22 fevereiro 2012

Do Gnosticismo à Psicanálise Junguiana ― Um Percurso





No intuito de demonstrar a íntima relação entre as ideias gnósticas dos primeiros cristãos e a psicologia, recorro ao teólogo e estudioso da psicanálise, Carl Gustav Jung que, corajosamente, analisou as expressões religiosas, não pelo lado da fé, mas pelo seu conteúdo arquetípico.

O introspectivo Jung era filho de um Pastor protestante, e, quando criança diz ter experimentado “Deus” como um irresistível desejo atuando dentro de si. Sentiu todo o impacto da imago paterna atemorizante e poderosa em seus sonhos. Mais tarde, como estudioso da alma humana, veio a romper com Freud, seu melhor amigo, para decididamente, explorar as camadas profundas do inconsciente num campo em que o pai da psicanálise mais temia ―, o das religiões.

Certa vez, respondendo aos que o criticavam por violar os atributos de Deus, Jung, assim respondeu: “Não pretendo de modo algum discutir a existência de Deus, mas permito-me por as afirmações humanas sob uma lente. Estou inteiramente ciente de que nenhuma de minhas reflexões toca o Incognoscível”

Sobre a aproximação dos conceitos gnósticos com a psicologia, a historiadora das religiões, Elaine Pagels, em seu livro ― “Os Evangelhos Gnósticos” — Editora Objetiva, afirma: “a Psicoterapia e o Gnosticismo têm em comum, a fascinação pelo significado não-literal da linguagem”. Diz ainda a autora: “o evangelho de João encontra-se impregnado pelo pensamento gnóstico. Há uma afinidade indiscutível do “Prólogo” do Quarto evangelho com a gnose, no tratamento que ele dá aos temas: luz/trevas, novo nascimento, definição de “vida eterna pelo conceito de conhecimento”.

“A Treva não está na matéria nem na carne, ela provém da rejeição pelo ser humano da verdade que o deve vivificar”, observouLeon Dufour, no seu livro ― “Leitura do Evangelho Segundo João IV” (página 230)

Os Gnósticos, em sua maior parte, viveram nos primeiros séculos da Era Cristã. Aliás, foram os cristãos e os judeus ortodoxos, e não eles, que criaram esse termo conceitual para denominá-los.

O “Evangelho da Verdade” ou Gnose Kardias (conhecimento do coração) tem conceitos comuns à psicanálise. Os gnósticos que o escreveram podem ser considerados como os primeiros profissionais da psicologia profunda, pois em sua concepção visavam mais uma transformação interior do indivíduo. Na gnose há um desejo de fusão com o ser original ou primevo e, de certa forma, se faz sentir a presença de um sentimento nostálgico de se alcançar a unidade com o absoluto.

Stephan A. Hoeller, em seu livro, “A Gnose de Jung” (página 46) cita algo interessante, relativo ao pensamento gnóstico:
“O conhecimento do coração, em favor do qual os gnósticos se empenhavam não podia ser adquirido por meio de uma barganha com Jeová, através de um tratado ou aliança que garantisse bem estar espiritual e físico ao homem, em troca do cumprimento servil de um conjunto de regras [...]. [...] Também não negaram a importância da missão do personagem misterioso, que era conhecido pelos homens como o rabino Joshua de Nazaré. A Lei e o Salvador, os dois mais reverenciados conceitos de judeus e cristãos tornaram para os gnósticos apenas meios para um fim maior que esses mesmos conceitos. As suas dúvidas relativas à encarnação física de Jesus e sua reinterpretação da ressurreição enfureciam os judeus e cristãos ortodoxos, assim como, os muçulmanos e os budistas”.

C. G. Jung, tinha uma profunda simpatia pelo gnosticismo, por ver nele, não um conjunto de doutrinas, mas a expressão mitológica de uma experiência interior. Os gnósticos foram pioneiros em trazer uma profusão de significativo material, onde se podia colher profundas percepções da estrutura da psique, do conteúdo inconsciente coletivo. Foi estudando incansavelmente as expressões míticas dos gnósticos que Jung formulou a teoria dos arquétipos. Para ele, os arquétipos existem tanto na luz como nas sombras da mente. No mundo da luz, encontram-se deuses e deusas de inquestionável numinosidade e indescritível sabedoria e beleza, enquanto que nas trevas habitam os monstros demoníacos nutridos pelas sombras da personalidade humana. Tudo em consonância com o que diz o Evangelho de Filipe: “A verdade não veio nua ao mundo, mas em modelos e nas imagens”.

