15 agosto 2015

De Que Rimos nas Piadas?



A História conta que no papiro de Leiden (século III) foi encontrada a inscrição: O Universo nasceu de uma enorme gargalhada”. Mas, quatro séculos antes de Cristo, os sábios gregos já tinham o riso como centro de suas atenções. Aqueles que não fazem brincadeiras e não suportam os que as fazem são, tudo indica, rústicos e rabugentos” diziam eles. É do filósofo Aristóteles (322 a.C) a célebre frase,“O Homem é o único animal que ri” [História do Riso e do Escárnio de Georges Minois]

O certo é que foram os gregos (e não podia ser outro povo) que acabaram por transferir seus sentimentos e afetos para o âmbito do sagrado. O brincar com as palavras adquiriu uma aura divina, e pôs Deus como o autor do primeiro riso. Daí então ele se tornou inextinguível. Existe até um prólogo helenizado do Gêneses bíblico:

Tendo Deus rido, nasceram os sete deuses que governam o mundo… Quando Ele gargalhou fez-se a luz… Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas Ele ri tanto que chora, e de suas lágrima nascem a alma”. [ História do Riso e do Escárnio Georges Minois ]

Mas deixando de lado o campo mitológico-poético, afinal, de que rimos nas piadas?

Freud, que se debruçou intensamente sobre esse tema, no seu livro “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”, definiu os humoristas como “aqueles que captam a fragilidade do homem, seus conflitos, sua finitude, sua dor e seu sofrimento, cravam as unhas no mal-estar, desviam do interdito e dali saem com um dito espirituoso que os faz rir de si mesmos, ou do outro e faz o outro rir. São eles que revelam nossas contradições, nossas falhas, nossas imperfeições. Através do humor, todo poder constituído é gozado, as teorias perdem sua pomposidade, as religiões, as ideologias mostram sua face frágil e nua”.

O velho e mundialmente conhecido ditado, “Rir é o melhor remédio”, por si só, já resume bem o efeito terapêutico proporcionado pelo riso. Quando o sujeito rir realiza uma catarse. Na piada, o álibi carrega uma verdade do sujeito que, de outra forma, não viria à tona. Fica aí claro que, quem conta a piada pesca no ouvinte algo já existente em seu próprio subconsciente.

Por ofender nossos valores morais, políticos e religiosos a anedota , é considerada politicamente incorreta. O psicanalista Renato Mezan, em seu livro, Estudos de História da Psicanálise, diz que rimos até de nossa própria mãe. Para evidenciar esse fato, o autor supra-citado narra a seguinte piada:

O vovô propõe que, antes de comer, todos façam uma oração. “Eu não vou fazer oração nenhuma”, diz o Jacozinho. A mãe o repreende: “Mas como? Na nossa casa, sempre rezamos antes das refeições. Por que não na casa da vovó?”. E o menino: “Por que ela sabe cozinhar!”.

Rimos ao nos identificar com o Jacozinho, sinal de que, lá no fundo, alguma queixa ou reclamação temos contra a nossa mãe. “Na identificação acolhemos um pensamento que, sem o admitir, já abrigávamos em nossa mente e o riso manifesta o alívio por poder fazer isso sem culpa”.

Da grande coleção de anedotas judaicas tiradas da história da psicanálise, Renato Mezan nos brinda ainda com uma primorosa, onde o um dos dogmas centrais do cristianismo é posto em cheque de modo engenhosamente provocante. Por ser uma piada globalizante, talvez, quem sabe, dela rirá tanto o ateu, quanto o judeu, o cristão e o pagão:

Dizem que um cidadão levou toda a família para conhecer Jerusalém: Esposa, filhos, a babá e a sogra. No segundo dia da visita, a senhora tem um mal súbito, e parte desta para melhor. Muito embaraçado, o homem vai até uma agência funerária, onde o encarregado lhe diz que tem duas opções: enterrar a falecida lá mesmo, o que custaria 5 mil dólares, ou repatriar o corpo, o que sairia por 25 mil dólares. Depois de pensar um pouco, ele escolhe a segunda opção. Um tanto espantado o funcionário pergunta por que o cliente prefere gastar cinco vezes mais para resolver o seu problema. Resposta: “porque aqui já houve um caso de ressurreição”.

