparável e que precisam se reconciliar.

já tô ficando craque em psicanálise por sua causa...rsss

Levi B. Santos disse...

Bem, Edu, este mito se presta a inúmeras análises psicológicas.

Esta sua hábil construção psicanalítica mostra que você é um bom entendedor dos meandros da alma humana. (rsrs)

No Caim errante, temos o protótipo do humano, que ERRANTE no seu caminhar, está condenado a ser estrangeiro de si mesmo. Condenando a ver no outro a sua parte indissociável que ele uma vez quis expulsar. A única solução é carregar a marca da impossibilidade de ser o outro.

CAIM, no seu caminhar errante, como o do judeu, agora, não terá mais terra, para que aprenda a respeitar o diferente que lhe oferecerá guarida.

Aprenderá que nunca poderá oprimir o estrangeiro, pois, está sentenciado a ver a sua estranheza em cada uma das pessoas que encontrar pela frente. O “CAIM” terá de acolher o “ABEL” que tentou um dia destruir, ao perceber que existe um EU e um TU igualmente pessoais, mas distintos em suas subjetividades.

O mito de Caim e Abel, hoje, bem que poderia ser traduzido como: a parábola da ALTERIDADE