11 agosto 2014

Divagações Sobre “Onipotência do Desejo”




A onipotência do desejo pode ser comparada a uma vara de condão das histórias infantis. Sua força é tamanha que pode fazer com que o indivíduo passe a ignorar a realidade que o cerca. Mas convenhamos: o que não podemos é magicamente nos servir o tempo todo do objeto dessa idílica potência.

É difícil falar em onipotência do desejo sem ter que se reportar aos afetos que a religião tomou para si. André Eduardo Guimarães, filósofo e teólogo da PUC, de Belo Horizonte (MG), sobre esse pantanoso desejo no campo da sacralidade, assim discorreu:

 “as verdades religiosas são sublimações compensatórias. O homem passa à dimensão vertical, aquela do céu, porque os seus desejos não se realizam sobre o plano que constitui a sua sede e a sua meta, isto é, o plano horizontal das relações humanas. Neste ‘voar ao céu’ consiste a segunda função econômica da religião: a consolação”.

A psicanalista, Betty Milan, que deixou a sua Vila Esperança (São Paulo) para estudar com Lacan em Paris ― onde tudo lhe era frio, distante e estranho ―, em "Carta ao Filho"(Editora Record), conta  que “ao sair de casa à noite pelas ruas semi-iluminadas de Paris, passando pelo cais do Sena, olhando pela primeira vez as torres da Conciergerie, ouvia o seu pai dizer”: Em Paris, é preciso estar sempre de olhos voltados para o alto”.

Seu pai tinha falado isso há décadas, no entanto ela parecia ouvir a sua recomendação a cada passeio que fazia. Escolhera a psicanálise, talvez porque seu pai desejasse que ela fizesse Medicina. “Acho que essa escolha se explica, por um lado, pelo espelhamento, e por outro lado pelo desejo que o pai tem de prolongar a própria vida através da vida do filho e pela impossibilidade que este tem de dizer não àquele. Nessa situação o pai é vítima da ilusão da imortalidade, e o filho, do medo de matar o pai com a palavra não” ― narrou Betty.

 Em “A Vingança da Esfinge”, o psicanalista, Renato Mezan, interpondo-se entre a onipotência do desejo e as rígidas exigências da realidade, recorre a Conrad Stein: “a onipotência consistiria, caso se realizasse, num estado de ser simultaneamente o alfa e o ômega, abarcando o universo inteiro, de modo que não fosse necessário mais desejar ― porque todo o desejo implica uma falta, ainda que a varinha mágica pudesse removê-lo instantaneamente”.

Por outro lado, no plano imaginário, a escritora, Betty Milan, em seu arrebatador livro, “Carta ao Filho”, fala de uma característica singular do sujeito que é a de poder situar-se aquém ou além do presente:
À nossa maneira, nós humanos conseguimos ignorar a realidade e fazer o passado existir de novo graças à onipotência do desejo”. [...] A gente pode até esquecer os ancestrais. O desejo deles nunca esquece a gente, é o chamado ‘desejo do outro’, que só não é destino porque tanto podemos dizer SIM a ele quanto NÃO.”

Em um tempo que o cientificismo teima em dissecar alma humana em seus mais profundos recônditos, as velhas idéias teológicas, dogmas e sentimentos, como o que Leonardo Boff costuma denominar de “oceânico”, permanecem sem ser expurgados totalmente do homem, corroborando o que disse, certa vez, Mircea Eliade, no prefácio de seu primoroso livro Origens (Edições - Perspectivas do Homem):

“O homem moderno continua a sonhar, a apaixonar-se, a ouvir música, a ir ao teatro, a ver filmes e ler livros ― em resumo, a viver não só num mundo histórico e natural, mas também num mundo existencial privado e num Universo imaginário”.

Parece-me que nas artes, nos rituais religiosos, nas leituras e filmes de ficção, a onipotência do desejo continua a reinar absoluto em nossa psique ― talvez, quem sabe, uma reprise da onipotência mágica dos desejos experimentados ou vivenciados em nossa curta infância.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 11 de agosto de 2014