Há quem diga que Jung era um gnóstico, justamente por ele considerar que a bondade e a obediência às leis morais não eram requisitos substitutivos para se chegar à plenitude do ser. Sobre esse ponto, diz ainda Stephan Hoeller (Gnose de Jung, página 82): A psicologia gnóstica sempre admitiu que a divisão artificial ou a fragmentação da plenitude do ser entre o bem e o mal consistia numa armadilha das forças tirânicas empenhadas em manter a humanidade acorrentada. Dividindo a vida em metades separadas e ordenando ao ser humano que aderisse a uma dessas metades, com exclusão da outra, o poder demiúrgico levou a humanidade a cometer violência contra o lado sombrio da alma, e induziu-a a autocondenar-se a um estado de fragmentação e de culpa”.

No Livro “Eclipse de Deus”, de Martin Buber (página 129), há um diálogo entre ele e Jung, em que o último faz a seguinte declaração: “Por causa do caráter terrivelmente paradoxal de nossa existência, é compreensível que o inconsciente também contenha uma imagem paradoxal de Deus, que não se harmoniza bem com a sublimidade e pureza do conceito dogmático de Deus”.

Mas sobre essa afirmação aparentemente ambígua de Jung, existe uma formulação análoga, que se encontra registrada no Evangelho Gnóstico de Filipe, senão vejamos:

“Luz e treva, vida e morte, direita e esquerda são irmãos entre si. São inseparáveis. Por isto, nem os bons são bons e nem os maus são maus, nem a vida é vida, nem a morte é morte. Assim é que cada um se dissolverá em sua origem primordial”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 22 de fevereiro de 2012

Site da imagem: gnosisonline.org


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FONTES bibliográficas:


11     Stephan A. HoellerA Gnose de Jung ― Editora Cultrix
22.     Aniella JafféO Mito do Significado na Obra de Jung ― Cultrix
33.     Martin Buber Eclipse de Deus ―  Verus Editora
44.     Elaine PagelsOs Evangelhos Gnósticos ― Editora Objetiva
55.     Leon Dufour Leitura do Evangelho Segundo João IV ― Editora Loyola
66.     Coleção de Nag Hammadi  ― Evangelho de Filipe
77.     Frank McLynn ― ‘JUNG – Uma Biografia’Record Editora

15 fevereiro 2012

Das Procissões do Brasil Colônia ao Carnaval





O famoso pesquisador, historiador e crítico musical, José Ramos Tinhorão, no seu livro, As Festas no Brasil Colonial”, mostra como o cortejo sacro (as procissões católicas) no tempo do Brasil Colônia se misturou ao “profano” e influenciou enormemente o que hoje temos como, Festas Carnavalescas, ou tríduo momesco. Tinhorão descreve com riqueza de detalhes e farto material histórico como se processou a mesclagem dos valores sagrados ibero-europeus com os valores indígenas e africanos na Bahia, por volta do século XVI.

Segundo o historiador, em 1580, os alunos do colégio dos Jesuítas na Bahia, encontravam nas procissões uma oportunidade de extravasamento dos seus desejos carnais. Na data comemorativa do “Corpus Christus”, havia um bloco denominado, “O Mistério das Onze Mil Virgens”, uma procissão de oportunismo lúdico, que angariou a simpatia da maioria da população.
As festas carnavalescas de ruas e as diversões em ambientes fechados, como os bailes públicos, tiveram aí a sua origem.

Sobre o caráter de diversão da procissão dos alunos do colégio dos Jesuítas, o francês Le Gentil de La Barbinais quando passava por São Gonçalo, a convite do vice-rei Vasco Fernandes Cesar de Menezes, narra como se desenrolavam os desfiles lúdicos nos arredores de São Salvador:

