18 março 2010

O DIÁCONO ESPEROU ATÉ O FIM




Ele era bastante jovem quando foi promovido a diácono em sua igreja. Adorava prestar serviços por horas a fio no posto de sentinela à porta do velho templo. Aquele era um local muito barulhento, e naquele entre e sai de gente conversando, sem o mínimo de respeito à Palavra do pregador, em sua imaginação, ele parecia estar lutando contra as tropas estranhas do mundo de Lúcifer. Com sua velha e rota Bíblia em punho, via-se armado como se estivesse à espera de um inimigo oculto, que poderia aparecer a qualquer momento.

Durante anos viveu solitariamente naquele posto de diácono-porteiro, mas sempre pensando um dia galgar o posto máximo da hierarquia eclesiástica. Doara a sua vida na vigilância contra um inimigo que nunca chegara a conhecer. Vivia enfim uma vida petrificada numa agenda monótona de dias terrivelmente iguais. Não se dava conta que ia envelhecendo dentro de uma concha silenciosa, numa espécie de obsessão disciplinar, castradora dos sentimentos mais puros e estranhamente reprimidos pelo medo imaginário que o deixava sempre à espreita de um estranho a invadir seus domínios sagrados.

Andava para lá e para cá, varando manhãs ensolaradas, tardes de ventania e noites abafadas, repetindo os mesmos gestos, marchando pelos mesmos caminhos, buscando com os olhos de assombração uma utópica imagem que pudesse afugentar com os versículos chavões previamente marcados em vermelho no seu Sagrado livro de capa preta. Alimentou, por anos a fio, a esperança de que chegaria o dia em que pudesse, afinal, demonstrar a sua valentia contra o inimigo e assim poder subir na carreira eclesiástica, profetizada e escolhida no seu tempo de menino pela sua velha mãe. Vivia enfim numa esperança mórbida, na expectativa de uma batalha imaginária que poderia levá-lo a um destino de glórias.

O tempo passou, e o diácono ainda não percebia que paulatinamente dissolvera os seus dias, os seus anos, numa repetição contínua de atos mecânicos, insossos, sem alegria, numa atmosfera de inexorável obsessão. E assim, congelado no tempo, não mais sabia se ainda estava vivendo ou se morrera. Renunciara a alegria de viver para obedecer de maneira fiel a um “rito” que o transformou em um autômato a serviço da instituição religiosa.

O moço diácono transformado agora num velho diácono passava em revista a sua vida. A profissão da eterna espreita de um inimigo o engessou num invólucro impermeável e estéril ao gozo, transformando a sua vida numa interminável expiação. Erigiu então dentro do seu próprio ser uma fortaleza, fundamentada sobre o “temor”, que se nutria das severas penitências pelas faltas cometidas. Passou toda a sua vida numa atmosfera austera e sinistra à espera de um inimigo, que nunca apareceu aos seus olhos, nem nunca poderia aparecer, pois era cego para ver dentro de si. Vivendo sempre uma expectativa de guerra cotra as forças diabólicas.

Envelhecera no seu posto, tentando expiar sua culpa, com obsessão inesgotável contra um ilusório inimigo, tal qual um militar que monta guarda, verificando diuturnamente as armas, preparando os canhões, limpando o telescópio, e mantendo-se em vigília. Arrebatado pelo que poderia aparecer no horizonte, nunca veio suspeitar que estivesse fiscalizando sua própria sombra oculta nos porões do seu inconsciente.

Ali no seu leito de dor, via terminada a sua estrada rumo ao posto maior da Eclésia. No seu quarto, quando envolto pelas trevas da noite, parecia ouvir os doces hinos de sua igreja, entre os arpejos de um violão, e isso fazia então nascer dentro de si uma nesga de esperança, sem saber que a batalha final estava tão perto.

Em sonhos ouvia uma voz constante dizer ao seu ouvido: “Coragem meu velho diácono, esta é a sua última cartada, vá ao encontro do seu exuberante sonho como um soldado. Mesmo que ninguém cante louvores para ti, mesmo que ninguém te chame de Pastor. Mesmo com os teus sonhos transformados em desejos rotos e amarguras, és bravo, por ainda esperar”.

Moribundo, o diácono mal conseguia respirar, mas ainda pensava: “e se dentro de alguns minutos, dentro de uma hora, alguém viesse ungir-me como pastor?”.

Nessa noite a voz lhe soou ao ouvido pela última vez: “meu querido e velho diácono, mesmo se não houver mais os cânticos para te consolar e, ao contrário dessa fria noite, vierem névoas medonhas, tudo será o mesmo. O que importa já foi feito, não podem mais enganá-lo".