8 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Até que ponto essa busca humana não possui um quê de real? Lembrei-me do "mito da caverna" de Platão e aí, considerando que estamos imersos numa realidade que transcende os limites da Física (digo da nossa física que conseguimos perceber), certos fatos atribuídos ao imaginário podem bem representar aquelas "sombras" que são refletidas do "mundo exterior" para dentro da "caverna". Ora, essa realidade que podemos chamar de "extrafísica" seria para o nosso espírito tão concreta quanto é para o nosso corpo o teclado do computador através do qual estou escrevendo estas palavras. Aí, como Paulo bem ensinou, as coisas espirituais se discernem espiritualmente de modo que a nossa percepção/revelação interior precisa ser traduzida para mente. Por exemplo, as ideias sobre um "céu" ou um "paraíso" presentes nas religiões serviriam de metáforas para tentar explicar quem sabe uma condição ou um estado espiritual da consciência em relação ao tempo eterno. Mas o que a linguagem fez foi tornar pedagogicamente acessível ao homem comum entender coisas da realidade espiritual afim de que as pessoas procurem transcendência, o que envolve certamente o plano ético consciencial.

Levi B. Santos disse...

Será que os fundamentalistas, um dia, irão aceitar o “Céu” e “Inferno” como metáforas de nossos afetos paradoxais, Rodrigo?

A onipotência do desejo fez o homem sonhar com um Deus-Pai. Mas esse “Deus-Pai” da religião agiu à semelhança da imagem do pai natural que premia o filho quando submisso fica e o castiga quando não entende suas negativas.

O problema é que a onipotência do desejo projetou o bem e o mal em duas criaturas sobrenaturais, ao invés de fundi-la em uma só criatura de duas faces, a exemplo do deus Janus.
E o conflito que deveria ser humanamente interno, transformou-se numa guerra externa onde homens em nome de deuses opostos se trucidam ou se devoram.

É ai que entra a significativa metáfora de Betty Milan, no ensaio postado, quando diz:

“O desejo deles nunca esquece a gente, é o chamado ‘desejo do outro’, que só não é destino porque tanto podemos dizer SIM a ele quanto NÃO”.

Eduardo Medeiros disse...

Levi, que texto interessante, hein?

Vou cutucar um pouco a afirmação do Rodrigo "Até que ponto essa busca humana não possui um quê de real"?

E aí eu emendo: por que não aceitar que a própria busca é real independente do que ela busca de fato ser real ou não?

Como você cita no texto Mircea, a leitura de um belo romance ficcional em si torna-se a experiência verdadeira, mesmo que a história não tenha acontecido no nosso tempo histórico e sensível.

Levi, tira uma dúvida. não entendi bem o que quer dizer esse frase:

"A gente pode até esquecer os ancestrais. O desejo deles nunca esquece a gente, é o chamado ‘desejo do outro’, que só não é destino porque tanto podemos dizer SIM a ele quanto NÃO.”

Em que sentido o desejo deles nunca nos esquece? não captei bem a metáfora..rss

Levi B. Santos disse...

Eduardo

É meio psicológico, filosófico e teológico essa tal “onipotência do desejo”. Mas na religião quando dizemos que Deus é onipotente, não estamos a falar da onipotência do desejo cravado no inconsciente humano? Se bem que por outro lado, não deixa de ser “real” a experiência do fiel que projeta sua onipotência numa figura antropomórfica, quando diz : “vamos reinar com Ele”

Mirandinha falou de um “legado do seu inesquecível pai” em um comentário ao texto do Rodrigo sobre o dia dos pais. O próprio Rodrigo também assim se referiu sobre o que eu considero como “onipotência do desejo” que os pais transmitem às crianças: ”a falta da figura paterna pode desestruturar os filhos, tirando-lhes o rumo da vida, expondo-os a se tornarem pessoas inseguras e infelizes”

Esse desejo paterno plantado em nós nunca é esquecido, nunca esmorece, ou seja, há sempre um pouco da onipotência do desejo paterno residindo no centro de nossas decisões. É preciso equilíbrio, para que esse desejo paterno não venha nos alienar. Se não pudermos dizer SIM ou Não, como disse Betty Milan, a esse princípio do prazer que tem a onipotência em seu âmago, não iremos aprender a sofrer a conseqüência de nossos atos.

A velha frase: “Você está pagando caro por não ter feito como seu pai” pode proporcionar um sentimento de culpa no receptor, se ele não puder dizer “NÃO” a quem proferiu o vaticínio. Na concepção lacaniana de Betty Milan, a resposta “SIM” – seria aceitar o destino da onipotência do desejo paterno, traçado previamente.

