13 maio 2020

O PSIQUISMO EM TEMPOS DE PANDEMIA ― BREVES CONSIDERAÇÕES




É na linguagem apreendida desde os meus primórdios que hoje, no ocaso da vida, ainda me ancoro. O que faço com as pulsões, fantasias, astúcias e finezas do meu tempo pueril, senão, dia a dia revolvê-las, reciclá-las ou adorná-las com as plumagens esmaecidas do presente?

Quando as trevas do mundo se me apresentam com toda sua dureza, acossado por uma pandemia horrorosa e mortal de um vírus que escolheu justamente os idosos com suas comorbidades para estabelecer a seleção “natural” mais drástica da pós-modernidade, só me resta empreender uma autoanálise. Então, à guiza de recolher algumas pérolas envido esforços na tentativa de ver, mais de perto, fantasmas escondidos nas profundezas de meu obscuro oceano psíquico, instância essa, denominada por Freud, “O Inconsciente”.

Sob o império das necessidades inerentes ao momento extremamente difícil da atualidade que, no meio religioso, já se nomeia como “o fim dos tempos”, nessa quarentena resignei-me a tatear por dentro de casa, vendo paulatinamente, as páginas cinzentas dos dias tombarem sobre as páginas negras da noite, ante meu débil olhar embaciado pela idade avançada.

Nas noites intercaladas por momentos insones, ainda tenho alguns sonhos de esperança. Ainda sonho me vendo criança, colhendo fragmentos do Jardim do Éden nos idos de 1946, quando em Alagoa Grande nascia eu para a linguagem. Os meus pais, ainda tão jovens e imaturos, saídos de uma curta adolescência, usaram o VERBO, e o DESEJO Paterno/Materno para encarnar-me. Fui o primogênito, e como tal, honrado com o título de provedor da família, como bem simboliza o nome Levi, de origem hebraica, que hoje me faz jus, em todos os aspectos.
O psicanalista francês, Jacques Lacan, que promoveu a releitura das obras de Freud, fazia em seus seminários referências ao “Nome-do-Pai”, junto com a tríade do “simbólico, do real e do imaginário” ─ arquétipo introjetado pelo pai no psiquismo do filho. Mesmo já adulto, quando esse filho dá uma ordem, é a voz ancestral do Pai que fala através dele.

Um DESEJO, Uma PALAVRA, um dia nos fundou. Somos filhos das PALAVRAS. Elas permanecem lá, inscritas em nosso corpo. As ruínas dos castelos que imaginariamente construímos na infância, com certeza, estão arquivadas em nosso cérebro, Para não sermos consumidos, em tempos sombrios como esse que estamos atravessando, ressonâncias se deslocam dos alicerces movediços de nossas lembranças, para amenizar nosso sofrimento.

Embora tendo em mim os sinais físicos da fraqueza inerente à idade, não posso demonstrar abatimento espiritual. Às vezes, me quedo rindo por dentro, ao ouvir da esposa, dos filhos e netos a consoladora frase: “Ele está com aparência melhor!”. Na primavera, quando as belas flores de variadas cores dos boungavilles se derramam sobre os muros do meu quintal, o desânimo dá lugar a rasgos de esperança de novos tempos, novos ânimos, novos ares de felicidade.

Mas a felicidade, cantada em versos pelo nosso poetinha, Vinícius de Moraes, é fugaz, “como uma gota de orvalho numa pétala de flor/Brilha tranquila/Depois de leve oscila/E cai como uma lágrima de amor”.

Não sou senhor de mim, mas também não sou completamente incapaz de me reconhecer na criança que um dia fui. Não posso refletir sobre esse mundo complexo e ilógico que me escorrega entre os dedos, mas posso enxergar o material de que fui forjado para ser, com todas as vicissitudes e ambivalências, o que hoje sou.

Quando eu denomino esse mundo atual de complexo, ilógico e escorregadio, quero com isso dizer, que essa grave pandemia de coronavírus e a consequente banalização da morte em tempo real pela Televisão, está deixando, não só a mim, quanto aos outros inundados de ansiedade e reféns do desamparo. Cada um inquirindo a si mesmo, se será ou não a próxima vítima desse potente e imbatível vírus.

Como seres forjados para a angústia, de certa forma, o desamparo que experimentamos hoje, pode ser entendido, psicologicamente, como uma repetição ou eco do primeiro desamparo: a nossa expulsão violenta do aconchegante ninho materno ─ o Útero ─, quando, mediado pelo choro, passamos a viver em um mundo cruel e inóspito. Talvez, em nível inconsciente, o desamparo primevo, tenha algo a ver com a exacerbação dos sentidos que, agora, frente a uma Pandemia, se mostra quase que incontrolável.


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