Um
lúcido e desconcertante artigo publicado pelo psicanalista, escritor e ensaísta
Luiz
Felipe Pondé, ferrenho crítico do que se convencionou hoje como o “Politicamente
Correto”, despertou sobremodo a minha atenção. Nesta segunda feira (dia 27), em
sua coluna semanal da Folha de São Paulo, seu ensaio explorou de maneira
simples, profunda e cortante, a tal da “ambivalência”
― tema que Freud passou a sua vida remoendo ―, sem nunca deixar de ligar a
sua origem aos primeiros sentimentos paradoxais dos filhos com relação ao pai,
e vice versa.
O
artigo mostra o quanto é doloroso e praticamente impossível ganhar a guerra
contra a ambivalência. Ganhar essa batalha significaria excluir os conflitos de
nossa existência, ganhá-la seria negar, o óbvio: a bipolaridade de nossos
afetos (de um lado, o que somos, e do outro: o que pensamos que somos)
O
alicerce de nossa cultura está firmemente arraigado à ambigüidade, isto é, ao
desejo de manter a normatividade vigente e, ao mesmo tempo, desejar a sua desconstrução.
Há quem veja na ambivalência, as
atitudes covardes e heróicas do homem.
Sobre
esse intrigante tema que, intrinsecamente, fala a respeito de nós mesmos, convido
o leitor(a) amigo(a) a conferir o significante ensaio de Pondé, replicado aqui, com
os devidos créditos. Espero que leiam bem devagar, como quem está degustando uma
boa comida. (rsrs):
(Por Luiz Felipe Pondé)
Você esconderia
Judeus em sua casa durante a França ocupada pelos
nazistas? Não, não precisa responde em voz alta.
Melhor
assim, para não passarmos a vergonha de ouvirmos nossas mentiras quando na
realidade a janta, o bom emprego e a normalidade do cotidiano sempre valeram
mais do que qualquer vida humana. Passado o terror todos nós viramos corajosos
e éticos.
Anos
atrás, enquanto eu esperava um trem da estação de Lille, na França, para voltar
para Paris, onde morava na época ― ainda bem que tinha minha família comigo
porque paris é uma cidade hostil ―, li a resenha de um livro inesquecível na
revista “Nouvel Observateur”.
Nunca
li esse livro, mas a resenha era promissora. Entrevistas com filhos e filhas de
pessoas que esconderam judeus em casa durante a Segunda Guerra davam
depoimentos de como se sentiram quando crianças diante de atos de coragem de
seus pais e suas mães.
A
verdade é que essas crianças detestavam o ato de bravura de seus pais. Sentiam
(com razão?) que não eram amados pelos pais, que preferiam por em risco a vida
deles a protegê-los, recusando-se a obedecer a ordem: quem salvar judeus morre
com eles.
Podemos
“desculpar” as crianças dizendo que eram crianças. Nem tanto. Adolescentes
sentiam o mesmo abandono por parte dos pais corajosos. Cônjuges idem. Está
justificada a covardia em nome do amor familiar? Nem tanto, mas deve-se
escolher um estranho em detrimento de um filho assustado?
Tampouco
dizer que os covardes seriam vítimas vale, porque o que caracteriza a coragem é
não se fazer de vítima – coisa hoje na moda, isto é, se fazer de vítima. Não foi muito diferente
aqui no Brasil durante a ditadura, guardando-se, claro, as dimensões do massacre.
No entanto, não me interessa hoje essa questão
da falsa ética quando o risco já passou – a moral de bravatas. Mas
sim a ambivalência insuportável que uma
situação como essa se desvela, na sua forma mais aguda.
Ou meu pai me ama ou ama o judeu escondido em
minha casa, ou ele me ama, mas não consegue dormir com a idéia de que não salvou
alguém que considerava vítima de uma injustiça, e por isso me põe em risco. Eis
a razão mais comum dada por esses pais, quando indagados de pôr em risco sua
vida e família: “Não conseguia fazer diferente”. Mas a ambivalência da vida não se resume a casos agudos como esses.
Freud descreveu os sentimentos
ambivalentes da criança para com o pai, no Complexo de Édipo: amo meu pai, mas
também quero me livrar dele.
Independente de crer ou não em Freud plenamente (sou
bastante freudiano no modo de ver o mundo, e Freud foi primeiro objeto de estudo sistemático em minha vida), a ambivalência aí descrita serve como matriz para o resto da vida.
