04 fevereiro 2018

A IDADE MÉDIA, A ANTIGUIDADE E O PRIMITIVISMO DE NOSSA PSIQUE ─ FRENTE AOS “NOVOS TEMPOS”

Torre de Carl G. Jung em Bollingen – Suíça (1955)


Carl Gustav Jung, um dos fundadores da psicanálise, nos últimos trinta anos de sua vida decidiu construir uma Torre à beira de um belo e tranquilo lago em Bollingen (Suíça), para lhe servir de refúgio. Nesse pequeno castelo tencionava viver intensamente os conteúdos do seu inconsciente, longe da algazarra e correria louca das cidades. Deu início a essa empreitada em 1922. A obra, após várias reformas, só atingiu sua forma definitiva em 1955, seis anos antes de sua morte.

Do seu livro “Memórias, Sonhos, Reflexões” (Editora Nova Fronteira, 2016 – 30ª Edição) trago um trecho (página 236) que, em sua essência, está em consonância com os sombrios e fugazes “Tempos Novos” que estamos a experimentar na atualidade. Em sua época, o autor já realçava a fluidez da pós-modernidade que, com seu impetuoso avanço, ambicionava dissolver todo conteúdo sólido do primitivismo de nossa psique.

Com a perspicácia de um exímio escavador do nosso fértil solo psíquico, Jung, nos mostra, de forma contundente, como o mal estar atual, em grande parte, tem sua causa na pressa e na expectativa doentia de se tomar posse de um futuro fantasioso e ilusório, rotulado de “novo”. Vejamos o que diz o psicanalista e profundo estudioso dos meandros da alma humana, nesse precioso retalho de seu expressivo Livro de Memórias:


Tanto nossa alma quanto nosso corpo são compostos de elementos que já existiram na linhagem de nossos antepassados. O “novo” na alma individual é uma recombinação variável ao infinito de componentes extremamente antigos. Nosso corpo e nossa alma têm um caráter eminentemente histórico e não encontram no “realmente-novo-que-acaba-de-aparecer” lugar conveniente, isto é, os traços ancestrais só se encontram parcialmente realizados.

Estamos longe de ter liquidado a Idade Média, a Antiguidade, o primitivismo e de ter respondido às exigências de nossa psique a respeito deles. Entrementes, somos lançados num jato de progresso que nos empurra para o futuro, com uma violência tanto mais selvagem quanto mais nos arranca de nossas raízes. Mas é precisamente a perda de relação com o passado, a perda das raízes, que cria um tal “mal estar na civilização”, a pressa que nos faz viver mais no futuro, com suas promessas quiméricas de idade de ouro, do que no presente, que o futuro da evolução histórica ainda não atingiu. Precipitamos-nos desenfreadamente para o novo, impelidos por um sentimento crescente de mal-estar, de descontentamento, de agitação. Não vivemos mais do que possuímos, porém de promessas; não vemos mais a luz do dia presente, porém perscrutamos a sombra do futuro, esperando a verdadeira alvorada. Não queremos compreender que o melhor é sempre compensado pelo pior. A esperança de uma liberdade maior é anulada pela escravidão do Estado, sem falar dos terríveis perigos aos quais nos expõem as brilhantes descobertas da ciência. Quanto menos compreendemos o que nossos pais e avós procuraram, tanto menos compreendemos a nós mesmos, e contribuímos com todas as nossas forças para arrancar o indivíduo de seus instintos e de suas raízes.


O que concluir enfim, senão que somos incapazes de cancelar o conteúdo primitivo de nossa psique. Tentar reprimir esse conteúdo seria um mecanismo de defesa para se evitar o desprazer; sublimá-lo, por sua vez, seria alcançar um nível de satisfação a que, por exemplo, os poetas, em seus versos, estão acostumados a experimentar. As metáforas representativas de seus afetos paradoxais, o artista retira de suas próprias profundezas mentais, tal qual uma bordadeira o faz com a agulha e seu novelo de linha: o intrincado bordado, fruto do exercício de memória, acaba por deixar impresso no tecido toda a expressão de sua divina arte. Do mesmo modo, acontece com o músico que, ao organizar ou criar a partir dos elementos arcaicos ou primitivos de sua psique, presenteia-nos com sua expressiva e divinal sinfonia; sinfonia que ao reverberar nas cordas de nossos corações nos contagia de alegria e beatitude.

Mas o que nos reserva o futuro diante do fulminante progresso tecnológico? Para evitar o que se considera “desperdício de tempo”, em nome de um hipotético futuro, o mercado procura tudo massificar, visando exclusivamente o lucro. Tempo é Ouro!. Aqui, você tem tudo de bom sem a necessidade de demorados momentos de reflexão e esforço mental” —, diz o lema estampado e oferecido em suas atraentes embalagens.

O certo é que o passado, a idade média e o que é visto como antiquado, não morre, mas continua arquivado em nossa memória. Ressonâncias da trágica, cômica, feliz, inebriante e melancólica história de nossos ancestrais nunca deixam de fluir em nossa alma. Foi para ficar em paz e harmonia com a natureza e ouvir os ecos e vozes ancestrais do seu “eu” interior, em toda sua plenitude, que Carl G. Jung construiu sua Torre em um local aprazível e evocador das moradas primitivas da humanidade, bem longe da avassaladora modernidade que a tudo liquefaz.

