04 abril 2014

Abrindo a Voz Para o Tempo Cantar




 Tornamo-nos adultos, é certo. Entretanto, lá dentro de nós, a criança que um dia existiu não nos abandonou por completo. Ela permanece inconscientemente adormecida, até que algo estimulante do agora ou do presente a faça aparecer. Aí então é quando um passado longínquo nos invade, quase sempre, evocando uma prazerosa nostalgia.

É bom revisitar o passado para entender que o “tempo” é quem fala através do sujeito, como essas duas estrofes da Canção Buarquiana ― “Tempo e Artista” ― tão bem traduz:


“Modelando o artista ao seu feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapeso de um sorriso”.

“Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta”.


Como dizem os poetas: “o passado tem sempre algo a dizer ao presente”. Walter Benjamin (1892 - 1940) dizia: “toda a imagem do passado que não se deixe reconhecer como significativa pelo presente a que visa, pode desaparecer”.

Em seus trabalhos, os artistas, os poetas, os filósofos e os psicanalistas, fazem uso do método retrospectivo. São arqueólogos da alma que, ao cavar no terreno inóspito, composto de camadas endurecidas pelo tempo, re-descobrem e re-significam fatos e atos de um passado remoto. E nessa espécie de revisitação são montados os fragmentos do quebra-cabeça, e, instaurado imaginariamente o éden perdido. Winnicott, dizia que “o cientista no silêncio de seu gabinete lê e escreve, pesquisa e cria, no mesmo estado de alheamento e concentração de uma criança que brinca”.

Freud, que se aventurou pelos meandros da mente explorando o ser humano desde seus primeiros vagidos, como uma criança que enfeita seu quarto com brinquedos, colecionava antiguidades. As peças arqueológicas que mantinha sempre à distância de suas mãos eram uma maneira de revisitar o seu passado.  As peças de museus que colecionava queriam significar, acima de tudo, um tempo em que se deleitava com os brinquedos de seu tempo de menino. O velho barbudo, afinal, demonstrou que em algum recanto de nossa mente existem arquivos indeletáveis. Neles, brota o gás que mantém aceso o pavio de nossos desejos utópicos. E quando acessamos esses arquivos, pelo menos em imaginação, retornamos à lugares de nossa tenra infância que nos causaram deslumbramentos e êxtases.

Sobre esses arquivos que produzem o sentimento nostálgico, Rubem Alves, em seu livro,  “Retorno e Terno”, assim se expressou: “Enquanto depender de mim, os campos ficarão lá. Enquanto depender de mim os cerrados ficarão lá. Porque tenho medo de que, se eles forem destruídos, a minha alma também o será”.

Não há nada mais tocante para ativar esses arquivos do que as letras poéticas de certas canções. Elas ainda têm o condão de desafogar a frágil criança interior, levando-nos a formidáveis devaneios. Como um caramujo que ora aparece e desaparece de dentro de sua concha, lá dentro de cada um de nós, de vez em quando, surgem ecos das modinhas inexpugnáveis para lembrar algo que se tinha como perdido: algo como um porão esquecido, repleto de fantasias rotas e pedaços de brinquedos que um dia povoaram nossos sonhos. Sonhos sonhados que impregnaram nossa infância, formatando a maquete dos desejos e das paixões que hoje regem o nosso comportamento de adulto.

O prazer nostálgico seria algo como navegar para trás, como tão bem ressalta a letra da melosa e imperdível canção ―“Xote da Navegação” de Dominguinhos e Chico Buarque, que abaixo reproduzo:



Por  Levi B. Santos

Guarabira, 04 de abril de 2014

2 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Bom dia, Levi!

Excelente o texto! Parabéns!

Penso que essa busca pelo passado possa ser também explicada pelo fato de que a criança, diferentemente de nós adultos, vive com mais intensidade o seu presente, sem ficar pensando (ou se preocupando) com as coisas do amanhã e aqueles acontecimentos que não podemos controlar. A criança brinca e se distrai. Ela não tem ódios e rancores para remoer. Aliás, não seria por essas e outras que o amado Mestre Jesus de Nazaré teria dito que "delas é o Reino dos Céus"?!

Que Deus possa nos ajudar nessa nossa busca pessoal e ao mesmo tempo coletiva de "retorno ao Éden"! Algo que, paulatinamente, tentamos hoje redescobrir apesar de toda a contrariedade existente no ambiente social e em nós mesmos.

Um abraço e ótima semana ao irmão!