Os pais amam os filhos (nem sempre), mas ao
mesmo tempo ter filhos limita a vida num tanto de coisas (e hoje em dia muita
mulher deixa de ser mãe aos 40 por conta deste medo, o que é péssimo porque a
mulher biologicamente deve ser mãe antes dos 35). Apesar dos gastos intermináveis,
no horizonte jaz o possível abandono na velhice por parte destes mesmos filhos “tão”
amados.
Mas, ao mesmo tempo, não ter filhos pode ser
uma chance enorme para você envelhecer como um adulto infantil que tem toda sua
vida ao redor de suas pequenas misérias narcísicas.
Casamento é a melhor forma de deixar de querer
transar com alguém devido ao esmagamento do desejo pela lista infinita de
obrigações que assolam homens e mulheres, dissolvendo a libido nos cálculos da
previdência privada.
Mas, ao mesmo tempo, a liberdade deliciosa de
transar com quem quiser (ficar solteiro), com o tempo, facilmente fará de você
uma paquita velha ridícula sozinha que confunde pagar por sexo com um homem
mais jovem com emancipação feminina. E, no caso do homem, o tiozão babão
espreita a porta.
E, também, terá razão quem disser que mesmo
casando você poderá vir a ser uma paquita velha ou um tiozão babão.
Quantas ambivalências espera você nessa semana?
P.S.:
É mordaz e irônico esse Pondé. Ele nada contra a “maré”, e não está nem um
pouco preocupado com o fato de desagradar a maioria.
7 comentários:
Levi é fácil acabar com a ambivalência em nós. é só reparar bem a miséria da nossa politica incorreta. Ai passamos a adorar, ter tesão mesmo, pelo politicamente correto.
Esse Pondé tá dramatizando muito. O politicamento correto é o culto aquela vidinha mais ou menos de boa. Não tem nada haver com os tempos de genocídios e guerras. O cara tá falando de algo que ele não sabe o que foi realmente.
Na verdade, Gabriel, psicologicamente falando, não podemos internamente fugir dessa matriz tensional: a do politicamente correto – sucedâneo das ordens paternas que éramos obrigados a obedecer, e a do politicamente incorreto - sucedâneo do nosso inconformismo com regras,normas e dogmas fixos provindas de uma autoridade (rsrs)
Foi na minha infância, que a ambivalência ou a ambiguidade dos afetos, começaram a fazer parte intrínseca de minha relação conturbada com meu pai(autoridade paterna). Às vezes encontrava abrigo na relação com ele, outras vezes sentia o peso de sua hostilidade como um abismo a me querer tragar. (rsrs)
Acredito que nesse ponto o Pondé foi certeiro, ao se reportar aos conceitos freudianos, no trecho abaixo:
”Freud descreveu os sentimentos ambivalentes da criança para com o pai, no Complexo de Édipo: amo meu pai, mas também quero me livrar dele.”
Muito bom o texto do Pondé(aliás, como quase tudo que ele escreve). Não dá mesmo pra fugir dessa ambivalência que ele cita e que o Levi destacou no comentário. Talvez o mandamento bíblico de "deixar pai e mãe" ao se casar, seja um reflexo pré-freudiano da questão.
Mas o que me deixou mesmo pensando foi a questão dos judeus. Fiquei a imaginar se eu esconderia judeus na França ocupada pelo nazismo.
Sinto em mim essas duas emoções conflitarem: o desejo de salvar um judeu da barbárie e o medo de colocar minha família em risco. Eu com quase certeza, escolheria proteger os meus. O que isso faz de mim? um covarde? um desumano?
Na verdade Edu, penso que o que faria de você um desumano seria escolher um ideal, uma obrigação moral, em detrimento da sua própria família...o natural, o "humano" é sempre escolhermos pelos nossos que é uma extensão de nós...mas como existem pais que nem sempre ame os filhos há quem prefira salvar (amar) um estranho...em fim o desumano também faz parte do humano.
abraços
Dizer o que Pondé disse, e você corroborou, Edu, eu também o faço ― naquilo que popularmente ficou consagrado: “Mateus, primeiro os teus” (rsrs)
Quanto ao que você afirmou: ”eu protegeria os meus com o medo de colocar a família em risco” , entendo, ser esse um desejo muito mais forte que o da compaixão pelo estranho, porque aí está incluído o desejo que o pai tem de prolongar a sua própria vida através da vida do filho.
Ao recusar dar abrigo a um estranho em nossa casa, em benefício dos nosso filhos evidencia, que gostamos mesmo é da semelhança, apesar de sabermos que dentro de nossa ambivalência, a não aceitação ou integração daquele afeto que nos é inconveniente por provocar desprazer, é responsável pelas diversas formas de intolerância contra o outro.
Ou não?
