O filósofo alemão que
estudou com Husserl, Paul Ludwig Landsberg (1901 -1944),
morto pela Gestapo num campo de concentração em Oranienburg (Brandemburgo-
Alemanha) nos legou um instigante livro ― “Ensaio
Sobre a Experiência da Morte”. No VIII capítulo, encimado pelo título, “Intermezzo tauromáquico”, o indigitado
autor faz uma analogia digna de registro, inter-relacionando os momentos da
inocente felicidade primeva com o desaguar da angústia existencial humana, que
tem na morte ou no morrer, o seu ápice.
Ele recorreu a uma
tourada, daquelas espanholas, para inserir pontos de intersecções metafóricas entre
o touro que entra na arena e a criança que sai do corpo da mãe para em
um pequeno espaço de tempo deslumbrar-se com um mundo fantástico a seu redor,
sem ter a mínima idéia do que vem pela frente.
O autor germânico, que
filosoficamente denomina a morte como a “presença-ausente”
e o morto como a “ausência-presente”,
inicia o seu brilhante ensaio metafórico falando da “criança-homem”, até chegar ao “homem
maduro” dentro de sua arena existencial:
“O touro que entra na arena não
sabe nada do que o espera. Contente, ele foge da escuridão da cela e sente a
plenitude de sua vitalidade de jovem atleta. Ofuscado pela súbita claridade,
sente-se senhor do círculo fechado que se torna seu mundo e que ainda lhe
aparece uma planície sem limite. Seu rabo chicoteia a areia vigorosamente. Ele
percorre a arena em todos os sentidos, sem outra consciência além da alegria de
sua força. ― Assim a criança sai do corpo da mãe e logo começa a brincar num
mundo luminoso que a deixa ainda ignorar seu destino e seus perigos.
Chegam os primeiros
adversários. Ainda é um jogo. Para o touro o combate é natural. A luta
intensifica seu sentimento da vida e das próprias forças. As pequenas
dificuldades iniciais só lhe aumentam a raiva. É a cólera do forte que atinge o
auge da irritação. A luta desperta e revela o animal vigoroso que a vida
cotidiana dissimulava. Nenhum sentimento desagradável além do jogo. Mas, aos
poucos, aparece um elemento doloroso. O jogo é uma cilada. O adversário é muito
esperto, provoca e se esquiva. Apesar de mais fraco o adversário se torna mais
forte por que é mau. O pano vermelho torna-se um vexame, deixa de ser uma boa
ocasião para lutar. ― Assim, o adolescente na escola e alhures faz suas
primeiras experiências num mundo astuto contra o qual a sinceridade de sua
força nada pode. Mas as canseiras da juventude não são graves.
Para o touro, o mais sério
começa com a entrada dos inimigos centauros. Os picadores o atacam do alto de
seus cavalos com piques que ferem de longe. O touro ataca e sua fúria se
transforma, aumenta. É a cólera amargurada, magnífica, alucinante, na qual o
cúmulo do frenesi vem secretamente da vitória sobre a desesperança vital,
cólera que se fortifica por uma contínua vitória sobre a desesperança. É o
inocente, é o pobre cavalo velho que sofre principalmente com tal
encarniçamento. O picador manhoso vai embora depois dessa tarefa sangrenta. ―
Assim, o homem entra na luta séria da vida. Jamais vencerá o mal. Se destrói
algum adversário, só destruiu um inocente. Existem apenas inocentes; nossos
adversários são as máscaras desse mal que nunca mataremos. ― Assim, o homem
maduro chega ao sucesso e à glória no momento em que já está enfraquecido pelos
ferimentos da vida. E a glória deste mundo nada mais é que uma ferida íntima,
um enfeite tradicional e quase ridículo, um simulacro de vitória. O homem não
venceu”.
P.S.:
Nessa tourada que não é bem no plano físico, o animal faz o papel da criança e do homem
maduro(?). O Homem mesmo sabendo que
no fundo de sua alma é também touro,
faz o papel da divindade, pois sabe
antecipadamente o que vai acontecer: sabe atacar e se esquivar, assim como
percebe o momento de dar o golpe fatal.
Que o internauta ao ler esse
metafórico e poético texto, possa viajar e revisitar os afetos tauromáquicos,
que são seus e de mais ninguém.
5 comentários:
Talvez seja necessário para poder nos situarmos na vida a participação desta "tourada". Numa etapa mais madura, o homem começa a repensar os seus métodos violentos de luta, passando a compreender melhor a si próprio, mas, querendo ou não, acaba passando o seu "bastão" para a geração que vem depois dele afim de que entrem na "arena" também. Seja como for, nunca nos afastamos totalmente do ambiente de conflito e buscamos novas maneiras de lidar com ele. Partimos deixando muita coisa ainda por ser resolvida. Abraços.
Caro Rodrigo
Nesse poético e psicanalítico ensaio, o touro, o homem
(domador), a arena e o público sedento de sangue e de salvação tem tudo a ver com os nossos afetos. Ou não?
Alguns podem ver no toureiro o símbolo de Deus ou do Diabo. (rsrs)
Prezado Levi,
Compartilho ser possível a aplicação do raciocínio dentro da dimensão que o amigo colocou. E que, em tal caso, seriam mesmo projeções dos nossos afetos. Mas quando esses sentimentos são direcionados para as arenas, coitados dos touros...
Abraços.
Levi, sempre que leio textos assim, que nos lembram que o embate já está perdido, afinal de contas, todo mundo sabe o final do filme da sua vida, me vem o desejo de enquanto o The End não aparece na tela, o filme deve pelo menos, servir para alguma coisa; nem que seja para emocionar ou fazer rir a quem lhe assiste.
Ou será que estou sendo muito romântico...? rss
Não esqueça, Edu, que para os cristãos o "THE END" não é o fim e sim o começo da Vida.(rsrs)
Mas para o poeta existencialista, Rainer Maria Rilke: "...Vivemos sempre nos despedindo".
Postar um comentário