A piada é transgressora na medida que toca o pólo “negativo” de nossa ambivalência que normalmente relutamos para que não apareça perante os outros. Ela evidencia, acima de tudo, o nosso lado “anti”. Damos gargalhadas de nós mesmos, ou seja, rimos do nosso lado anti-católico, antipuritano, anti-nobre, antissocial, anti-deísta, antidemocrático, etc, exposto de forma desconcertante pelo humorista em seus “fictícios” personagens. Poderíamos até dizer que a piada expõe o nosso próprio pré-conceito inconscientemente internalizado. Rimos até do ridículo humano, tão humanamente exposto em situações constrangedoras. O gracejo tem o poder de suspender a nossa inibição sobre determinados aspectos ocultos em nossa personalidade, deixando-nos livres para rir do ridículo que há em nós. Quando o hilário, que socialmente nos é negado, aparece no outro (personagem central do gracejo), somos levados à irresistíveis risadas. Em suma, rimos de uma piada porque ela viola o que culturalmente foi instituído como um “bem moral”. Quando a piada é entendida a inibição que pesa sobre determinadas ideias passa a ser supérflua o inconsciente se torna consciente” (Renato Mezan)

Piadas ofensivas e ditos jocosos envolvendo autoridades políticas que perderam sua credibilidade são compartilhadas entre amigos nas redes sociais com o intuito de provocar riso. É no mundo virtual que a união das gargalhadas de muitos dos internautas se tornam uma demonstração de força. O meio cibernético favorece a disseminação de todo tipo de piada. Sem o temor de ser retaliado, o indivíduo nesse ambiente, experimenta e até abusa do prazer de trucidar o adversário através do riso.

O riso também tem seus insondáveis mistérios. Conta-se que certo pregador, após cumprir o dever religioso, notou que a plateia permanecia silenciosa e triste. Como era um dia de domingo, onde cairiam bem a folga e o riso, dirigiu-se aos fiéis de forma espirituosa:

Desperte o dom de fazer rir que há em você. Olhe para seu irmão aí do seu lado e conte-lhe uma piada bem engraçada!”

Não demorou muito para o poder do riso tomar a todos. E riram-se deles mesmos, como nunca antes haviam rido.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 15 de agosto de 2015

Site da Imagem: fabriciapsi.blogspot.com.br

08 agosto 2015

O Software dos Afetos





O software é um programa micro-eletrônico destinado a armazenar uma sequência de instruções escritas, a fim de que tarefas específicas possam ser interpretadas e executadas pelo computador. Acho que poderíamos transportar o conceito desse elemento do mundo cibernético para a vida instintiva do indivíduo (com seus impulsos e afetos). Não é à toa que, pela sua complexidade operacional, comumente se compara o computador ao cérebro humano.

Sendo assim, os dois primeiros softwares humanos corresponderiam ou conteriam as primeiras experiências do bebê: a de gratificação que embute o prazer e a de frustração, representada pelo desprazer. Esses dois softwares centrais, com o tempo se conectariam a softwares secundários, como o da submissão, da inveja, do ciúme, da agressividade contra o intruso, do afeto de afeição e apego. Diríamos que o software dos afetos, que agem a partir do primeiro vagir do bebê, continua a reverberar indefinidamente, toda vez que o adulto se confronta com situações análogas às vivenciadas nos seus primeiros anos de vida.

Recordar, repetir e elaborar” constituiriam a base do mecanismo consciente/inconsciente da psique, diria Freud em “Além do Princípio do Prazer”. Ou seja, as reações instintivas com sua gama de afetos ambivalentes repercutidas no adulto, no fundo, são repetições de cenas que vivenciou em sua tenra infância. A psicanálise faz ver que o modo de inserção do adulto na vida social, está repleta de ecos vindo lá de trás, implantados ou inscritos em softwares do intricado campo mental. Às vezes, tal qual um computador com alguns arquivos travados, conservamos certos gestos ou um tipo de conduta, sem saber que nesses atos compulsivos exibimos um ordenamento previamente programado.

O software responsável pelo sentimento da criança que, para evitar o desprazer de não ter um brinquedo igual ao do seu amiguinho, toma-o e o destrói, é o mesmo que age na vida adulta. Como muito bem definiu, Zuenir Ventura, em seu livro “Mal Secreto”: “A inveja é não querer que o outro tenha”.

