Segundo
a mitologia grega o personagem Narciso morreu afogado ao se
extasiar, por longos momentos, com a bela imagem do seu rosto, refletida na
água.
O
rosto realmente é um território nômade. É como uma paisagem que durante o dia
se nos apresenta com todo o seu brilho, até que as sombras da noite tornem-na
invisível ou opaca. A imagem do rosto vai mudando como muda a estação verde do
inverno para seca causticante, desértica e feia do sertão. O rosto
vai murchando, como a erva no campo até que numa noite última ele não mais se
modifique, ficando estático.
O
que me induziu a escrever sobre o rosto, sobre a fisionomia, foi um fato inusitado que aconteceu comigo há três semanas:
Fui convocado para apresentar documentos para
retirada de uma pequena diferença salarial em um banco da Capital do Estado –
João Pessoa. Ao fornecer a minha carteira de identidade, o gerente de maneira
repentina e espontânea, perguntou-me: “Quem é esse? Esse não é você!
A
carteira de identidade era datada de 1973, cuja foto, realmente, nada tinha a
ver com o rosto que estava diante do funcionário do banco que me atendia. Explicou-me,
então, que a Carteira de Identidade (o RG) só tem validade durante dez anos.
Perguntei-lhe: “A foto do documento é minha quando era mais moço; vou ficar sem
receber o que me é devido, só por causa da foto ser antiga?
“Não
senhor! ― tem uma solução” ―, respondeu-me o
sub-gerente: Mostre-me a sua carteira de motorista (que só é válida por cinco
anos). Foi como me safei, porque neste documento estavam impressas as marcas do
tempo, que transformaram o rosto de outrora no que ele é hoje.
Ali
mesmo, veio a minha lembrança o que tinha lido do filósofo, Gilles
Deleuze. Ele dizia: “O rosto é mistério, é metamorfose a cada
instante”.
Esse filósofo da pós-modernidade chamava o rosto
de “extrato”, que através dos anos vai criando multiplicidade,
criando buracos e reentrâncias que levam a novas configurações, e está em
movimento contínuo para o devir perpétuo.
Interessante,
é que o cérebro está contido na cabeça do sujeito, mas o que vale nessas
ocasiões é a exterioridade, é o rosto. O cérebro de um homem de mais de
sessenta anos pode estar brilhantemente perfeito, pode ainda estar exalando os
perfumes das flores da primavera, mas nada disso vale, se há deserto no rosto.
Agora eu sei que as rugas, que
expressam a cartografia existencial percorrida desde a infância, devem ficar
estática em um papel a cada dez anos, para confirmar que sou eu o dono do
documento; isto, se a mudança fisionômica nesse período de tempo não for muito
severa.
No
instante em que o gerente olhava o meu RG antigo e a carteira de motorista
nova, tive a ligeira impressão de que ele estava a dizer: “aqui tem dois estrangeiros”:
um, com todo seu vigor e outro cheio de linhas de fuga caminhando para o fim.
Refletindo
bem, agora entendo o “porquê” das clínicas estéticas e de cirurgias plásticas
estarem com suas agendas abarrotadas. Rostos e corpos anoréxicos fazem a tendência
atual. Talvez, um dia, quem sabe, o Congresso Brasileiro apresente um decreto
fazendo constar que a carteira de identidade seja eterna enquanto durem os
efeitos das aplicações de botox e reanimações estéticas promovidas por mãos
hábeis de cirurgiões nos rostos dos indivíduos.
Mas além dos meandros misteriosos da "rostidade" que se acumulam com o tempo, aos 66 anos de idade, algo me consola, como
escrever um poema, uma crônica ou prosa, pintar um quadro, tocar uma modinha
antiga, me reunir com a família, brincar com as netas e contar histórias dos
tempos da inocência.
O importante, como diz o manual da terceira
idade, é nunca perder o senso de humor, especialmente sobre si mesmo.
“O doutor agora está
colhendo os louros da tranqüilidade!” ― assim despediu-se o
subgerente, quando me dirigia para fora do recinto do Banco.
Depois,
fiquei a perguntar aos meus botões: “será que o chefe do setor de pagamentos iria
acreditar que nos anos de chumbo, a cada quinze dias, dava plantão de 72 horas
em um Hospital. Entrava na sexta feira às sete horas da manhã e saía às sete da
manhã da segunda-feira, com direito a cinco horas de folga, para pegar no
batente com doze horas diárias de trabalho até o próximo final de semana? A minha
folga se resumia a dois sábados e dois domingos por mês”.
Adeus, anos velhos...
Por
Levi B. Santos