Quão adorável era a
sensação de se ver dono de si. Iria satisfazer, enfim, o desejo que o consumia
de se ver livre do pedaço de chão dos seus ancestrais. O prazer de não
necessitar de uma autoridade a ensinar-lhe gestos ou posturas, afinal, chegara.
Conseguiu deixar a gaiola para voar
ao seu bel prazer, sem amarras e barreiras. Muito embora tenha nascido
dependente do outro e permanecido neste estado por algum tempo, agora, estava a
usufruir a liberdade infinita que a natureza lhe oferecia. Saiu do recinto
fechado e sufocante das grades de uma gaiola
denominada “tradição dos pais” que o mantinha preso desde o seu nascimento.
Rompeu com o destino de conservar e repetir indefinidamente o lustro dos objetos
paternos que, agora, percebia como peças velhas e inaproveitáveis de um museu.
Decidiu não contemplar mais os originais da obra prima que o moldara. As
coleções de artes que agora criava, dizia ser fruto de uma inspiração autêntica,
que não mais guardava nenhuma influência das produções antigas que estava
acostumado a receber de graça num aconchegante engradado.
Nunca que pudesse imaginar
que as suas obras artísticas fossem testemunhar algo do passado longínquo de
sua prisão primeva. Embora suas produções de arte fossem construídas do mesmo
material de quando estava enjaulado, ele as via exprimirem um novo valor, uma
nova razão de ser de sua existência. Preferia manter-se a uma certa distância
dos engaiolados, temendo que ao encontrá-los, fosse tomado pelo desejo de
cumprimentá-los, coisa que o levaria ao maior dos constrangimentos. Se, por acaso, chegasse bem pertinho deles
seria para chamá-los de frouxos ou covardes. Algumas vezes, repelia o
sentimento fastidioso de que havia perdido alguma coisa. Outras vezes ouvia
como que uma melodia de ninar, do tempo dos seus primeiros vagidos. Passou a
andar vigilante para não ser traído por sonhos. Quedava-se, às vezes, medindo
os seus novos feitos pelo padrão de beleza das obras antigas feitas sob
encomenda dos seus predecessores ― que o deixava com a vaga sensação de que o
que produzia tinha alguma semelhança com as da antiga gaiola. Quando fugia do seu lar, a mulher do personagem bíblico, Ló,
resolveu satisfazer o forte desejo de olhar para trás, o que a transformou em
uma estátua de sal. Tal qual uma escultura de museu, era assim que se sentia,
quando em pensamentos revisitava o seu antigo habitat.
Pôs então no seu coração
a intenção de não se deixar seduzir por sugestões loucas que o levassem a
sentir saudade da antiga morada.
Uma noite, em sonho, se
viu repentinamente em Roma. Não suportou a bela e antiga cidade porque os seus
ouvidos doíam ante as inquietantes vozes que o convidavam a apreciar museus e
coleções de antiguidades. O certo é que depois de muito refletir, dispôs-se a
tirar algum proveito científico de todo aquele tesouro arqueológico.
Muito embora a Ciência e
a Fantasia fossem instâncias antagônicas, decidiu não dispensar uma rápida ida
àqueles lugares que lhe puxavam para trás.
Nutrindo a esperança de
que a Ciência sepultasse tudo aquilo, fazendo nascer algo novo sem nenhuma
relação com o velho, o fugitivo, obedecendo ao instinto, pôs-se a caminhar,
desaparecendo no horizonte.
Conseguirá esse Novo Homem abandonar por
completo o desejo arqueológico de escavar as ruínas do mundo dos mortos, que também são suas?
O futuro o dirá.
(Ensaio
baseado no Romance “Gradiva”
― de Wilhelm Jensen ― Jorge Zahar Editor)
Por Levi B.
Santos
5 comentários:
Nobre Amigo Levi,
Não deixar meu pitaco aqui, seria deselegante de minha parte, ainda mais, se tratando de um texto de profunda reflexão.
Uma história que apresenta duas realidades em uma só situação, e que reforça a ideia de uma realidade que sofre mutações, ou melhor, que adapta ao meio.
No primeiro parágrafo se percebe sem muitas dificuldades o principio de "ser livre". Algo que todos desejam desde menino, mas sem a compreensão do que implica ser livre. Os novos desafios, as responsabilidades, os percalços e por ai vai. Liberdade nunca é exatamente da forma que a vemos, quando supostamente não a possuímos. E talvez o ponto mais interessante, após a conquista da tão sonhada liberdade, é a saudade que se tem da "gaiola" e as lembranças que guardamos na caixola.
Como disse George Bernard Shaw,
"Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela"
"Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela"
Matheus,
Essa frase de Bernard Shaw, que você acaba de citar, me fez lembrar um ensaio que postei aqui em fevereiro de 2011, sob o título: “Virtualmente livres” , do qual pinço esse trecho, para reforçar a idéia de que não somos tão independentes assim:
“Será que somos realmente livres?
Como “ser livre”, se as memórias que guardamos do nosso passado, ainda regem e influenciam os nossos sentimentos no presente?
Dizemos que somos livres ao pensarmos que os conceitos que adotamos são puramente nossos, quando não passam de um somatório de influências que incorporamos no dia a dia de nossa existência.
“O homem moderno vive na ilusão de saber o que quer, quando de fato ele quer o que se supõe que deva querer” (Erich From — O Medo à Liberdade)
"Conseguirá esse Novo Homem abandonar por completo o desejo arqueológico de escavar as ruínas do mundo dos mortos, que também são suas?"
De modo algum!
Tenho a crença de que somos livres quando mergulhamos no conhecimento da Verdade, de nós mesmos. Algo que muitas das vezes é assustador e doloroso, mas que, ao final produz um fruto maravilhoso em nossas vidas.
Deixarmos uma situação que nos aprisiona e maltrata, como poderia ser, em tese, a casa paterna, faz parte desse processo de libertação. Só que as lembranças opressoras permanecem na nossa memória e no inconsciente. Não podem ser simplesmente deletadas sob pena de não sermos mais nós mesmos. É preciso marcarmos um encontro com elas e, a partir daí, estabelecermos um novo convívio.
Abraços.
Em tempo!
Foi a esposa de Ló , e não a de Jó, que virou uma estátua de sal quando olhou para trás enquanto a família escapava da destruição de Sodoma.
Obrigado aí Rodrigão pela correção (em tempo) do meu "ato falho" ao trocar "Ló" por "Jó". (Freud, talvez explique - rsrs)
Vou lá fazer a devida correção. (rsrs)
Você resumiu muito bem o espírito do texto postado, nessa frase:
As lembranças opressoras permanecem na memória e no inconsciente. Não podem ser simplesmente deletadas sob pena de não sermos mais nós mesmos.
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