O
software é um programa micro-eletrônico destinado a
armazenar uma sequência de instruções escritas, a fim de que
tarefas específicas possam ser interpretadas e executadas pelo
computador. Acho que poderíamos transportar o conceito desse
elemento do mundo cibernético para a vida instintiva do indivíduo
(com seus impulsos e afetos). Não é à toa que, pela sua
complexidade operacional, comumente se compara o computador ao
cérebro humano.
Sendo
assim, os dois primeiros softwares humanos corresponderiam ou
conteriam as primeiras experiências do bebê: a de gratificação
que embute o prazer e a de frustração, representada pelo desprazer.
Esses dois softwares centrais, com o tempo se conectariam a softwares
secundários, como o da submissão, da inveja, do ciúme, da
agressividade contra o intruso, do afeto de afeição e apego.
Diríamos que o software dos afetos, que agem a partir do primeiro
vagir do bebê, continua a reverberar indefinidamente, toda vez que o
adulto se confronta com situações análogas às vivenciadas nos
seus primeiros anos de vida.
“Recordar,
repetir e elaborar” constituiriam a base do mecanismo
consciente/inconsciente da psique, diria Freud em “Além
do Princípio do Prazer”. Ou seja, as reações instintivas
com sua gama de afetos ambivalentes repercutidas no adulto, no fundo,
são repetições de cenas que vivenciou em sua tenra infância. A
psicanálise faz ver que o modo de inserção do adulto na vida
social, está repleta de ecos vindo lá de trás, implantados ou
inscritos em softwares do intricado campo mental. Às vezes, tal qual
um computador com alguns arquivos travados, conservamos certos gestos
ou um tipo de conduta, sem saber que nesses atos compulsivos exibimos
um ordenamento previamente programado.
O
software responsável pelo sentimento da criança que, para evitar o
desprazer de não ter um brinquedo igual ao do seu amiguinho, toma-o
e o destrói, é o mesmo que age na vida adulta. Como muito bem
definiu, Zuenir Ventura, em seu livro “Mal Secreto”: “A
inveja é não querer
que o outro tenha”.
Como
tudo na vida é
repetição, o sentimento de inveja, no adulto, não passa de
uma reprise da primeira inveja vivenciada. É para evitar o doloroso
desprazer de ver nossos recalques sendo expostos, que reprovamos no
outro (o invejoso) o sentimento de inveja que experimentamos
primariamente na infância. Dizem os filósofos que, dos sete pecados
capitais, só a inveja se esconde. O escritor, dramaturgo e torcedor
fanático do Fluminense do Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues, já
dizia: “há coisas que o sujeito não confessa nem ao padre, nem
ao psicanalista, nem ao médium depois de morto. Uma delas certamente
é a inveja”.
Donald
W. Winnicott, pediatra inglês, cuidou de crianças adolescentes
traumatizadas na época da segunda guerra mundial e, para melhor
compreender o seu drama interessou-se pela psicanálise. Ele, por
fim, entendeu que a vida social e afetiva do adulto dependia muito da
criança que um dia existiu.
Françoise Dolto, psicanalista
francesa que dedicou toda sua vida a cuidar de crianças que perderam
os pais na segunda guerra mundial, assim se referiu, ressaltando o
sofrimento nascido das separações primeiras, dos primeiros
sentimentos de frustração e desamparo experenciados por meninos e
meninas de seu tempo:
“Esses
momentos de graça do fenômeno humano ―
que somos para nós mesmos ―,
todos nós conhecemos desde a infância. […] Cada um de nós,
quando estreitado pelo sentimento de não ser compreendido, de ter um
sentimento impossível de comunicar; sentimento doloroso que faz o
corpo estar mal em meio aos outros, em família, em sociedade, num
grupo, na multidão, cada um de nós sente a solidão amarga que
traduzimos por tédio, angústia, tristeza e melancolia”.
Tanto na criança já grandinha
de seis anos de idade quanto no adulto, o software do prazer bebe de
uma mesma fonte. O “princípio
da realidade”, no
entanto, vem sempre se opondo ao “princípio
do prazer”, para que não se morra de uma overdose de gozo,
como mostra o pequeno excerto abaixo reproduzido.