É longe da balbúrdia geral denominada “O Futuro em Suas Mãos” , que se pode escutar a suave melodia que emana de nossas profundezas. Só realizando essa fuga, será possível reviver gratas sensações depositadas e esquecidas nos velhos porões de nossa psique. Só distante do frenesi consumista que a mídia nos impõe é que poderemos, enfim, revisitar prazeres esquecidos na poeira do tempo, coisas sublimes que a agitação do nosso dia-a-dia, em nome de um futuro mecanizado e hostil, inviabilizou.

Por Levi B. Santos
Guarabira, 04 de fevereiro de 2018

5 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Prezado Levi,

Inicialmente quero parabenizá-lo pela pertinente e instrutiva postagem que toca em assuntos bem atuais mesmo escritos há mais de meio século por um notável pensador da humanidade contemporânea.

Lamento constatar, meu amigo, que a humanidade tende a passar (ou já está passando) por um período indeterminado de alienação. Hoje, com as novas tecnologias da informação bem à disposição de todos, que é uma das "brilhantes descobertas da ciência", perde-se longas horas do dia "navegando" numa virtualidade de sítios de relacionamentos, bem como nos aplicativos multiplataformas de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones, tal como o popular WhatsApp, de modo que poucas oportunidades restam para o homem pensar e refletir.

Entretanto, a análise de Jung me traz uma ponta de esperança. Segundo concluiu com as suas palavras, Levi, "somos incapazes de cancelar o conteúdo primitivo de nossa psique". E, deste modo, mesmo que a humanidade venha a se "perder" por um tempo na sua alienação, é possível que um lapso de consciência no futuro venha a questionar e tentar mudar essa nova realidade de ignorância que está se formando no mundo.

Independentemente disso, torço também que sobre ao menos um remanescente para que, ao final deste sombrio século, possa comunicar algo esclarecedor às gerações futuras que deverão entrar no vindouro. Afinal, não podemos contar somente com a nossa biologia sendo importantíssima a transmissão de um legado cultural.

Ótima semana!

Levi B. Santos disse...

Sem sombra de dúvida, Caro Rodrigão "...somos incapazes de cancelar o conteúdo primitivo de nossa psique".

Quem não é tocado em suas profundezas psíquicas, com o vídeo de Carl. G. Jung em sua fantástica Torre, cercada de árvores centenárias e circundada por um grande, belíssimo e tranquilo lago?

Para dar um pequeno e emocionante passeio por este lugar arquetípico, ao som de uma sinfonia divinalmente inspirada é só acessar o Link que reproduzo abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=kgrnIBgOQKM

George disse...

Grande reflexão e parabéns por achar algum "tempo" nessa nossa "correria louca", na busca inútil de abraçar futuros (risos).
Repetimos comportamentos num atavismo incrível e impensável. Reproduzimos até trejeitos e outros gestos, imitamos o que parecia "inimitável", emulando caminhos desconhecidos, refazendo "sem querer", o caminho de antepassados ignorados. Estamos mesmos impregnados de símbolos como apontou certeiramente Jung. Eles (os símbolos) estão representados em toda parte, presentes na realidade mais comezinha, do ritual escolar de reverência entre aluno e mestre, ao ritual fúnebre que encomenda a alma dos mortos, dos festejos do nascimento de um rebento, aos badulaques e pajelanças mais casamenteiras. Símbolos em orações à mesa, em reuniões familiares em círculo, no ato patriótico de empunhar a mão ao peito ao som do hino da bandeira, nas comemorações natalinas, pacoais, carnavalescas, de aniversário e em tudo mais. Tudo parece ser de fato inspirado pelo passado, sem que se dê por isso, como diria Fernando Pessoa. Como observou uma vez de Mark Twain em outro contexto, refletindo sobre a impossibilidade lógica de um passado repetir-se, não vejo como não relembrar sua deliciosa conclusão, reescrita por minha pena torta: o passado (ou a história) não se repete, mas às vezes ele rima.

Levi B. Santos disse...

É isso aí George. É praticamente impossivel acessar nossa memória afetiva em meio ao corre-corre e barulhos insuportáveis de nossas ruas.

Também não sei se essa mania de reviver o nosso idílico Éden é coisa de quem ultrapassou os setenta anos de idade (rsrs). Talvez seja um consolo que a natureza reservou para os idosos.
O certo é que o "Reino do Rito" exige um estado de espírito receptivo e um ambiente propício para que se possa escutar as "Vozes Ancestrais" provenientes de um porão, aparentemente esquecido, denominado "Inconsciente" -, como uns versos que escrevi, anos atrás, nesse Blog, e que aqui faço questão de, em parte, replicá-los:



"A voz de muitos está no meu grito,

Pois em mim tudo foi repassado.

E nas dores que me deixam aflito,

Não estou só, nem abandonado,

Até os gemidos que emito no ar,

Expressam dores dos antepassados.



Cada riso, lágrima ou pranto,

São expressões que vem lá de trás.

Se repetem a maneira de um rito,

Estes ecos, esta voz, estes ais.

E me queimam com ferro e fogo,

Evocando os meus ancestrais."

George disse...

Puxa, gostei demais destes versos. Sensacional!!!
Disse tudo. Vou publicar isso na introdução do livro de poemas!!!