Penso que há um meio termo. O negócio é contrabalançar (há tempo pra tudo): Não fugir do princípio da realidade dolorosa de nossa finitude humana, nem tampouco deixar de “viajar” ou “relaxar e gozar” ― como aconselhou a Marta Suplicy, certa vez. (rsrs)

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Oi, Levi.

Não tenho problemas em aceitar o “Céu” e “Inferno” como metáforas de afetos humanos paradoxais e ao mesmo tempo considerar que a consciência pode viver em tais condições em relação à eternidade, sendo que hoje Deus concede graça em Cristo Jesus para que todos possam se arrepender escolhendo a Vida. Por isso, considero o Evangelho do Reino a ferramento para libertar pessoas das prisões infernais nas quais elas mesmas aderem.

Quando diz que "a onipotência do desejo projetou o bem e o mal em duas criaturas sobrenaturais", não nos esqueçamos de que o diabo é uma criatura de Deus, o que ganha um grande significado. Só que o escritor sagrado percebe a necessidade de separação entre os dois pólos tendo em vista a impenitência dos homens perversos que insistem em viver no pecado prejudicando deliberadamente o próximo. Pense nisto!

Um abraço.

Levi B. Santos disse...

”...sendo que hoje Deus concede graça em Cristo Jesus para que todos possam se arrepender escolhendo a Vida.” (Rodrigo)

Na linguagem teológica popular o conceito de onipotência deixa de ser metáfora quando implica em um ser superior que é capaz de fazer tudo que lhe apraz. Devemos rechaçar essa noção tanto no âmbito religioso, quanto no teológico, diz Paul Tillich em sua “Teologia Sistemática”.

A psicologia ajudou a teologia a redescobrir as estruturas demoníacas determinantes de nossa consciência. A “Graça” para Jung e Tillich é a aceitação dos inaceitáveis, desde que se compreenda que “céu”, “paraíso”, inferno” são metáforas, ou arquétipos representativos dos estados ambivalentes de nossa alma. O “inferno” que imaginamos como um lugar que muitos irão sofrer eternamente é a parte sombria e obscura de nós que repudiamos através da tela dos que estão ao nosso redor. A palavra” inferno” soa como uma projeção egocêntrica, efeito da onipotência do desejo paterno de castigar o filho rebelde; afeto esse que foi introjetado na tenra infância, principalmente daquele que nasceu num lar fundamentalista evangélico.

Eduardo Medeiros disse...

" A palavra” inferno” soa como uma projeção egocêntrica, efeito da onipotência do desejo paterno de castigar o filho rebelde" (Levi)

essas interpretações psicológicas dos dogmas bíblicos é uma coisa muito séria. As coisas se encaixam muito bem..rss

Mas Levi, me diga: Você entende que os autores bíblicos quando estavam escrevendo faziam essas construções psicológicas conscientemente? E quanto aos eventos históricos que a Bíblia narra, eles também foram afetados por esse modo de expressar tais conceitos?
Ou tudo saia de modo inconsciente para que mais tarde Freud tivesse a honra de descobrir essas projeções?

Levi B. Santos disse...

Essas construções psicológicas, a que você se refere, Eduardo, começam na tenra infância, e são reflexos culturais em cada povo.

A “onipotência do desejo” está presente no brincar e no fantasiar ― a área de ilusão, que o famoso psicanalista inglês, Donald Winnicott (1975) chamou de "espaço transicional ou potencial" onipotência do desejo - Grifo meu), a qual se tornará a fonte das criações que irá realizar as diversas formas simbólicas da Cultura.

Quando brinca, diz Freud, toda criança comporta-se como um poeta. (rsrs).

A “ilusão” aí entra em cena. Mas não custa nada revê que a palavra “ilusão” (in + ludere) significa “jogar para dentro”. Já dizia, Abrão Slavutzky, autor de “Psicanálise e Cultura”:

”A palavra ilusão é um jogo, pois imaginar é preciso, por isso é possível pensar o EU como um teatro onde ocorrem cenas que marcam e constituem a realidade psíquica”.

O perigo maior é que a “ilusão” ou “onipotência do desejo” venhaa se transformar em uma ideia fixa delirante. (rsrs)

Penso, que os autores bíblicos, não foram imunes a estes conceitos. O “desejo de potência” arraigado na psique infantil e paterna do povo judeu, não tenho dúvidas de que foi responsável indireto pela epopéia desse povo. Epopeia esta que ainda continua a fazer sangue, hoje, na “ex-canaã celestial”. (rsrs)