Polêmico esse cara! (rsrsrs)
De fato, em mutas de nossas decisões há desejos ocultados, coisas recebidas em troca que não desejamos que os demais saibam.
O autor parece ter começado bem na teorização, mas, quando desce aos exemplos, entorna o caldo. Mas isto é típico dos polêmicos. (rsrsrs)
De qualquer modo, ele nos provoca com alguns dilemas:
"Está justificada a covardia em nome do amor familiar? Nem tanto, mas deve-se escolher um estranho em detrimento de um filho assustado?"
Será tão complicado assim? Penso que será até educativo para os filhos esconder em sua alguém perseguido por um governo autoritário. Se eu fosse pai de família e vivesse durante a França colaboracionista, mediria os riscos de esconder um judeu ou um opositor do Régime de Vichy. Não me deixaria levar por um herísmo infantil e ponderaria sobre o bem estar de meus filhos. Mas levaria em conta que uma total omissão seria péssimo para a formação das crianças. O mesmo se passaria comigo no Brasil durante a ditadura militar.
"Apesar dos gastos intermináveis, no horizonte jaz o possível abandono na velhice por parte destes mesmos filhos “tão” amados."
Penso que gerar filhos é também arriscar. Não deixa de ser uma maneira de "lançar o pão sobre as águas". Não se pode ver na procuração uma troca, embora o correto seja o pai receber alguma atenção dos filhos na velhice sem paralisarem egoisticamente suas atividades já que a vida deles continuará. Ter filhos é uma responsabilidade. Trata-se de contribuir com a preservação da espécie e da nossa cultura em particular. É algo que deve estar livre do sentimento de auto-afirmação e da posse. Penso que, em via de regra, todo homem deveria ter pelo menos um filho natural. Mas, quando não for possível, devemos nos contentar com a sorte que Deus nos deu e colaborarmos com o bem estar e com a educação dos filhos dos outros, pois, agindo assim, cumprimos com a nossa responsabilidade de tutores da geração seguinte.
"Casamento é a melhor forma de deixar de querer transar com alguém devido ao esmagamento do desejo pela lista infinita de obrigações que assolam homens e mulheres, dissolvendo a libido nos cálculos da previdência privada."
Acho que aqui ele foi muito restrito na sua análise. De fato, muitos agem dessa forma como se estivessem fugindo ou negando o sexo, mas não é verdade. Para muitos, o casamento pode aquecer a relação sexual (eis aí um dos segredos espirituais para os noivos preservarem a virgindade até o casamento). É certo que, em tese, com o casamento, nós nos limitamos a uma vida de fidelidade com uma só pessoa. Porém, tal comportamento é positivo para formar a família. Algo que não apenas nos dará segurança no futuro, como constitui a base na construção da sociedade. Uma sociedade sem família tende a se desmoronar. Aliás, isto está até reconhecido no texto e o termo "tiozão", usado pelo autor, mostra o quanto um velho solteiro acaba dependendo de alguma maneira da companhia dos sobrinhos. Encarar a sua solidão na velhice vira algo insuportável.
Em tempo!
Considero que o texto, mesmo com suas ambivalências (rsrs) é indiscutivelmente edificante para todos nós.
Parabéns, Levi, por sua escolha!
"O artigo mostra o quanto é doloroso e praticamente impossível ganhar a guerra contra a ambivalência. Ganhar essa batalha significaria excluir os conflitos de nossa existência, ganhá-la seria negar, o óbvio: a bipolaridade de nossos afetos" (Levi)
Concordo contigo! Precisamos é aprender a dialogar com as nossas ambivalências, reconhecendo-as e procurando encontrar um caminho que não as ignore. Na verdade, penso ser apropriado encontrarmos as necessidades que se escondem por trás de ada uma dessas ambivalências, meditarmos a respeito delas e então tomarmos decisões maduras. E, seja qual o caminho tomado, devemos ser fortes e decididos no que fazemos sabendo que teremos perdas e receberemos críticas.
Lembrando sobre Jesus, eis que, quando o Mestre escolheu a cruz, ele estava preferindo morrer do que permanecer vivo. Estava deixando de viver a vida que Deus declarou ser boa quando criou o Universo e todos os seres viventes. Também estava ele desafiando questões bem relevantes da religião judaica e que, indiscutivelmente atrairia inúmeras críticas a seu respeito. Porém, após ter ponderado, ele entendeu que seu ato contribuiria de maneira magnífica para salvar inúmeras pessoas de morrerem espiritualmente e compreenderem o sentido de viverem para o qual poucos despertam. Ali ele viu uma causa superior à sua permanência como homem neste mundo físico. Trocou o que era limitado pelo infinito.
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