Na escuridão densa do seu quarto, ninguém o vê, mas ele parece sorrir, antes de dar o seu último suspiro.




Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 18 de março de 2009



19 comentários:

Danilo disse...

Cada dia melhor.

Abraços.

Danilo

Anônimo disse...

Grande Levi,

Ensaio mais que verídico, rsrs.

Os críticos de plantão dirão que tal coisa não acontece, irão querer culpar o personagem por ter se petrificado por conta própria todo este tempo.

Mas no fundo, a petrificação não está só no porteiro, igual a ele existiam vários outros lá dentro, cantando, pulando, pregando, enganando, ajudando, errando, acertando, porém, vivendo em uma "ilusão".

Buscando alcançar o topo da hierarquia, de forma honesta como o porteiro ou passando por cima de outros.

Esta é a verdadeira "novela" religiosa.

Que Deus nos ensine a viver Nele, para Ele e com Ele.

Abraços.

Evaldo Wolkers.
http://evaldocristao.blogspot.com

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Mestre Levi

Não tenha dúvida de que se te chamamos de Mestre é por mera falta de uma palavra que melhor te defina!

Este é o seu texto mais denso e profundo que eu lembro de ter lido.

O trecho a seguir é simplesmente a leitura ipsis litteris da minha própria alma há cerca de poucos meses:

"A profissão da eterna espreita de um inimigo o engessou num invólucro impermeável e estéril ao gozo, transformando a sua vida numa interminável expiação. Erigiu então dentro do seu próprio ser uma fortaleza, fundamentada sobre o 'temor', que se nutria das severas penitências pelas faltas cometidas. Passou toda a sua vida numa atmosfera austera e sinistra à espera de um inimigo, que nunca apareceu aos seus olhos, nem nunca poderia aparecer, pois era cego para ver dentro de si".

Sorte minha Deus ter me ajudado a sair daquele marasmo existencial já aos meus 26 anos de idade, com - queira Deus! - uma grande vida ainda à frente.

Parabéns, Mestre Levi, mais uma vez, pelo brilhante ensaio.

Levi B. Santos disse...

Caro Danilo


Sou grato pelo seu incentivo.

Pode aparecer com mais frequência por aqui, com a sua mensagem ou critica, em benefício da subversão do Reino.(sem economizar palavras) rsrs

Um forte abraço,


Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Prezado Evaldo Wolkers


Muito me honram a sua presença e o seu lúcido comentário.


Tempos difíceis vivemos, em que o homem ao vivenciar a sua experiência espiritual particular, procura apoderar-se da consciência do outro ao máximo do que lhe é possível, de um modo simplesmente utilitarista.

A história nesse sentido tem exibido a passagem de um Deus-coisa, um Deus-objeto através das seitas religiosas.

Os poderosos líderes eclesiásticos parecem que aspiram unicamente por uma continuidade da posse de Deus no espaço e no tempo[...].

"Eles transformaram Deus num objeto de fé”.


Abçs,

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Prezado confrade Isaias


Foi elogio demais, rapaz, não precisava tanto!

Bem, não tive a intenção de evocar em você, o seu passado recente.

Na linguagem de antigamente eu diria: “Foi Deus quem me revelou” (rsrsrs). Hoje, digo: “Foi obra do acaso”. Na verdade, tomando a linguística como base, tudo quer dizer a mesma coisa.

Mas, depois que li e reli o trecho pinçado por você, fiquei surpreso com as coincidências, e não consegui segurar a emoção, pois sem querer querendo (como diz Chaves) toquei, acho que favoravelmente, nas cordas do teu coração. (mas isso já é poesia – rsrsrs)

Abraços,

Levi B. Santos

Marcio Alves disse...

Mestre Levi

A historia fictícia deste diácono, reflete com num espelho da alma nossas doces ilusões descompreendidas do desentendimento do que é o Reino de Deus, aja visto, trabalharmos muito mais para um império-instituição-igreja do que pela causa de jesus.

Confesso que quase fui as lagrimas por me ter visto na figura deste diácono.
É por isso que tu és o mestre, pois vê e escreve do profundo da alma humana.

Abraços

Unknown disse...

Mestre Levi;

Este seu belo e significativo ensaio é o retrato da grande maioria de obreiros de nossas igrejas que abrem mão de viver para viver em busca de reconhecimento ministerial, mediante a isto, suportam humilhções, submeten-se a provações e se sugeitam a privações, pois gurdam em mente os velhos chavões evangelicos:

"O nosso discanso não é aqui; "O vosso trabalho não é em vão no Senhor".

