O francês, Jacques Lacan,
filho de pais católicos, sob o pretexto de retornar o estudo da
psicanálise onde o pai da psicanálise tinha deixado, empreendeu uma
releitura do inconsciente freudiano surpreendentemente muito próxima
dos conceitos da Teologia Judaico-cristã.
Mas o que levou Lacan
a se interessar tanto pela Teologia Cristã, da qual o “Judeu
infiel”, Freud, passou ao largo? Ressalte-se,
aqui, que o Judaísmo de Freud nunca deixou de estar
presente em seu inconsciente, como denota essa afirmação que fez em
1927: “o pai sempre esteve oculto por trás de toda figura
divina, como seu núcleo”.
Lacan, por seu turno,
empreendeu uma exegese pós moderna da bíblia. Foi com o
auxílio da linguística que conseguiu realizar uma interpretação
psicanalítica dos textos bíblicos mais articulada que a de Freud,
que considerava os rituais religiosos uma neurose obsessiva.
No polêmico seminário ―
“Nomes
do Pai” ─ , Lacan
afirmou: “… É diante desse Deus (judaico) que Freud se
deteve”.
Contudo,
no que diz respeito ao Corão, tanto Freud
quanto Lacan permaneceram praticamente
mudos, talvez, quem sabe, pela razão de os muçulmanos não
perceberem Deus como Pai, como também pela sua total rejeição à
família da Santíssima Trindade. Os que seguem o Corão não admitem
que Deus seja pai do messias cristão. O conceito de “Pai Celeste”
para o muçulmano é uma blasfêmia. O Corão não comporta a dedução
psicanalítica de que Deus é um “Pai Simbólico ou imaginário”,
sucedâneo do pai natural, ou tutor, que a criança um dia teve, e
que lá dos arquivos
profundos e impossíveis de ser delatados da psique do adulto
ocidental, continua a emitir suas ressonâncias.
“Nos países Islâmicos é mais
complicado, não porque os muçulmanos não tenham inconsciente. O
fato é que um xiita em crise jamais procuraria um analista. É mais
provável que procurasse um líder religioso” —
disse Renato Mezan, em uma entrevista em 2006.
Jacques Lacan, no
seminário 11 (falando sobre o Sujeito e o Outro) disse uma grande
verdade: “cada
um de nós é um Eu somente porque há um conceito de outro”
ou seja, “é
pela existência do outro que definimos e redefinimos a nós mesmos.”
Para Lacan o sujeito é sempre um efeito da linguagem
de um Outro que lhe antecede. “Quanto mais o sujeito tenta
resgatar a si mesmo, buscando a verdade de sua conduta, mais depara
com algo não seu, que vem do outro”. O sujeito
ao nascer no campo do outro, a sua linguagem, em consequência, vai
ser portadora dos significantes materno e paterno.
Não sei, mas pode ter sido as
raízes do catolicismo bem plantadas em sua infância que intuiu em
Jacques Lacan a ideia de criar o
conceito de um “Grande
Outro”. O que seria esse “Grande Outro” senão
a imago paterna do Deus católico que nomeia mas não é nomeado,
como fez seu pai, um padre católico que, em homenagem ao Grande
Jacó, o nomeou de Jacques ―
Jacó, em sua variante francesa.
Ao enunciar que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem Lacan evoca a Teologia
Judaico cristã. Valeu-se da interpretação metafórica do “...no
início era a Palavra”
do prólogo do evangelho de João para explicar a esfera do
inconsciente. Se no início era a palavra, pode-se concluir
que o inconsciente tem a ver com a linguagem. Françoise Dolto
(pediatra e psicanalista das crianças que perderam seus pais na
primeira grande guerra mundial), em seu livro “Tudo
é Linguagem”, disse: “tudo que se
refere ao agir das pessoas, ao que elas dizem, ao seu comportamento,
estrutura a criança”.
