É
na linguagem apreendida desde os meus primórdios que hoje, no ocaso
da vida, ainda me ancoro. O que faço com as pulsões, fantasias,
astúcias e finezas do meu tempo pueril, senão, dia a dia revolvê-las, reciclá-las ou adorná-las com as plumagens esmaecidas
do presente?
Quando
as trevas do mundo se me apresentam com toda sua dureza, acossado
por uma pandemia horrorosa e mortal de um vírus que escolheu
justamente os idosos com suas comorbidades para estabelecer a seleção
“natural” mais drástica da pós-modernidade, só me resta
empreender uma autoanálise. Então, à guiza de recolher algumas
pérolas envido esforços na tentativa de ver, mais de perto,
fantasmas escondidos nas profundezas de meu obscuro oceano psíquico,
instância essa, denominada por Freud, “O Inconsciente”.
Sob
o império das necessidades inerentes ao momento extremamente difícil
da atualidade que, no meio religioso, já se nomeia como “o fim
dos tempos”, nessa quarentena resignei-me a tatear por dentro
de casa, vendo paulatinamente, as páginas cinzentas dos dias
tombarem sobre as páginas negras da noite, ante meu débil olhar
embaciado pela idade avançada.
Nas
noites intercaladas por momentos insones, ainda tenho alguns sonhos
de esperança. Ainda sonho me vendo criança, colhendo fragmentos do
Jardim do Éden nos idos de 1946, quando em Alagoa Grande nascia eu
para a linguagem. Os meus pais, ainda tão jovens e imaturos, saídos
de uma curta adolescência, usaram o VERBO, e o DESEJO
Paterno/Materno para encarnar-me. Fui o primogênito, e como tal,
honrado com o título de provedor da família, como bem simboliza o
nome Levi, de origem hebraica, que hoje me faz jus, em todos os
aspectos.
O
psicanalista francês, Jacques Lacan, que promoveu a releitura das
obras de Freud, fazia em seus seminários referências ao
“Nome-do-Pai”, junto com a tríade do “simbólico, do
real e do imaginário” ─ arquétipo
introjetado pelo pai no psiquismo do filho. Mesmo já adulto, quando
esse filho dá uma ordem, é a voz ancestral do Pai que fala através
dele.
Um
DESEJO, Uma PALAVRA, um dia nos fundou. Somos filhos das PALAVRAS.
Elas permanecem lá, inscritas em nosso corpo. As ruínas dos
castelos que imaginariamente construímos na infância, com certeza,
estão arquivadas em nosso cérebro, Para não sermos consumidos, em
tempos sombrios como esse que estamos atravessando, ressonâncias se deslocam dos alicerces movediços de nossas lembranças, para amenizar
nosso sofrimento.
Embora
tendo em mim os sinais físicos da fraqueza inerente à idade, não
posso demonstrar abatimento espiritual. Às vezes, me quedo rindo por
dentro, ao ouvir da esposa, dos filhos e netos a consoladora frase:
“Ele está com aparência melhor!”. Na primavera,
quando as belas flores de variadas cores dos boungavilles se
derramam sobre os muros do meu quintal, o desânimo dá lugar a
rasgos de esperança de novos tempos, novos ânimos, novos ares de
felicidade.
Mas
a felicidade, cantada em versos pelo nosso poetinha, Vinícius
de Moraes, é fugaz, “como uma gota de orvalho numa pétala de
flor/Brilha tranquila/Depois de leve oscila/E cai como uma lágrima
de amor”.
Não
sou senhor de mim, mas também não sou completamente incapaz de me
reconhecer na criança que um dia fui. Não posso refletir sobre esse
mundo complexo e ilógico que me escorrega entre os dedos, mas posso
enxergar o material de que fui forjado para ser, com todas as
vicissitudes e ambivalências, o que hoje sou.
Quando
eu denomino esse mundo atual de complexo, ilógico e escorregadio,
quero com isso dizer, que essa grave pandemia de coronavírus
e a consequente banalização da morte em tempo real pela Televisão,
está deixando, não só a mim, quanto aos outros inundados de ansiedade e
reféns do desamparo. Cada um inquirindo a si mesmo, se será ou não
a próxima vítima desse potente e imbatível vírus.
Como
seres forjados para a angústia, de certa forma, o desamparo que
experimentamos hoje, pode ser entendido, psicologicamente, como uma
repetição ou eco do primeiro desamparo: a nossa expulsão violenta
do aconchegante ninho materno ─ o Útero ─, quando,
mediado pelo choro, passamos a viver em um mundo cruel e inóspito.
Talvez, em nível inconsciente, o desamparo primevo, tenha algo a ver
com a exacerbação dos sentidos que, agora, frente a uma
Pandemia, se mostra quase que incontrolável.
Por
Levi B. Santos
Guarabira,
13 de maio de 2020
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