Mas será que esta é mesmo a vontade do Senhor? Que abandonemos a nossa vida e nossas familias para estarmos a dispósição da tal "obra do Senhor"?

Homens bons e honestos, isto não podemos duvidar, porem notamos a exploração do serviço humano. Na grande maioria dos casos aquele obreiro dedicado ao envelhecer não tem mais o mesmo vigor, sua frequência nos trabalhos da igreja já não é como antes; Ninguém se lembrará deste pobre homem que dedicou a sua vida inteira para ao final morrer de solidão.

Levi B. Santos disse...

Prezado Marcio


Assim como você, me vejo na figura desse diácono, com uma diferença: Nós, tivemos a sorte de abrir os olhos mais cedo.

Contudo, a história do velho diácono dá a entender que ele se sentiu feliz e consolado, quando nos últimos momentos de sua vida, ouvi a voz ao seu ouvido dizer:

“... mesmo se não houver mais os cânticos para te consolar e, ao contrário dessa fria noite, vierem névoas fétidas, tudo será o mesmo. O que importa já foi feito, não podem mais enganá-lo".

Aqui no final do texto, o diácono sorrir:

“Na escuridão densa do seu quarto, ninguém o vê, mas ele parece sorrir, antes de dar o seu último suspiro”.

Esse seu sorriso nos últimos suspiros, é uma prova de que ele conseguira, no final, entender a verdade do verdadeiro SER, sem TER.


Abçs,

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Tens toda razão meu caro amigo Jair


Essa visão atrofiada pela neurose eclesiástica, faz com que se veja não só dez mandamentos, mas mais de trinta, requerendo esforço, mais empenho, mais desprendimento, mais sacrifícios dos pobres coitados que dão a sua vida em prol do ministério institucional religioso.

É preciso que se acorde para entender que essa vivência religiosa não tem nada a ver com amor pelas almas, na verdade, é apenas uma artificialidade com seu rol de aspectos exteriores.

A preocupação doentia em produzir para Deus, não passa de outro tipo de escravidão, ainda pior do que a primeira, quando o sujeito não era “crente”.


“Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres”
(João 8 : 36)


Abçs,

Levi B. Santos

Esdras Gregório disse...

Levi quem é o diácono?

Você ou um prototipo e representante de almas que buscaram serem importantes nesta terra mas acabaram tendo que no final da vida reconhecer e aceitar a significancia da sua insignificante vida na terra

Levi B. Santos disse...

Gresder


O bom de escrever, é ler depois os comentários, e observar como cada um se expressa e se vê de uma maneira peculiar no texto.

Quanto a minha postagem, na verdade, nós da C.P.F.G. temos todos, um pouco desse diácono que morreu esperando.

Somos seres “esperantes” de olhar preso num futuro menos amargo. Contudo, não podemos negar que esse futuro depende da memória do passado.


Abçs,

Levi B. Santos

Leonardo Gonçalves disse...

Levi,

Este diácono nao é figura fictícia, verdade?

Abraço,

Léo.

Levi B. Santos disse...

Bem, Caro amigo Leo

Oscar Wilde dizia que a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida.

Mas ao que parece, o meu texto imitou a vida de alguém.(rsrs)

Sendo assim, quem sabe se algum diácono dentre os que com eles convivi em minha vida,tenha me inspirado a escrever esse melancólico ensaio?

Ou quem sabe, você como sua vasta experiência missionária não tenha conhecido um personagem idêntico ao da história? (rsrsrs)


Um abração,

Levi B. Santos

Oseias B. Ferreira disse...

Levi,

Que belo ensaio, profundo, como sempre!

Como é bom ler textos assim!

Abraço

Levi B. Santos disse...

Prezado Oséias Ferreira do blog "COMUNGANDO"


Sou grato por sua passagem neste recanto. Que as suas palavras sirvam de estímulo, para uma maior dedicação de minha parte na difícil arte da escrita.


Um grande abraço, e volte sempre.


Levi B. Santos

Unknown disse...

Meu querido Mestre Levi;

Me desculpe a ausência, ultimamente estou envolto num turbilhão de pensamentos e conflitos existênciais, e como se não bastasse, trabalho de Vigilante noturnico...hehehe

Ainda vou contar as minhas peripécias pelas madrugadas de Sampa...

Desculpe acabei de chegar do trabalho estou com muito sono que já nem sei o que escrevo, logo mais eu volto.

Abraço.

glauciasemfalas disse...

Assim tenho vivido meus dias.