“Partimos em companhia do Vice-Rei e de toda a Corte. Próximo a igreja de São Gonçalo nos deparamos com uma impressionante multidão que dançava e pulava ao som de violas e atabaques, que faziam tremer toda a nave da igreja. Tivemos, nós mesmos que entrar na dança, por bem ou por mal, e não deixou de ser interessante ver numa igreja padres, mulheres, frades, cavalheiros e escravos a dançar, misturados a gritos de ‘Viva São Gonçalo do Amarante!’.
Nas procissões do Espírito Santo, o padre Frei Antônio religioso do Carmo tocava viola publicamente com o Cônego de Angola – o padre Manoel de Bastos, e entre eles no mesmo carro alegórico, uma Vicência crioula forra de Ouro Preto, vestida de homem cantava o ‘Arromba’ e outras modas da terra. O bispo D. Antonio do Desterro era um folião inveterado e saia para farra na procissão usando como peruca a cabeleira da imagem de Cristo, isto em fins de 1759. Os lundus e os fados criados no século XVIII, mais tarde, se transformariam nas  precursoras da música popular moderna”.
“Os grupos de manifestantes barulhentos que desfilavam na semana da Quaresma tinham nomes muito parecidos com os blocos carnavalescos atuais: cornetadas, troças, chocalhadas, latadas e caçoadas”.

Tem mais: Os estandartes atuais dos blocos carnavalescos e escolas de samba continuam como cópias fiéis dos que eram içados pelos fiéis nas fogosas procissões do Brasil Colonial.

P.S.:
Perdoe-me o grande pesquisador José Gomes Tinhorão, mas eu vou ficar com o Almirante que, numa música carnavalesca escancarou toda a verdade: Tudo começou no dia 21 de Abril de 1500 com a descoberta, por acaso, do Brasil, exatamente dois meses após o carnaval, como mostra o vídeo abaixo:




Por Levi B. Santos
   Guarabira, 15 de fevereiro de 2012


Fonte de Referência: José Gomes Tinhorão“As Festas no Brasil Colonial” ― Editora 34

12 fevereiro 2012

O Amargo Triunfo Teológico−Político





Quando em junho de 1967 todos os judeus se emocionavam com a reconquista da velha Jerusalém, naquele histórico conflito a que se deu o nome “Guerra dos Seis Dias”, um rabino de nome Zalman Schachter, resolveu enviar uma carta a Ben Gurion. Ele fazia um alerta ao primeiro ministro de Israel, afirmando que aquele momento se revestia de uma grandeza histórica. Mas o interessante é que seu pensamento não estava em consonância com os gritos dos vitoriosos, os quais, como eufóricos vencedores do conflito, diziam: Jerusalém agora é nossa!.

O rabino, na contramão dos acontecimentos, fazia ali um pedido chocante: “exortava a Ben Gurion que declarasse imediatamente Jerusalém como um monumento internacional e que permitisse à cidade, justamente em sua reconquista pelos judeus, a realização de seu projeto histórico ― não o triunfo, mas a paz”.

Na carta, o rabino faz ver que “na própria história dos judeus o triunfo dos assírios, gregos, romanos, bizantinos, cruzados e otomanos era um metáfora de que o vencedor de hoje é o derrotado de amanhã. Quem vence produz um vencido. O triunfo representa a mais efêmera das seguranças e se coloca na cadeia sucessiva e interminável da violência”.

Nilton Bonder, atual presidente da Congregação Israelita do Brasil, em seu livro, “Judaísmo Para o Século XXI”, aproveita os argumentos interessantes do rabino, para uma reflexão sobre o outro lado do grande “triunfo” israelita sobre os seus países vizinhos, naquela memorável guerra.  Ele incita os judeus a uma auto-análise não só política como teológica.

Para Nilton Bonder, esse desejo de triunfo teológico foi o epicentro das guerras entre judeus, cristãos e muçulmanos. “Uma derrota dessa expectativa de triunfo de todos, seria a única esperança da paz”— conclui o líder Israelita.

Na visão de Bernardo Sorj, professor de História da Universidade de Haifa, Israel, PhD e em sociologia pela Universidade de Manchester (Inglaterra), o Estado de Israel “normatizado” de hoje paga um preço muito alto por renegar, esquecer as muitas correntes dos judeus da diáspora que não aceitaram se voltar para um passado extremista de defender a exclusividade JUDAICA sobre Jerusalém. O sionismo ao considerar “anormal” a heterogeneidade das correntes da diáspora, triunfou politicamente, mas foi derrotado pelo maniqueísmo retrógrado da percepção de um eterno conflito entre esquerda e direita, ou entre as categorias de judeus “ortodoxos” e judeus “hereges”.

O utilitarista religioso ocidental é aquele que continua eternamente na frente do espelho a perguntar: “Há alguém de quem você goste mais, meu Deus?”. E de acordo com o que o fiel deseja em seu inconsciente, a imago paterna lhe responde: “NÃO”. Na psique do fiel intolerante, revela-se, por conseguinte, um Deus intolerante que ordena a destruição ou o não reconhecimento do outro.

