25 outubro 2012

O Retrato e Seu Negativo



Era assim no tempo de minha meninice: quando necessitávamos de fotos três por quatro para serem postas em documentos, recorríamos aos fotógrafos das praças da cidade, conhecidos vulgarmente como “os lambe-lambes”.

As máquinas fotográficas eram enormes caixotes artesanais sustentados por um tripé, tendo, em uma de suas extremidades, uma espécie de pano vermelho semelhante a um fole de sanfona por onde o fotógrafo enfiava a cabeça para captar a nossa imagem.

 Após o filme ser mergulhado em produtos químicos, como o nitrato de prata, obtinha-se a imagem em negativo em que aparecíamos irreconhecíveis como fantasmas. Mais tarde (cerca de uma ou duas horas) os filmes eram enfim passados para um brilhoso papel-cartolina — com a nossa imagem real em preto e branco.

 Os negativos das fotos nos eram entregues junto com o seu positivo (os retratos). Nunca usávamos os negativos (o não revelado) das fotos, com nossas faces monstruosamente feias, para confeccionar novas fotos. Mas não sei por que teimávamos em guardá-los.

 A história do negativo e do positivo da foto me fez viajar.  Olhando bem, nós — os humanos — temos dois corpos: um para ser mostrado — o público, e outro, que guardamos só para nós — o privado. Um corpo “revelado” que, cotidianamente exibimos às pessoas do nosso convívio, e outro horroroso e “particular”, escondido num baú velho de nossa psique.

Assim como antigamente, ainda vestimos a nossa melhor roupa a fim de posar para as fotos. Hoje, quase não percebemos, mas o negativo das fotos que tiramos, com seu aspecto fantasmagórico, fica retido ou escondido em algum recato de nossa mente, a rir da nossa representação; a rir da nossa indumentária perfeccionista no positivo da foto.

Às vezes, os espectros ou “sombras” dos negativos guardados se movem querendo ganhar poder. É perigoso deixá-las se expandirem. Jogá-las fora, não seria a solução, pois incorreríamos na perturbação do eco-sistema que nos dá equilíbrio e nos mantém de pé. Por mais que desejemos escondê-las, como fazemos com o nosso “nu”, continuarão a existir, cobertas pela roupagem social.

Quem sabe se o “mal estar” da pós-modernidade não seja fruto de ressonâncias de algo negativo por nós guardado que, como um corpo privado, se agita por trás do positivo tão cuidadosamente vestido?

Verdade, é que nas fotos modernas, os atributos de nossas funções públicas continuam a ser mais importantes do que os traços feios de nossa porção negativa — àquela fantasmagórica que não queremos rever nem mostrar, apenas tê-las conosco. Para que torná-las públicas, se os outros não vão reconhecê-las como nossas?

Um retrato que apresenta só o positivo, aos meus olhos é coisa ruim. Não é bom esquecer de que para formatar o positivo nasceu primeiro o negativo. Talvez esteja aí a razão pela qual desconfio do sujeito que quer por que quer convencer-me de que o seu corpo que sai nas fotos é inteiramente público e privado.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 25 de outubro de 2012


4 comentários:

Marcio Alves disse...

Mestre, mas isto nao poderia ser considerado como um "mal necessario", uma questao muito mais de sobrevivencia social do que covardia e negacao, embora tambem o seja?

Como ja dizia Nelson Rodrigues que se nos conhecessemos a vida sexual intima de cada um, agente nem se comprimentariamos. rsrsr

Abracos

P.s: desculpe pela fata de acentuos, e que estou escrevendo com um teclado que e bem diferente do meu. rsrsrs

Levi B. Santos disse...

Márcio


Você em suas aulas na faculdade já deve ter ouvido muito essa cantiga, que aqui no ensaio eu pontuei como o negativo - simbolizando as nossas sombras de contornos definidos por um molde impresso em nossa infância.

Quem disse que esse lado negativo foi apagado?

Este ser fantasmagórico, como escrevi no ensaio, foi construído com o material dos nossos medos, complexos, e “feiuras”. Ele continua a habitar em um porão obscuro de nossa psique, emitindo de vez em quando suas ressonâncias.

"Retraímo-nos diante das sombras cavernosas em nós plantadas.
Numa fragilidade angustiante,
Buscamos impedir que se espalhe, aquilo que nos foi dado para manter guardado.
Como consolo banhamo-nos no mar das hábeis argumentações.
Assim é a vida – essa dança muda de palavras vãs".
(Levi)

Esdras Gregório disse...

Mas Levi se antes não se usava o negativo pela sua deformação, pelo lado obscuro ou abstrato o que você diria da arte moderna em pintar o feio e exagero o deforme o oculto? o negatico também se tornou publico como arte do feio do oposto, não achas? Assim também hoje expor nossas vidas e sua visceralidade nua e crua sem mascaras acredita ser possível hoje como um meio de arte do indiscreto do indiferente que não se importa com seu nu cru feio e desagradável ao modo social mais que vê nisso tudo uma forma de personalidade própria de destaque de relevo social de contraponto de desforra com o tradicional, hoje o feio é arte ate mesmo o nosso mais profundo inteiro pecaminosa se tornou um trunfo pessoal a ser mostrar ou pelo menos a não se esconder.

Levi B. Santos disse...

Esdras


A civilização nos condicionou a temer o lado obscuro (o negativo do retrato).

No que tange ao que você falou sobre a “arte moderna”, como resgate do feio ou do negativo, Freud dizia que “quem cultiva as artes já tem o seu deus”.

Com certa razão ele fez esse enunciado, pois, o artista em suas obras é aquele que sublima os seus medos, seus complexos e sua “feiúra”; é aquele que faz dos seus monstros internos, uma fonte de prazer ― uma diversão.

O artista pinta o que imagina para se fundir com a imagem projetada na tela. Ele, de certa forma, está sendo consolado, igual ao religioso. O seu “trunfo pessoal” , como a coroa de glória” do crente, tem os mesmos fundamentos narcísicos. (rsrs)