Como tudo na vida é repetição, o sentimento de inveja, no adulto, não passa de uma reprise da primeira inveja vivenciada. É para evitar o doloroso desprazer de ver nossos recalques sendo expostos, que reprovamos no outro (o invejoso) o sentimento de inveja que experimentamos primariamente na infância. Dizem os filósofos que, dos sete pecados capitais, só a inveja se esconde. O escritor, dramaturgo e torcedor fanático do Fluminense do Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues, já dizia: “há coisas que o sujeito não confessa nem ao padre, nem ao psicanalista, nem ao médium depois de morto. Uma delas certamente é a inveja”.

Donald W. Winnicott, pediatra inglês, cuidou de crianças adolescentes traumatizadas na época da segunda guerra mundial e, para melhor compreender o seu drama interessou-se pela psicanálise. Ele, por fim, entendeu que a vida social e afetiva do adulto dependia muito da criança que um dia existiu.

Françoise Dolto, psicanalista francesa que dedicou toda sua vida a cuidar de crianças que perderam os pais na segunda guerra mundial, assim se referiu, ressaltando o sofrimento nascido das separações primeiras, dos primeiros sentimentos de frustração e desamparo experenciados por meninos e meninas de seu tempo:

Esses momentos de graça do fenômeno humano que somos para nós mesmos , todos nós conhecemos desde a infância. […] Cada um de nós, quando estreitado pelo sentimento de não ser compreendido, de ter um sentimento impossível de comunicar; sentimento doloroso que faz o corpo estar mal em meio aos outros, em família, em sociedade, num grupo, na multidão, cada um de nós sente a solidão amarga que traduzimos por tédio, angústia, tristeza e melancolia”.

Tanto na criança já grandinha de seis anos de idade quanto no adulto, o software do prazer bebe de uma mesma fonte. O “princípio da realidade”, no entanto, vem sempre se opondo ao “princípio do prazer”, para que não se morra de uma overdose de gozo, como mostra o pequeno excerto abaixo reproduzido.

Um menino de seis anos de idade, ao observar seu irmão mamando no peito da mãe, fala: “Mamãe, eu também quero mamar!”. A mãe responde: “Mas você já mamou...”. E ele exclama: “Mas eu não sabia!”. O menino almeja retornar ao gozo que ele supõe que teve, agora, sabendo… Como se diria, sabendo das coisas… Essa fantasia (ressonância emitida pelo software dos afetos – grifo meu) parece ser a mesma que se revela no dito coloquial dos adultos: “Eu era feliz e não sabia!” [Trecho do livro – “Lacan, o grande freudiano” – de Marco Antonio Coutinho]

O software que agia na primeira fase da existência do indivíduo é o mesmo que ainda hoje ressoa no peito do adulto. Por isso é que se convencionou (e com razão sobrada) que o passado tem muito a dizer ao presente. Às vezes, enxergamos viajando conosco a criança astuta, chorona e rebelde de tempos atrás. Por que não dizer que há momentos em que somos surpreendidos repetindo gestos, cacoetes e atitudes apreendidas e aparentemente perdidas nas brumas do tempo ou encaixotadas em um porão obscuro da mente?



P.S.:

Ao falar em “porão obscuro” e sobre a influência de fatos do passado de criança sobre o nosso cotidiano de adulto, lembrei-me de uns versos que fiz e postei aqui nesse recanto em junho de 2012. O(a) leitor(a) que desejar conferir é só clicar aqui no título Porão Esquecido.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 08 de agosto de 2015

Site da Imagem: techtudo.com.br/noticias

02 agosto 2015

Foi-se a Utopia: “Tudo é Permitido na República”




Cuidemos de tornar esta vida tolerável; ou, se for demais, que pelo menos sonhemos que assim é” sentenciou Louis-Sébastien Mercier, tomado pelo espírito utópico. Disse isso, em seu livro, “Memórias do ano 2440”, publicado no longínquo 1771.

Longe ainda de 2440 e, em pleno 2015, o que vemos e sentimos, na realidade, é o declínio acentuado dos impulsos utopistas do Homo Sapiens brasileiro, por um mundo mais digno e justo.

Aqui, nas terras de Dom João VI, navegamos em um mar de escândalos nunca vistos ou imaginados. Ninguém mais acredita num futuro promissor. E como se poderia acreditar, quando o que mais se pensa é na maneira mais esperta de manipular a barca do estado que se encontra à deriva?