Um menino de seis anos de idade, ao observar seu irmão mamando no peito da mãe, fala: “Mamãe, eu também quero mamar!”. A mãe responde: “Mas você já mamou...”. E ele exclama: “Mas eu não sabia!”. O menino almeja retornar ao gozo que ele supõe que teve, agora, sabendo… Como se diria, sabendo das coisas… Essa fantasia (ressonância emitida pelo software dos afetos – grifo meu) parece ser a mesma que se revela no dito coloquial dos adultos: “Eu era feliz e não sabia!” [Trecho do livro – “Lacan, o grande freudiano” – de Marco Antonio Coutinho]
O software que agia na primeira fase da existência do indivíduo é o mesmo que ainda hoje ressoa no peito do adulto. Por isso é que se convencionou (e com razão sobrada) que o passado tem muito a dizer ao presente. Às vezes, enxergamos viajando conosco a criança astuta, chorona e rebelde de tempos atrás. Por que não dizer que há momentos em que somos surpreendidos repetindo gestos, cacoetes e atitudes apreendidas e aparentemente perdidas nas brumas do tempo ou encaixotadas em um porão obscuro da mente?
Um menino de seis anos de idade, ao observar seu irmão mamando no peito da mãe, fala: “Mamãe, eu também quero mamar!”. A mãe responde: “Mas você já mamou...”. E ele exclama: “Mas eu não sabia!”. O menino almeja retornar ao gozo que ele supõe que teve, agora, sabendo… Como se diria, sabendo das coisas… Essa fantasia (ressonância emitida pelo software dos afetos – grifo meu) parece ser a mesma que se revela no dito coloquial dos adultos: “Eu era feliz e não sabia!” [Trecho do livro – “Lacan, o grande freudiano” – de Marco Antonio Coutinho]
O software que agia na primeira fase da existência do indivíduo é o mesmo que ainda hoje ressoa no peito do adulto. Por isso é que se convencionou (e com razão sobrada) que o passado tem muito a dizer ao presente. Às vezes, enxergamos viajando conosco a criança astuta, chorona e rebelde de tempos atrás. Por que não dizer que há momentos em que somos surpreendidos repetindo gestos, cacoetes e atitudes apreendidas e aparentemente perdidas nas brumas do tempo ou encaixotadas em um porão obscuro da mente?
P.S.:
Ao
falar em “porão
obscuro” e sobre
a influência de fatos
do passado de criança sobre o nosso cotidiano de adulto, lembrei-me
de uns versos que fiz e postei aqui nesse recanto em junho
de 2012. O(a) leitor(a) que desejar conferir é só clicar aqui no
título ―
“Porão
Esquecido”.
Por
Levi B. Santos
3 comentários:
Parabéns pelo texto, Levi.
Observo que diagnosticarmos a criança que viaja conosco torna-se uma percepção de grande importância para superarmos nossos surtos de imaturidade a fim de que tenham duração mais curta e possamos recuperar a nossa lucidez quanto ao nosso processo de crescimento existencial. Do contrário, o ser humano pode levar uma vida inteira tentando superar suas imaturidades.
Há que se dialogar sempre com essa criança! Inclusive para que tenhamos mais qualidade de vida e não sejamos vítimas de nosso próprio comportamento sendo certo que umas das causas da infantilidade pode estar nos ganhos secundários de uma situação. Não seria isto o que ocorre com o menino de seis anos quando quer mamar igual a um bebê, conforme citou em seu texto?
Levando o escopo do texto (Software dos Afetos) para o que acontece no âmbito dos poderes, seu raciocínio sobre o anseio do menino de seis anos em voltar a mamar vem a calhar maravilhosamente, Rodrigo.
A expressão tão usada e abusada entre nós- “Mamar nas tetas do governo” não deixa de ser um sucedâneo do software que estimula os “bebezãos” a permanecerem, além da conta, alimentando-se sem o mínimo de esforço daquilo que, por lei, não é mais seu. (rsrs)
Inegavelmente é uma imaturidade pessoas usarem do poder político para se enriquecerem ilicitamente e de maneira extravagante deixando a maior parte da população em dificuldades. É triste reconhecer que os nossos políticos eleitos são neste aspecto pessoas imaturas ainda que o sistema também os condicionem a roubar para chegarem ao poder e depois se manterem lá.
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