Não entendo a razão da música clássica ─, aquela que toca a nossa sensibilidade mais profunda e nos transmite tanta paz de espírito ─ ser considerada música triste e sem sentido pela maioria das pessoas. Comumente, só ouvimos a execução dessas melodias, pelas emissoras de rádio, como fundo musical no anúncio do falecimento de uma pessoa nobre da sociedade. É uma pena que na nossa cultura, essas sinfonias suaves e maravilhosas sejam apelidadas indevidamente de “música de enterro”.
Mas como são belos, e extraordinariamente tocantes os concertos de Brahms, Schubert, Beethoven, Bach e Chopin, entre outros notáveis autores. Ouvindo as músicas desses fenomenais compositores eu me sinto como uma ave pairando no ar e, nas poucas horas de silêncio que esse mundo agitado e hostil me oferece, sou transportado a um mundo calmo, distante do “corre-corre” tumultuado da luta cruel pela sobrevivência. Não posso deixar de dizer que, a harmonia dessa modalidade musical acalma a criança amedrontada que mora em mim. Ela põe os meus medos para dormir. E, enquanto o sono me embala, os medos e as tensões são afugentados para bem longe.
Essa categoria musical é poderosa, pela sua influência avassaladora e capacidade de despertar sentimentos mais profundos, como em nenhuma outra arte é possível. Lembro-me da minha infância quando os meus dedos mal ajeitados percorriam o teclado de um acordeom, e eu me entregava à improvisações apaixonadas. Bastavam alguns acordes dolentes tirados em “do menor” para me fazer sonhar e esquecer as agruras e dificuldades da vida real.
Será que os extraordinários maestros da música clássica, não foram tocados por uma centelha Divina, ao instrumentalizar as canções que as mães de todo o mundo inventaram para fazer seus filhos dormirem? A escuridão da noite punha medo e agitava as crianças do meu tempo. As velhas letras das cantigas de ninar, que a minha mãe com tanta sensibilidade cantava, apaziguavam a minha alma, ajudando-me a entrar de forma tranqüila no mundo escuro e tremendo da noite. No balançar de uma rede, ouvindo as modinhas infantis, eu entrava tranquilo no mundo sobrenatural dos sonhos. Talvez, a música erudita que hoje me causa tanta sensação, seja uma evocação daquelas repetitivas canções que minha mãe entoava com tanto carinho e devoção, no verdor dos meus três anos de idade.
Hoje, num mundo explosivo e barulhento, é quase impossível se obter o necessário silêncio para conciliar o sono ao embalo de uma suave e bela sonata. Caímos no sono mais pelo cansaço do labutar diário, o qual como um tribunal severo, impõe uma aspereza dissimulada em nossos corações, nos impossibilitando de degustar os sentimentos transbordantes de uma sinfonia.
Na Bíblia, há um registro emblemático sobre o poder fascinante da música: quando o salmista Davi extraiu de sua harpa uma melodia expressiva, que tocou profundamente o Rei Saul, restaurando-lhe a tranqüilidade da alma que jazia perturbada. Não creio que a música tocada por Davi, tenha qualquer relação com a barulhenta e insuportável sonoridade da maioria das bandas gospels, que ludibriam os líderes de certas igrejas, deixando-os embasbacados diante de espetaculosos “shows” estimulantes dos instintos carnais, em detrimento do que é espiritual.
O êxtase banal, vulgar, pesado e barulhento provocado por essas bandas de ritmo esfuziante, e que muitos erradamente confundem com “avivamento espiritual”, jamais pode ser comparado ao sereno contentamento que as almas experimentam ao deixar a sinfonia erudita reverberar suavemente nas cordas de seus corações. O filósofo Schopenhauer deixou escrita uma frase que resume bem o propósito desse ensaio: “A música clássica é um exercício metafísico no qual a mente não se dá conta de que está filosofando com Deus”.
Lamento, mas nada posso fazer, senão respeitar àqueles que, seguindo a tradição dos nossos antepassados, fazem dessas melodias eruditas, uma peça complementar de um ritual fúnebre.
Também não posso olvidar de que entre as gentes, possa existir alguém que, cansado das lutas renhidas dessa vida, já sinta nas profundezas do seu ser a aproximação do momento de dormir o último grande sono. E nessa hora, deseje ouvir dos anjos uma sinfonia que lhe enleve a alma, a semelhança do acalanto que, ao tanger o fantasioso pavão para bem longe ─, afastava a inquietude da criançinha, deixando-a enfim, dormir o seu sono sossegado.
Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 28 de fevereiro de 2009