A situação vexaminosa que estamos enfrentando nos últimos anos, trouxe-me à mente a peça “Ascensão e Queda de Mahagonny”, do famoso dramaturgo alemão, Bertolt Brecht (1898 ― 1956):

No primeiro ato da peça, o procurador Willy e seu subordinado encontram-se perdidos no meio de um vasto deserto. O caminhão em que viajavam à procura de ouro pifou ou emperrou, e não tinha como ir nem para frente, nem para trás. O procurador, então, é tomado por uma ideal, em tudo parecido com o que comumente se ver no submundo de nossa republiqueta. De uma forma muito usual entre nós, o personagem principal do enredo de Bertolt Brecht, dispara:

Bem, tive uma ideia: já que não podemos tocar para frente, vamos fundar uma cidade, e lhe dar o nome de Mahagony, que quer dizer ― cidade arapuca. Ela vai ser como a arapuca que se arma para os passarinhos. Em toda parte se dá duro e se trabalha, mas aqui se goza”.

Enquanto Mahagonny está a espera de um tufão, os grandes e inteligentes homens chegam a uma “sábia” decisão:

Nós não precisamos de furacão nem precisamos de tufão, porque todo o horror de seu poder, nós mesmos podemos fazer.
Não tenham vã esperança/Não há retorno mais/O dia traz bonança/ E logo a noite avança,/mas a manhã jamais.
Quando há algo que podes comprar com grana/ Pega então a grana/ Quando alguém passar com grana,/Dá-lhe uma paulada e toma a grana/ Isto é permitido.
No interesse da ordem/Em benefício do Estado,/Para o futuro da humanidade,/Pelo teu próprio conforto/ Tudo é permitido”.

Com o fim da guerra fria, na década de 1980, a utopia de um mundo melhor e justo, ainda dava ar de sua graça entre os de minha geração. Pensávamos que a gastança de bilhões em armas e bombas, se transportaria para a saúde, educação e para as necessidades comunitárias, como num passe de mágica.

Em nossa tenra e inocente imaginação pululavam heróis, messias e salvadores da pátria mãe gentil. Tempo em que não tínhamos ciência ou noção de que o herói e o vilão ― paradoxais e indissociáveis habitantes da alma humana ―, compunham o enredo fantasioso dos autores de livros de História, com suas máximas por nós consideradas sagradas. Não sabíamos que esses dois personagens internos, no decorrer do tempo, constantemente trocavam de papéis, sempre de acordo com suas temporais conveniências.

Foi-se o tempo da utopia edênica do homem monolítico, que expulsa de si toda a maldade para ser ilusoriamente, só bom. A inteligência manipulativa do Homo Sapiens da atualidade trabalha, incessantemente, para que seu lado vilão não apareça aos olhos dos outros. Uma vez no poder, modificam-se até as leis para que resplandeça perante a sociedade apenas a sua face de herói. 

Na Mahagonny de Bertolt Brecht, assim como nas altas esferas de Brasília (Centro dos três poderes republicanos), tudo é permitido no interesse da ordem e em benefício do Estado, desde que os anseios da plebe não entrem em rota de colisão com o próprio conforto dos legisladores e guardiões das leis. O “tudo é permitido” em nome da governabilidade, lá atrás, no começo da comédia republicana, tinha um outro nome ― “Encilhamento”. Esse termo usado no alvorecer de nossa fantasiosa república (por volta de 1890)correspondia a um desastroso programa econômico de endividamento que transformou o dinheiro da Fazenda em papel. No teatro republicano de hoje, esse nome quer dizer o mesmo que: “Pela governabilidade, tudo é permitido.”
 
Pouco antes das chamas tomarem conta de Mahagonny, um cortejo de manifestantes andando sem ordem, uns contra outros, portam cartazes com os seguintes dizeres:

Esta bela Mahagonny tem de tudo,/Enquanto vocês tiverem dinheiro./Tem o que se pretenda,/Pois tudo está à venda,/ E não há nada que não se possa comprar.”


P.S.:

Na ausência de princípios morais, o que aparece em seu lugar é o oportunismo dissimulado travestido de “boas ações”. Uma vez no poder, os indivíduos são tendenciosos a promover a autofagia, fragmentando-se em grupos rivais a serviço da própria agressividade adormecida.

Ao apagar a luz da Utopia, o Homem Sapiens da pós-modernidade mergulhou na escuridão de uma vida sem expectativa. Dessa forma, além de sombrio, frio e cruel, converteu-se definitivamente em um predador de si mesmo e dos outros. O seu “modus vivendi” está, agora, intimamente ligado ao uso e abuso do instinto humano mais primitivo e perverso  o instinto de destruição.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 02 de agosto de 2015


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