A influência do catecismo católico
que manejava quando criança, fez-se presente em suas elaborações
psicanalíticas. Não foi à toa que em um dos seus mais concorridos
seminários, denominado por ele ―
“Nomes do Pai” ―,
Jacques Lacan assim se referiu: “...é
importante apontar que o conceito 'O-Nome-do-Pai'
tem a ver com a religião e não com a
ciência”. Ele
considerava um paradoxo precioso o fato de o pai dar a seus filhos e
filhas o nome pelo qual os judeus se referiam a Deus.
O trecho replicado abaixo, que trata
principalmente do conceito “Nome
do Pai”,
evidencia o quanto ele bebeu da tradição
judaica na formulação de seus conceitos psicanalíticos:
“O Nome-do-Pai” é o
próprio nó. E o que é um nó? É um furo e uma modulação em
torno deste furo. O nome próprio é um furo(como a coisa não tem
nome, dá-se um nome à ausência da coisa). Os judeus são muito
claros a respeito daquilo que chamam de Pai. Enfiam-no em algum lugar
do furo que não podemos sequer imaginar: “Eu sou o que
sou” ─ isto é um
furo, não é? Um furo(…) engole as coisas, e às vezes torna a
cuspi-las. O que ele cospe? O Nome, o Pai como um nome”.
Quando afirma
que o nome do Pai é um furo ele se reporta ao
vazio do interior do vaso.
O espaço vazio do vaso é estruturante. O
furo deve permanecer lá, contornado pelas paredes do vaso.
Adorar o contorno do furo, é o mesmo que idolatrar Deus ou fazer
Dele um ídolo. Afinal, o que
interessa é que o
furo é um furo, como o
célebre
“Eu sou o que sou”
relatado no livro de Gênesis.
Sobre os conceitos psicanalíticos
criados por Jacques Lacan, Elisabeth Roudinesco,
autora de sua única biografia, assim se referiu: “esta doutrina
pertence a tradição cristã”.
“Na páscoa de 1953 Lacan
redigiu uma carta a seu irmão beneditino na qual reivindicava nas
entrelinhas e sem ambiguidade o pertencimento de sua doutrina, à
tradição cristã”. (Gérard
Haddad)
A tradição judaico-cristã em suas
obras falou tão alto, que o título ─
“Escritos”
− posto na Capa do seu
primeiro camalhaço, foi considerado por muitos dos seus seguidores,
uma homenagem a velha bíblia de estudos em hebraico que levava
sempre consigo a tiracolo, em cuja capa principal reluzia em letras
douradas: “Escrituras
Sagradas”
Gérard Hadadd, em
“O
Pecado Original
da
Psicanálise” -
(Editora
Civilização Brasileira -2012),
nos dá uma ideia de
como a vivência religiosa estava tão profundamente arraigada no
inconsciente lacaniano. Diz Hadadd:
“Em 1941, Sylvia, esposa
de Lacan dá a luz a uma filha a quem ele chamou
Judith, um perfeito nome judeu, já que significa simplesmente judia.
Lacan queria uma filha, filha de Israel, e que disso trouxe a
insígnia. Uma tal escolha não deixa de ser audaciosa e imprudente,
naqueles anos em que o antissemitismo matava sem intimação”.
Em
“O
Triunfo da Religião”,
Lacan,
enfim,
reconhece “o poder da religião ao
dar um sentido às formas mais insólitas da experiência humana”.
Entretanto,
não deixa de dar uma alfinetada ao dissertar
sobre
o
lado avesso da função
consoladora da religião:
“a religião é feita para
isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não
funciona”.
Ao
forjar a célebre pergunta “O que o Outro quer de mim?”,
Lacan, com o auxílio da linguística, pode perceber
claramente que o inconsciente é o discurso do outro. Bem antes, ele
já entendia que na psique do seguidor da cultura judaico-cristã, o
inconsciente era estruturado como o discurso ou o Desejo de um Grande
Outro, arquétipo que no mundo ocidental costuma ser
chamado Deus, ou Pai celestial. No Cristianismo, é o desejo
internalizado de um Grande Outro a que se refere Lacan
ou de um Pai, (da tradição judaico cristã), que prevalece
sobre o desejo do Filho: “… contudo não seja feita a minha
vontade, mas a tua.” (Lucas 22. 41-42) A ambivalência do homem
nascido na cultura judaico-cristã que projetava em seu Deus Desejos
e contradesejos exercia uma tremenda fascinação em Lacan.
