Tornamo-nos
adultos, é certo. Entretanto, lá dentro de nós, a criança que um dia existiu não
nos abandonou por completo. Ela permanece inconscientemente adormecida, até que
algo estimulante do agora ou do presente a faça aparecer. Aí então é quando um
passado longínquo nos invade, quase sempre, evocando uma prazerosa nostalgia.
É bom revisitar o passado para
entender que o “tempo” é quem fala através do sujeito, como
essas duas estrofes da Canção Buarquiana ― “Tempo
e Artista” ― tão bem traduz:
“Modelando o artista ao seu
feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapeso de um sorriso”.
“Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo
canta”.
Como dizem os poetas: “o passado tem sempre algo a dizer ao
presente”. Walter Benjamin (1892
- 1940) dizia: “toda a imagem do passado
que não se deixe reconhecer como significativa pelo presente a que visa, pode
desaparecer”.
Em seus trabalhos, os artistas, os
poetas, os filósofos e os psicanalistas, fazem uso do método retrospectivo. São
arqueólogos da alma que, ao cavar no terreno inóspito, composto de camadas
endurecidas pelo tempo, re-descobrem e re-significam fatos e atos de um passado
remoto. E nessa espécie de revisitação são montados os fragmentos do
quebra-cabeça, e, instaurado imaginariamente o éden perdido. Winnicott, dizia
que “o cientista no silêncio de seu
gabinete lê e escreve, pesquisa e cria, no mesmo estado de alheamento e
concentração de uma criança que brinca”.
Freud, que se aventurou pelos meandros da
mente explorando o ser humano desde seus primeiros vagidos, como uma criança
que enfeita seu quarto com brinquedos, colecionava antiguidades. As peças
arqueológicas que mantinha sempre à distância de suas mãos eram uma maneira de
revisitar o seu passado. As peças de
museus que colecionava queriam significar, acima de tudo, um tempo em que se
deleitava com os brinquedos de seu tempo de menino. O velho barbudo, afinal,
demonstrou que em algum recanto de nossa mente existem arquivos indeletáveis. Neles,
brota o gás que mantém aceso o pavio de nossos desejos utópicos. E quando
acessamos esses arquivos, pelo menos em imaginação, retornamos à lugares de
nossa tenra infância que nos causaram deslumbramentos e êxtases.
Sobre esses arquivos que produzem o
sentimento nostálgico, Rubem Alves,
em seu livro, “Retorno e Terno”, assim
se expressou: “Enquanto depender de mim,
os campos ficarão lá. Enquanto depender de mim os cerrados ficarão lá. Porque
tenho medo de que, se eles forem destruídos, a minha alma também o será”.
Não há nada mais tocante para ativar
esses arquivos do que as letras poéticas de certas canções. Elas ainda têm o
condão de desafogar a frágil criança interior, levando-nos a formidáveis
devaneios. Como um caramujo que ora aparece e desaparece de dentro de sua
concha, lá dentro de cada um de nós, de vez em quando, surgem ecos das modinhas
inexpugnáveis para lembrar algo que se tinha como perdido: algo como um porão
esquecido, repleto de fantasias rotas e pedaços de brinquedos que um dia
povoaram nossos sonhos. Sonhos sonhados que impregnaram nossa infância,
formatando a maquete dos desejos e das paixões que hoje regem o nosso
comportamento de adulto.
O prazer nostálgico seria algo como navegar para trás, como tão bem ressalta a letra da melosa
e imperdível canção ―“Xote
da Navegação” ― de Dominguinhos
e Chico Buarque, que abaixo
reproduzo:
Por
Levi
B. Santos
Guarabira,
04 de abril de 2014
2 comentários:
Bom dia, Levi!
Excelente o texto! Parabéns!
Penso que essa busca pelo passado possa ser também explicada pelo fato de que a criança, diferentemente de nós adultos, vive com mais intensidade o seu presente, sem ficar pensando (ou se preocupando) com as coisas do amanhã e aqueles acontecimentos que não podemos controlar. A criança brinca e se distrai. Ela não tem ódios e rancores para remoer. Aliás, não seria por essas e outras que o amado Mestre Jesus de Nazaré teria dito que "delas é o Reino dos Céus"?!
Que Deus possa nos ajudar nessa nossa busca pessoal e ao mesmo tempo coletiva de "retorno ao Éden"! Algo que, paulatinamente, tentamos hoje redescobrir apesar de toda a contrariedade existente no ambiente social e em nós mesmos.
Um abraço e ótima semana ao irmão!
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