Spinoza, em seu “Tratado Teológico Político” – Editora Martins Fontes (página 45), sobre esse Deus que se revela segundo a própria imaginação humana, diz o seguinte: “Conta-se que Moisés pediu a Deus que o deixasse vê-Lo; mas como Moisés não tinha nenhuma imagem de Deus formada no cérebro, e dado que Deus, não se revela aos profetas senão em conformidade com a sua imaginação, não lhe apareceu sob nenhuma imagem”.

 “Jerusalém se transformou em símbolo do triunfo, e se há algo que a paz não é... é ser fruto do triunfo”.

O sonho que orientou um sionismo triunfante, é que tem balizado e incentivado em nossas terras o grande mercado de almas. Não é à-toa que o Marketing da Salvação é um dos mais poderosos aqui entre nós. Seu lema é sempre vitória, e nunca derrota, nem nunca convivência pacífica entre os de identidades diferentes.

Hoje, mais do que nunca, se faz necessário refletir sobre o que move o marketing da salvação: se ele passa, necessariamente, pelo “triunfo” imaginário da fé de um grupo e na praga da conversão do outro, todos estarão perdidos.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 12 de fevereiro de 2012


Site da imagem: exame.abril.com.br

03 fevereiro 2012

Quando o “Olhar” é Metáfora de Inferno


“Este teu olhar quando encontra o meu / fala de umas coisas que eu não posso acreditar” 
"Tom Jobim"



 Disse, certa vez, um professor de judô a seu aluno: “Quando lutar perceba que está lutando contra você mesmo. Os únicos adversários são seus próprios medos. E se lutar contra o outro lutador, vai perder mesmo que ganhe a disputa. Mas se entender que a sua batalha é contra seus medos, você irá ganhar, não importa qual seja o resultado do combate contra seu adversário.”


Sartre, no seu livro, “Entre Quatro Paredes”, mostra outra versão da metáfora INFERNO ― àquela que transparece quando o indivíduo está em relação com o DIFERENTE.

Por que se percebe o OUTRO como se fosse um INFERNO?

Porque o relacionamento com o OUTRO implica na experiência dramática de se ver pelo OLHAR alheio.

Ora, se o OUTRO vê em mim o que não sou, passo, então, a ser um objeto do desejo dele. Por esse tipo de OLHAR, o EU vai transformar o TU em um ISSO. Quando o EU acolhe o TU como uma coisa, ou um ISSO, a única opção que resta no tabuleiro de cartas para o TU, é se retirar, pois, não existe graça em jogar um jogo cujo resultado foi estabelecido, previamente, de forma unilateral.


Caio Liudvik, em seu livro, “Sartre e o Pensamento Mítico” (Edições Loyola ― página 161) tem um trecho do diálogo entre Júpiter e Egisto (do mito de Oréstia e Electra) no qual podemos perceber uma pequena amostra do mal estar do homem ao ser definido pelo OUTRO:

JÚPITER:
Vês bem como somos parecidos!

EGISTO:
“Parecidos? Que ironia é essa de um Deus se dizer parecido a mim. Desde que Reino todos os meus atos e todas as minhas palavras visam a compor a minha imagem; quero que cada um de meus súditos a traga em si e que sinta, até mesmo na solidão, meu OLHAR severo pesar sobres seus pensamentos mais secretos. Mas sou eu a primeira vítima: não me vejo mais senão como eles me vêem; me inclino sobre o enorme poço de suas almas, e minha imagem está lá, bem no fundo, ele me repugna e me fascina. Deus Todo-poderoso que sou eu, senão o MEDO que os outros têm de mim?”.

Aquele que rejeita o diálogo e o pluralismo dos OLHARES, talvez não entenda que o seu OLHAR quando define o OUTRO está contaminado pela sua própria subjetividade. Talvez não perceba que o OLHAR neutro não existe.

Para sair desse impasse, o que deveríamos conceber?

Uma nova percepção passaria pela revisão desse OLHAR determinista, para compreender que ele deve sempre estar em construção, haja vista, que os valores com os quais estabelecemos relações humanas não são fixos ou imutáveis. Para um ser em freqüentes mudanças, a rigidez do OLHAR, por não acompanhar a dinâmica evolutiva, se constituiria na nossa própria prisão, no nosso próprio INFERNO.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 03 de fevereiro de 2012


Site da imagem: ultimatransmissaohumana.blogspot.com