Fascinação essa advinda de seus próprios afetos ambivalentes: é
que ele sentia tanto empatia quanto antipatia à religião dos
judeus. Quando retornou a falar sobre seu concorrido seminário ―
“O
Avesso da Psicanálise” ―
em numa longa entrevista em 1968, fez questão de acentuar a
semelhança entre o midrash, a arte judaica de ler a Bíblia,
e a psicanálise.
Gérard Haddad,
um dos discípulos mais
famosos
de
Lacan, foi,
talvez, quem mais disseminou
pelo mundo o
conteúdo dos seminários
lacanianos
e sua correspondência com a
religião ―
deduções conceituais, em
sua maioria, atreladas aos símbolos da cultura judaico-cristã.
Sobre as
incursões exegéticas psicológicas que Lacan
empreendeu
nas
muitas leituras de sua Bíblia em hebraico,
Haddad chegou a
dizer algo emblemático em
sua obra “O Pecado
Original da Psicanálise”:
“Não é ilegítimo considerar
a psicanálise, sobretudo na sua origem, como produzida por essa
Coisa judaica. Ela nasceu justamente sobre as ruínas do judaísmo e
alimentou-se de seus restos. […] O mito fundador do judaísmo, o
“sacrifício de Abraão”, Lacan transformou no equivalente do
Complexo de Édipo, como mostra esse trecho de sua obra escrita em
1938, Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo (Outros
Escritos ―
Lacan ―
Zahar editora, edição 2003): '[…] ao advento da
autoridade paterna corresponde uma moderação da repressão social
primitiva. Legível na ambiguidade mítica do sacrifício de Abraão,
que, além do mais, o liga fundamentalmente a expressão de uma
promessa, esse sentido não é menos visível no mito de Édipo'”.
O certo é que Lacan tomou
emprestado muitos elementos míticos da cultura judaico-cristã para
elaborar sua exegese psicoteológica, como o autor do livro “A
Bíblia Pós Moderna – Bíblia e Cultura Coletiva” (Edições Loyola -página
202), faz ver:
“Uma dificuldade no
desenvolvimento de um discurso psicanalítico apropriado a textos
teológicos surge porque o conteúdo inconsciente é, em grande
parte, visto de forma não discursiva, em termos de campos de força,
imagens e arquétipos, e, por isso, não podem ser lidos da mesma
forma que a linguagem teológica. É exatamente aqui que Lacan
revela a possibilidade de unir o inconsciente ao discurso teológico…
Lacan atribui caráter linguístico e textual ao próprio
inconsciente. Nessa perspectiva, textos teológicos e manifestações
do inconsciente são homólogos e abertos à estratégias
interpretativas comuns”.
Em
1991, na comemoração dos dez anos da morte do
pensador e católico rebelde Jacques Lacan,
a revista CULT nº 77, publicou
o
artigo ―
“Um
Morto Contra a Morte”
de
autoria do
psicanalista Fabio
Herrmann
―,
encimado
por um
subtítulo ousado e provocador, que reproduzo abaixo:
“Lacan
é como Cristo que fala por parábolas, para que, nesse caso, tendo
ouvidos para ouvir, não ouçam aqueles que não merecem”.
No seu resumido artigo, sobre as
analogias que Lacan, em seus longos e enigmáticos
seminários, fez da Teologia Judaico-Cristã com a Psicanálise,
assim se expressou Fabio Herrmann:
“...a obscuridade do cânon
interpretativo propicia, inelutavelmente, o efeito magistral: na
incerteza, faz-se mister um intérprete autorizado, já que a
evidência se escondeu. Como nas religiões, o sentido vago favorece
a proliferação de mestres e discípulos”.
Por
Levi B. Santos
Guarabira,
12 de agosto de 2016